Ucrânia: uma guerra e muitos lados

Foto: Gabinete Presidencial Russo
Por Giovani Damico

Há poucos dias nos propusemos a refletir, em outra edição d’O Momento, a complexa rede geopolítica que cerca os muitos conflitos ativos no leste europeu e eurásia, sobretudo nas regiões das repúblicas da ex-URSS. A conjuntura de lá para cá acelerou processos dramáticos e, como se diz na política, “há décadas em que nada acontece e há dias em que décadas acontecem”. O rápido descarrilhar da crise ucraniana, embora pudesse ser lentamente observado ao longo dos últimos dez anos, teve em poucos dias desdobramentos de escala gigantesca.

Um aspecto fundamental a ser observado se refere aos operadores políticos presentes no cerne do conflito, os quais trataremos aqui de maneira clara. O primeiro destes diz respeito ao regime fascistizado hoje instalado no Governo da Ucrânia, junto aos grupos para-militares de nacionalistas neonazistas. Os Estados Unidos figuram enquanto grandes patrocinadores do atual governo, ao lado da União Europeia, com papel de fustigador passivo do regime e eventual conciliador, tendendo sempre ao imperialismo estadunidense. A Rússia, por sua vez, aparece enquanto agente externo engajado na manutenção de zonas de influência livres da OTAN. Por fim, temos os movimentos de massas da Ucrânia que estão ou situados passivamente, capturados em parte pela ideologia do imperialismo ocidental, ou situados nas respostas populares radicalizadas, que vêm levantando as bandeiras do antifascismo, do antiimperialismo, da auto-determinação dos povos e da paz. Estes últimos tendo posto em movimento a fundação de duas repúblicas autônomas no leste ucraniano, região de Donbass, dando lugar às Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk.

Uma análise no calor do momento sempre estará sujeita a lidar com os rápidos desdobramentos que tendem a aparecer a cada minuto. No entanto, observar as principais determinações que envolvem o conflito deve ser o caminho central para um bom entendimento dos acontecimentos trágicos em curso hoje na ex-república soviética. Há duas ou três semanas, grandes veículos jornalísticos vêm noticiando a iminente invasão russa do território ucraniano, deixando de lado uma grande questão: o que motivaria tal invasão, alardeada aos quatro ventos? Por um lado, a Rússia vem promovendo esforços retóricos de apontar seu compromisso com a pacificação da Ucrânia e com a proteção das minorias étnicas de ascensão russa, que passaram a ser perseguidas nos últimos anos. Embora possamos identificar nestas palavras certa concretude, a “pacificação” proposta pela Rússia vem através de meios militares, e resulta inevitavelmente em uma resposta bélica ao conflito ora instalado.

Por outro lado, aparece como sujeito indefinido ou inexistente aquele que toca os tambores da guerra no lado ocidental, em especial os EUA. A quem interessa o avanço da OTAN, o cercamento territorial da Rússia e a captura das ex-repúblicas soviéticas em uma rede clientelista de estados satélites? O silencio é retumbante. Até mesmo setores progressistas ou da esquerda possuem dificuldade enorme em situar os atores vigentes e, no máximo, levantam uma idílica “defesa do povo ucraniano”. Mas ora, o povo ucraniano não existe em abstrato, mas sim tomado por paixões, ideologias, pela repressão e pelo aparelhamento do Estado. O povo ucraniano se vê dividido entre etnicidades, entre regiões e, sobretudo, dividido por interesses em grande parte estranhos à classe trabalhadora daquele país.

Declaradamente, não pretenderemos aqui uma falsa isenção ou equiparação dos diversos atores envoltos no conflito; antes o contrário, pretendemos auxiliar no processo de desnudar as diversas facetas da Guerra em andamento. Como apontado em nosso artigo supracitado, é impossível avaliar os eventos que estão no olho do furação sem pensar nos trinta anos de dissolução da URSS e os movimento empreendidos pelo imperialismo ocidental para encapsular as antigas repúblicas soviéticas, seja as inserindo diretamente na OTAN, seja as colocando em situação de subserviência ao grande capital especulativo ocidental e seu jugo militar.

Concomitantemente, a resposta da Rússia — especialmente com a ascensão de Vladimir Putin — vem desenhando um terreno de resistência à agressão ocidental, ao passo em que a nova burguesia russa, emergida da crise dos anos 1990, busca concretizar uma zona própria de influências onde a Rússia passaria a exercer o papel de ator central, organizando as diferentes burguesias na região. É sabido que tal movimentação vem gestando um estado de crise permanente. A não-inserção da Rússia na cadeia imperialista ocidental, sob subordinação dos EUA, torna-se um entrave para a expansão da hegemonia inconteste constituída pelos estadunidenses no fim dos anos 1990.

