A saúde pública na Rússia pós-revolucionária

Foto: Ceri C
Por Rômulo Caires

O fim da URSS representou um marco para o sistema de saúde de uma Rússia que vivenciava a restauração do capitalismo em toda a sua agressividade. Os planos privados de saúde floresciam e invadiam os espaços antes marcados pelo investimento público e estatal. A crescente massa de desempregados ficava agora entregue ao desamparo. A expectativa de vida despencava em todo o imenso território russo e alarmava aqueles que viam na experiência soviética um avanço em matéria de cuidado à saúde dos trabalhadores. Tais fatos estimularam muitos historiadores e cientistas sociais a detectarem a causa de tamanha regressão. 

O direito à saúde sempre foi uma demanda central das lutas dos trabalhadores. Em “O Capital”, Marx dedica longas passagens a analisar como as jornadas extenuantes, as condições insalubres de trabalho, a precariedade das moradias, a completa insegurança alimentar e os constantes acidentes ocupacionais condenavam os trabalhadores a sofrerem continuamente os infortúnios das doenças. Ao mesmo tempo em que os capitalistas necessitavam reproduzir a força de trabalho – e para isto precisavam manter os trabalhadores vivos –, a pressão exercida por um crescente exército industrial de reserva não dava muitas margens para os trabalhadores questionarem suas condições precárias de vida.

Assim, as conquistas de uma maior seguridade social e melhor saúde vieram justamente do embate de organizações da classe trabalhadora (cada vez mais conscientes da sua importância na produção da riqueza social) contra o Estado burguês. Marx mostrava, assim, o quanto a organização da luta de classes tinha papel fundamental nos avanços jurídicos alcançados pela classe trabalhadora, muito mais do que as possíveis boas intenções do sistema estatal.

Até o início do século XX, a mortalidade infantil na Rússia era de 240 a 270 crianças mortas por 1.000 nascidos vivos. Os índices de mortalidade materna também eram bastante elevados, indicando as precárias condições de vida que as mulheres enfrentavam na Rússia pré-revolucionária. A expectativa de vida mal chegava aos 35 anos. O país vivia uma situação muito diferente dos países em que o capitalismo estava plenamente desenvolvido, tais como França e Inglaterra. A Rússia era um país predominantemente agrário, cuja autoridade máxima, o czar, não era nada sensível à demanda dos enormes contingentes de pobres e desvalidos.

O início da modernização russa se deu na forma do que Lenin chamou de via prussiana. A instauração do sistema capitalista ocorria sem a mediação das massas populares, num processo ditado pelo alto. Via-se uma tentativa abrupta de industrialização e urbanização que deixava atrás de si as chagas sociais que tais processos costumam provocar. 

A saúde na Rússia czarista tinha uma estrutura essencialmente aristocrática, onde os benefícios eram colhidos majoritariamente pelas classes proprietárias. O miserável orçamento médico estava basicamente focado na entrega de serviços individuais, que não possuíam uma concepção de sistema de prevenção e promoção da saúde. O grosso da população estava privado de condições sanitárias dignas em termos de moradia, alimentação, água, cultura e etc.

O resultado disso é que a Rússia vivia repetitivas epidemias de cólera e febre tifoide, que dizimavam grande número de pessoas. Os trabalhadores e profissionais da saúde que existiam eram, geralmente, precarizados, e bastante simpáticos ao programa bolchevique em prol de um sistema de saúde gratuito, universal e democraticamente referenciado. Por outro lado, em sua maioria os médicos representavam os interesses mais conservadores da sociedade.

A situação começa a mudar a partir dos levantes de 1905. O ascendente movimento de massas na Rússia colocava a saúde como uma prioridade política. Um crescente número de médicos também se radicalizava, formando sindicatos combativos e nos quais o marxismo ganhava espaço. Sinalizavam que a crise na medicina era apenas uma parte de uma crise ainda maior, que envolvia toda a Rússia, acenando para a reflexão cada vez mais intensa dos determinantes sociais das doenças. Sirotkina aponta que:

Os problemas acerca da saúde pública para a população miserável – uma solução que se encontra além da medicina – fizeram com que os médicos se tornassem um dos grupos mais radicais da intelectualidade. Tornando-se críticos das políticas governamentais sobre saúde pública, muitos deles se tornaram também críticos do regime. Durante os […] eventos revolucionários, os médicos culpavam o regime repressivo por destruir a saúde da população.

