Por Giovani Damico
O ano de 2022 nasce como o anno III da pandemia do Coronavírus, mas esta não vem sendo a maior marca de sua aurora. Em realidade, o imbricado tabuleiro geopolítico eurasiático é que vem marcando o início deste ano. De um lado, o Cazaquistão despontou em todas as grandes redes midiáticas mundo afora, de país pouco conhecido à manchete generalizada. Do outro lado, logo adiante, a Ucrânia voltou a estar no coração dos eventos políticos que vem mobilizando diversos esforços de entendimento de uma realidade quase inextricável. Por trás de todo o conflito, temos os desdobramentos da boa e velha geopolítica, em que interesses das potências capitalistas ocidentais se esbarram com os interesses das populações locais, ao passo que interesses da China e Rússia amalgamam-se em um curioso e complexo polo de antagonismo.
O povo cazaque recebeu no início do ano duras notícias acerca de uma elevação dos preços do gás natural (principal fonte de energia para aquecimento e uso doméstico no país), tendo os valores dobrados, a despeito das vastas reservas de petróleo e gás presentes no país. A crescente presença do capital internacional na indústria mineral e de petróleo e gás no país, vem reforçando a commoditificação das reservas naturais em detrimento de um uso social dos recursos. Tal cenário desaguou em uma ampla revolta popular, iniciada pelos trabalhadores do setor petroleiro, com uma jornada de greves, que em pouco tempo se espalhou para as principais cidades e regiões do Cazaquistão.
Na observação das análises mais frequentes, a confusão era generalizada: enquanto alguns afirmavam com plena convicção de que a revolta popular era um claro movimento de “revolução colorida” ou guerra híbrida, naquilo que se entende como uma intervenção de agentes estrangeiros criando caos social para desestabilização de determinado governo. Outros tantos grupos de análises apontavam para uma suposta intervenção russa, com um caráter reacionário nas manifestações visando desestabilização do governo, que forçasse sua aproximação com a Rússia. O segundo cenário embora pareça a priori mais realista, exprime também uma falha gravíssima em confundir os interesses de atores internacionais com suas agendas geopolíticas, com os movimentos concretos oriundos da luta de classes no interior de cada território.
Se é verdade que a influência russa terminou por ser ainda mais solidificada, uma vez que o governo cazaque recorreu ao reacionário governo Putin, para apoiar seus interesses de dominação local, é também verdade que este foi um movimento conjunto de contenção das lutas legítimas que vem emergindo no interior de algumas das repúblicas ex-sovíéticas, passadas décadas de destruição da seguridade social, degradação das condições de vida, e crescente austeridade imposta por governos autoritários defensores da ordem capitalista e oligárquica que emergiu com o colapso da antiga URSS.
A presença chinesa no Cazaquistão também foi colocada enquanto possível motivadora da revolta social, uma vez que interesses chineses estão em jogo no país, visto como fundamental para os projetos da Nova Rota da Seda (BRI na sigla em inglês). No entanto, o que se observou da parte da China foi a reprodução de um padrão já conhecido: apoio passivo da manutenção do governo vigente, sem uma abordagem intervencionista. Se por um lado a China aposta na estabilidade de seus parceiros comerciais, apoiando evidentemente em seus próprios interesses, por outro lado segue verdadeira a noção de que os chineses continuam a nutrir relações pragmáticas com diferentes países, incluídos estados socialistas alvo de hostilidades generalizadas do ocidente capitalista.
A realidade cazaque, cuja capital Nur-sultan – com nome recém-modificado em homenagem personalista do ditador do país- é assim bastante adversa. Um cenário onde o acirramento das tensões sociais descambou em movimentos sociais legítimos, que levantavam bandeiras como a estatização de empresas estratégicas, a legalização de partidos e movimentos comunistas e socialistas, o direito de greve e organização política, bem como outros direitos sociais. O cenário conflitivo se mostra cada vez mais presente em uma região cercada por interesses geopolíticos de atores antagônicos, ao mesmo tempo em que se deterioram as condições de vida das sociedades caóticas que emergiram do colapso soviético. A dificuldade de reativação das lutas sociais impostas nos países da região pode frear, mas sem jamais parar o avanço da organização de perspectivas contra-hegemônicas, que questionam a ordem capitalista falida, a grande causadora das agruras ora reinantes.