Tal polo de resistência, pautado nas divergências históricas, nos sentimentos nacionalistas de grande parte da nascente burguesia russa, nas pretensões de restauração do domínio imperial pretérito, se junta em uma amálgama de antagonismo que abriu portas para a associação da Rússia com países, movimentos e grupos em contradição com o imperialismo ocidental, o que culmina, por exemplo, na controversa aliança entre Rússia e China numa espécie de bloco contra-hegemônico.

É precisamente este cenário que faz com que os interesses “subjetivos” de uma intencionalidade imperialista da Rússia se confundam com suas ações concretas exercidas hoje, que por diversas vezes abrem portas ou facilitam movimentos de resistência, na própria Ucrânia — mais especificamente nas autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk — mas também em diversas outras regiões, como as sancionadas Coreia do Norte, a pequena mas grandiosa Cuba, além da própria Venezuela, que, com todas as suas contradições, mostrou um processo de avanços sociais orientados aos interesses locais.

Outras experiências diversas poderiam ser citadas sobre as relações dos russos com países como Síria, Irã, Nepal, Vietnã, Laos e etc. A articulação da Rússia com estes países é de difícil compreensão, tendo como base apenas interesses imediatos, ou tendo como base apenas a lógica futura de um imperialismo russo que se pretende ser, mas ainda não é. No jogo das antíteses entre o subjetivo e o objetivo, o caminho de contestação por vezes se cruza com adversários maiores ou menores, ou adversários futuros que hoje se mostram como aliados táticos.

Desde a madrugada do último dia 23, os veículos mainstream nos lotam de informações sobre a invasão da Ucrânia por parte da Rússia. De fato, a intervenção militar explícita começou. Em menos de 24 horas de intervenção, ao que tudo indica, parte dos principais postos-chave do comando militar ucraniano foram sumariamente destruídos por bombardeios táticos russos. Estimativas apontam que 70% dos armamentos recebidos do ocidente pelas tropas ucranianas teriam sido totalmente destruídos. Tal incursão levou a casualidades e alguns embates frontais, mas mostrou, num primeiro momento, um aparente sucesso do objetivo russo de “neutralização” do exército ucraniano, diferente da alardeada guerra total. A superioridade bélica russa chama a atenção de diversos observadores no que tem se traduzido até aqui em uma desarticulação das capacidades bélicas ucranianas em um curtíssimo espaço de tempo.

Evidente que é extremamente cedo e apressado aventar qualquer desdobramento futuro. Entretanto, o que se sabe de imediato é que a declaração de independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk foi reconhecida pela primeira vez por um país estrangeiro, sendo este a própria Rússia, no dia 21 de fevereiro, que colocou suporte militar à disposição para uma intervenção conjunta na região, viabilizando uma “fronteira dura” com a expulsão de tropas e agentes ucranianos dos territórios reivindicados pelas duas repúblicas.

No interior da Ucrânia, o conflito ganha ares cada vez mais dramáticos: é um país esfacelado, com sua economia em ampla fragmentação, e que tem na Rússia seu principal parceiro econômico, mas se vê agora em rota de colisão frontal com um vizinho de poderio bélico assustador, e ao mesmo tempo capturada em uma guerra que muito pouco ou quase nada diz sobre as necessidades da população ucraniana.

O imperialismo ocidental há quase uma década incita o conflito, armando as milícias paramilitares ucranianas, prestando total conivência com a fascistização do país que viu um crescimento absurdo do neonazismo, perseguição irrestrita a militantes comunistas, anarquistas, sindicalistas em geral, e a todo grupamento de inspiração antiimperialista e antifascista. Era inevitável que um processo que vem destruindo por dentro os próprios fundamentos da nação ucraniana, colocando em choque diferentes grupamentos sociais e étnicos, apagando a história do país, principalmente seu passado revolucionário, tendesse a exasperar os conflitos que culminam na atual quadra histórica onde uma guerra civil é iminente. 

Assim, encontrar uma posição equilibrada neste momento nos parece o movimento mais urgente e necessário. Se a ação militar russa parece tomar forma, ainda não há capacidades de prever sua proporção final. Mas é um fato que as potências ocidentais, do seu papel ativo de agitadoras da guerra, têm se mostrado agora tímidas em lidar com as consequências reais. Os alarmes das sanções econômicas voltam a soar, mas ao contrário de surtirem qualquer efeito pacificador, essas medidas apenas acirram os tensionamentos existentes, sem poderes de frear a Rússia e menos ainda o conflito por eles insuflado. Paralelamente, a mobilização de tropas da OTAN em países vizinhos e a continuada escalada da perspectiva de balcanização da região, com reforço da presença da OTAN, tende a deixar a Ucrânia como uma ilha desolada pelo conflito e abandonada pelos fustigadores.

