Por Rômulo Caires
Crítica do filme: Marighella – Depois de longa espera, Marighella (2019) finalmente foi exibido no Brasil. O filme, dirigido pelo ator e cineasta baiano Wagner Moura, teve sua pré-estreia em Salvador entre os dias 19 a 25 de novembro, no marco das comemorações e protestos do dia da Consciência Negra. A cinebiografia já deveria ter sido lançada há cerca de 1 ano; porém, teve sua exibição adiada por não cumprir com os trâmites exigidos pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE), ao que Wagner Moura acusou de interferência e censura.
O filme é uma adaptação da aclamada biografia de Mário Magalhães chamada “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, focando nos últimos anos de vida do revolucionário baiano. A escolha foi premeditada: Wagner Moura quis transpor para as telas os momentos de maior tensão de uma vida marcada pela intensa militância partidária e luta pelo povo trabalhador. Marcado pelo suspense e pela ação, o filme tem o mérito de nos aproximar da vida cotidiana do biografado e daqueles que compunham a sua rede de contatos, adentrando, inclusive, nos momentos mais delicados da luta armada.
Com a câmera na mão durante a maior parte da filmagem, o diretor baiano imprime planos-sequência de tirar o fôlego, insistindo em cenas de grande dinamismo, mas não perdendo a chance de mostrar também os aspectos mais prosaicos dos últimos anos de Carlos Marighella (1911-1969). Os planos fechados nos fazem adentrar nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, que após derrubar Jango e infligir grande derrota ao PCB e demais forças da classe trabalhadora, perseguiu diuturnamente os militantes comunistas e todos aqueles que se atreveram a pôr em xeque a ordem estabelecida.
Filho mais velho de Augusto Marighella, operário italiano, com a baiana e descendente direta de sudaneses escravizados Maria Rita do Nascimento, Carlos Marighella (vivido na pele de Seu Jorge) se encontrava em momento de importante decisão: ele acusava o PCB, partido no qual militou e dirigiu por décadas, de não organizar a resistência direta ao golpe de 1964. Numa frase que ficaria eternizada, dizia: “A única luta que se perde é a que se abandona”. Com esses princípios, Marighella foi se afastando do PCB e se juntou a outros militantes interessados na resistência armada à ditadura. Em um dos momentos mais marcantes do longa-metragem de 155 minutos, assistimos um grupo de guerrilheiros assaltando um trem, com o objetivo de roubar armas e munições endereçadas à luta pela retomada da democracia em nosso país.
A censura era um dos carros-chefes do regime bonapartista, e os guerrilheiros se esforçavam para quebrar o seu isolamento e atingir as amplas massas populares. Acreditavam que o foco revolucionário iria atiçar as forças progressistas e catalisar a derrubada das forças ditatoriais. Se a distância histórica nos permite julgar com maior acurácia os erros cometidos pelos que adotaram a luta armada, o filme, por outro lado, nos mostra uma faceta pouco conhecida. A imagem do guerrilheiro amoral é substituída pelos atos heroicos daqueles que se recusavam a ficar parados diante da grave conjuntura. Queriam ser reconhecidos pelo povo tal como aqueles que lutaram em Cuba e no Vietnã.
Apesar das muitas cenas de ação, a obra também é marcada por mostrar as imensas dificuldades de sobrevivência dos militantes guerrilheiros. Muitas vezes, o tom intimista consegue reproduzir a atmosfera paranoica daqueles que escolheram agir na clandestinidade. Tal forma de figuração pode nos fazer adentrar nas experiências mais íntimas de Marighella, porém oculta o rico percurso de experiências públicas do ex-deputado federal, poeta e jornalista. Nesse ponto, o filme corre um risco que nos parece inerente a uma cinebiografia: a supervalorização da interioridade, caindo, muitas vezes, em caricaturas psicológicas.
As perseguições policiais e as operações dirigidas pelos militantes da ALN são intercaladas pelo dia-a-dia da vida de alguns militantes, desenvolvendo, especialmente, as escolhas dramáticas daqueles que precisaram se afastar de toda a sua vida passada para se dedicar integralmente à causa revolucionária. Contudo, por não ser capaz de repor a intensidade do momento histórico para além de experiências subjetivas de alguns personagens, o filme dá muita ênfase em nos persuadir pelo que está sendo exposto, sem necessariamente nos mostrar as possibilidades humanas que estão em jogo. Tal fato empobrece as ideias desenvolvidas no filme, criando por demais falsas dicotomias.
Parte da crítica surgida a partir da circulação do filme nos festivais internacionais apontou a fragilidade do roteiro, mas compensou com análises elogiosas, por exemplo, das atuações de Seu Jorge e de Bruno Gagliasso, que viveu o personagem Lúcio, delegado implacável que perseguiu e participou do assassinato de Marighella no filme. Seu Jorge, de voz imponente, não nos pareceu trazer à tona a simpatia e vivacidade pelas quais Marighella é tão lembrado. Por conta da própria característica do filme, as escolhas tomadas durante o arco dramático são muitas vezes fragmentadas, passando a impressão de pouca coerência do personagem, o que também fragiliza as ideias que parecem estar sendo indicadas. Marighella, conhecido militante marxista, pode então nos parecer um defensor abstrato de valores liberais.
Com sua estreia oficial garantida para abril de 2021, a cinebiografia constitui obra de interesse para aqueles que querem se aprofundar em um dos períodos mais críticos da história brasileira e conhecer mais de perto a figura do grande revolucionário Carlos Marighella. Em tempos de apatia generalizada, um filme desse tipo pode despertar o ânimo para questionamentos mais radicais, mas a solução encontrada para quebrar as possíveis resistências do público, como o recurso ao suspense e às cenas de muita ação, podem induzir a um mero consumo desinteressado aos moldes dos produtos hollywoodianos. Muitas figuras revolucionárias são transformadas em ícones de veneração, e a isso, muitas vezes se segue o esvaziamento de seus conteúdos. Marighella bem sabia: o que move a história não são os grandes gênios, mas sim um processo coletivo, no qual lideranças como ele são o resultado e não o ponto de partida. Há que se agir no dia depois da catarse.