A Ucrânia por sua vez se vê cercada por um cenário de avanço militar da OTAN, que vem se sucedendo nas décadas posteriores ao fim da URSS. Do mesmo modo, a pequena Belarus se encontrou recentemente pressionada por manobras de desestabilização do governo Lukashenko promovidas pelo ocidente, ao passo em que manifestações legítimas de insatisfação também seguem emergindo de movimentos sociais locais. O cenário ucraniano se mostra mais grave uma vez que atingiu o status de guerra civil desde os acontecimentos na “Euromaidan”, num estopim de guerra civil iniciado em 2014 na capital Kiev. Uma vez pega no fogo cruzado entre os interesses russos, de manutenção de uma zona de influência própria, mas que por vezes chega a apoiar interesses imediatos de alguns povos oprimidos. Numa contraditória política externa que media entre aspirações imperialistas russas, e as defesas pontuais da soberania e autodeterminação dos povos. Da outra parte os interesses do bloco capitalista ocidental, expresso tanto na União Europeia, mas principalmente nas intervenções cada vez maiores advindas dos EUA.
A Alemanha em particular e a União Europeia em geral têm assistido e endossado um processo de facistização de diversos de seus Estados, como no caso da Hungria, Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) e Polônia, num movimento duplo que envolve desde a conivência aberta com regimes de extrema direita, até o incentivo material com artigos militares associado a seu papel na mediação e integração destes estados na OTAN. Observa-se ainda um avanço da criminalização dos movimentos revolucionários, com diversas legislações anticomunistas sendo aprovadas. Dentro do próprio território alemão a perseguição a Comunistas vem sendo incrementada com criação ou implementação de leis da guerra fria que remontavam à Alemanha capitalista ocidental. Ao mesmo tempo, Berlim assiste passivamente a um crescimento de movimentos neonazistas e de extrema direita em seu território, como no caso do já institucionalizado AfD (Alternativ für Deutschland/ Alternativa para a Alemanha), Partido neonazista que vem compondo maiorias parlamentares com os partidos conservadores no governo. A participação da Alemanha vem sendo extremamente relevante para o avançar dos acirramentos, ainda que com uma retórica oficial “antiguerra”, a prática real se traduz em um papel determinante na deterioração das condições de vida nas antigas repúblicas soviéticas, bem como um papel de articuladora junto aos EUA, em episódios como o golpe de Estado na Ucrânia que derrubou Yanukovich em 2014, estabelecendo um governo satélite submisso ao imperialismo ocidental.
No mais recente desdobramento, o Governo americano de Joe Biden implementou uma tentativa de armar a ucrânia com bases estadunidenses munidas de armas atômicas. Não bastando o crescente intervencionismo que culminou no golpe de estado em 2014, seguido de um levante de inspiração nazifascista, a intervenção do imperialismo americano ameaça agora uma nova hecatombe nuclear. A Rússia de Putin por sua vez, estabeleceu uma dura manobra que colocou os mais diversos analistas em estado de alerta, tendo estacionado mais de 130 mil tropas nas fronteiras com a Ucrânia, munidas dos armamentos de última geração, com clara capacidade de invasão relâmpago do território vizinho. O evento dramático aponta para um acirramento de tensões, com pressões dos EUA para impedimento da chegada dos projetos de gás russo (Nord Stream) na União Europeia, associados a ameaças de embargo econômico em larga escala contra a Rússia. No entanto, a ousada manobra russa parece, por ora, ter colocado em cheque as pretensões americanas na Ucrânia de Zelensky.
A disputa de geopolítica no “Tabuleiro de Seda” perpassa assim os mais diferentes interesses, desde os anseios legítimos de uma classe trabalhadora explorada e atemorizada após 30 anos de tragédias pós-soviéticas, passando pelas movimentações cada vez mais agressivas do imperialismo ocidental, que tem encontrado respostas cada vez mais duras por parte de uma Rússia, que busca mesclar seus interesses, aos interesses chineses, que apesar de uma abordagem radicalmente distinta, bem como um horizonte estratégico que se mostra até então pautado na premissa da auto-determinação dos povos, encontra por vezes convergências ante as ameaças, intimidações e agressões do ocidente capitalista. Numa mostra mais recente do esforço de ação conjunta, China, Rússia e Irã ingressaram em uma rodada de exercícios militares tri-partite no Golfo do Omã.
Compreender os rumos dos eventos aqui levantados perpassa necessariamente uma análise materialista que parta das contradições concretas, desde as locais até as internacionais. Escapar de avaliações fáceis e simplistas que localizam no primeiro momento bem e mal, mocinhos e bandidos, mostra-se uma tarefa árdua, porém, fundamental para um justo posicionamento ante a luta dos diversos povos oprimidos, e da luta de classes em geral.