As saídas a serem buscadas devem ter balizas claras, pautadas nos princípios de autodeterminação dos povos e a partir da constituição de polos de debate e ação política oriundos do interior da Ucrânia, num programa feito pelas próprias mãos da classe trabalhadora local. Assim, retoma-se a capacidade política e organizativa da população ucraniana, tendo como primeira tarefa uma “desfascistização” do país.

A própria institucionalidade ucraniana se viu desmilinguida, com campanhas “anticorrupção” conduzidas pelo Departamento de Estado estadunidense junto aos seus Consulados (que na prática estabeleceram uma verdadeira limpa, inviabilizando estruturas de poder próprias àquele país, orientadas minimamente aos seus interesses). Agora, coloca-se uma tarefa de reconstrução dos marcos institucionais básicos para a retomada de um projeto de nação autóctone, orientado pelos interesses da classe trabalhadora ucraniana ora espremida entre projetos antagônicos que em sua essência, pouco têm a oferecer de avanços concretos. Tal projeto não será oferecido nem sustentado pela Rússia, sob quaisquer óticas.

 As experiências piloto, ou as bases para reconstituição da Ucrânia, devem emergir do próprio país. A situação no leste, em Donbass, assume contornos diferenciados e se mostram constituídas pelos germens de auto-gestão proletária. Desta experiência emergem legítimos e fundamentais movimentos de contestação e de reorganização da sociedade ucraniana, resgatando, inclusive, a história soviética em seus principais feitos civilizacionais para o país. A guerra deve ser resolvida por moldes definidos pelos interesses mais avançados da população ucraniana, garantindo o direito de rendição, de trânsito da população civil em corredores seguros, e orientando para um desfecho rápido e em favor da auto-determinação da classe trabalhadora naqueles territórios.

Apenas um amplo projeto de reconstrução nacional, pautado primeiramente na retomada da paz e seguido de uma recomposição das estruturas jurídicas e políticas nacionais, será suficiente para o funcionamento da normalidade social e econômica no país. Tal projeto deverá ainda contar com a concepção de um novo pacto federativo, ou a eventual dissolução da unidade territorial ucraniana, orientada não por interesses estrangeiros, mas sim pelas discussões vivas e localizadas nos interesses da classe trabalhadora ucraniana nos moldes propostos de forma incipiente pelas repúblicas populares nascentes em Lugansk e Donetsk. O próprio suporte militar russo não deve ser convertido em alguma espécie de ocupação territorial.

Por fim, não pode haver espaço para confusão no papel dos diferentes atores estrangeiros. Se por um lado há de ser denunciado o belicismo e expansionismo russo, este não pode ser confundido com a ofensiva do imperialismo ocidental através da OTAN, que figura como o principal inimigo da classe trabalhadora a nível mundial, um verdadeiro instrumento reacionário contra todas as perspectivas de contestação da ordem do capital. O papel da Rússia, conquanto seja o de frear o expansionismo da OTAN, termina por atender — ainda que indiretamente ou como “consequência adversa” — a interesses da classe trabalhadora mundial. Mesmo assim, tal papel deve ser observado criticamente. A perspectiva russa de substituir a auto-determinação dos povos por uma mera defesa da “soberania nacional” tende a escamotear o conteúdo de classe, colocando os interesses de elites locais acima dos interesses da classe trabalhadora, o que também deverá ser denunciado e combatido pelos movimentos revolucionários. A única saída para a paz na Ucrânia reside nos próprios corações e mentes das comunidades e dos territórios locais.

Alguns desfechos podem estar no horizonte, e a imprevisibilidade ainda é uma marca latente da situação. Podemos situar, como cenários possíveis: um amoldamento do território ucraniano a um novo contexto, despossuído dos territórios do leste, mas onde persista a situação de crise e conflito com a Rússia, semelhante com o que se produziu após a anexação da Criméia pela Rússia; a ampla deterioração do conflito com o avanço de uma guerra civil, que pode incluir ou não a entrada de potências estrangeiras coordenadas pela OTAN, tornando-se provavelmente um dos cenários mais catastróficos; ou o arrefecimento das tensões com mudanças institucionais na Ucrânia, ainda aos moldes hoje estabelecidos, cenário que parece altamente improvável, mas que poderia levar a uma redução das tensões com compromissos dos dois lados.

Um último cenário, mais otimista para a população ucraniana, está descrito naquilo que citamos acima como uma ampla reconstituição do país sendo a saída para a crise, num processo onde tanto a ingerência do imperialismo ocidental quanto o intervencionismo russo seriam paulatinamente afastados, numa escala de prioridades onde afastaria-se inicialmente a ameaça da OTAN, e ficaria a tarefa posterior de os movimentos revolucionários ucranianos lidarem com os apetites também vorazes da burguesia russa.

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