Se no seio das próprias elites médicas ocorria tal processo de radicalização, os trabalhadores da saúde nos hospitais e nas vilas clamavam por maior democracia nos processos de estruturação da saúde, exigindo que o sistema de saúde fosse tirado das mãos de administradores não-eleitos e colocado no controle de pacientes e trabalhadores.

O campo da saúde mental e da psiquiatria também foi atravessado pelas lutas por uma nova ordem social. Antes de 1905, a trajetória da psiquiatria na Rússia seguiu de perto as experiências que ocorriam na Europa, onde a lógica manicomial funcionava como dispositivo de repressão e tortura. Era um dos locus de ação da polícia czarista, que utilizava as instituições manicomiais como depósitos para todos os “elementos indesejáveis”.

Iakobi, psiquiatra marxista russo, demonstrava a influência destrutiva que o capitalismo emergente exercia sobre o campo da saúde mental. O autor argumentava que as relações de propriedade burguesas privilegiavam determinadas noções de “normalidade”, compatíveis com o funcionamento econômico da nova sociedade. Os “anormais”, antes de estarem sendo curados pelo sistema manicomial, estavam sendo isolados da sociedade por colocarem os interesses das classes dominantes diretamente em xeque.

Neste contexto, a Revolução Russa trazia em seu bojo uma série de demandas sociais construídas nos movimentos e lutas em prol de um novo sistema de saúde para a sociedade revolucionária. O governo soviético criou, em julho de 1918, o Comissariado do Povo de Saúde Pública “Narkomzdrav”, nomeando para sua direção o médico bolchevique Nikolai Semashko. O Comissariado nascente teve que enfrentar uma grande crise social e sanitária que castigava o povo russo desde a época dos czares, agravadas ainda mais pela Primeira Guerra Mundial e pela Guerra Civil. O desafio era imenso, mas o desejo de construir o primeiro sistema de saúde público e universal estimulava as melhores cabeças da URSS.

Semashko baseava o novo modelo de atenção à saúde nos processos políticos que se desenvolviam no país, como a organização dos sovietes, seguindo os princípios da organização e centralização da atenção médica, igualdade do acesso a todos os cidadãos, métodos e tratamentos de prevenção unificados, enfrentamento das bases sociais das doenças e participação popular na tomada de decisões relacionadas à saúde. 

Um amplo sistema de educação em saúde também foi construído, com o intuito de transmitir os princípios fundamentais que toda a população necessitava para um cuidado de saúde mais qualificado. Medidas como a legalização do aborto acompanharam amplas campanhas de educação sexual. Estavam lançadas várias das bases do que posteriormente ficou conhecida como atenção primária à saúde. Foram instituídos centros de pesquisas para os problemas mais urgentes e a indústria farmacêutica foi nacionalizada, visando produzir os medicamentos necessários ao controle das diversas doenças que explodiam em solo soviético.

Não podemos deixar de lembrar também a preocupação com os diversos aspectos que compõem uma vida rica, tais como a prática de esportes, lazer e cultura. Os bolcheviques tinham uma atenção especial aos indivíduos com deficiência física, formulando políticas que aumentassem o acesso aos diversos bens sociais e culturais.

É preciso notar, assim, como o imenso avanço da Revolução Russa foi representativo para os povos da União Soviética, mas também como serviu de exemplo para a classe trabalhadora e para os oprimidos de todos os países do mundo. O sistema de saúde soviético alcançou uma forma muito avançada de organização da saúde, dando atenção aos aspectos coletivos e singulares do processo saúde-doença.

Certamente, o período pós-revolucionário foi marcado por diversas contradições na sociedade soviética, com avanços e recuos nas pautas aqui elencadas. Há que se destacar especialmente a diminuição da participação popular nas decisões mais importantes, além da aproximação das práticas de saúde coletiva de processos marcadamente higienistas em saúde. Todavia, o grande aumento na expectativa de vida populacional, a garantia universal de acesso a diversos serviços de saúde, de cultura e de lazer, além do incremento na visibilização de populações antes marginalizadas, constituem marcos históricos da experiência soviética.

O processo de restauração capitalista nos países da antiga URSS levou enormes contingentes populacionais a perder os direitos mais básicos. O fortalecimento da lógica mercadológica imprime contornos ainda mais trágicos ao que resta de tal experiência. Cabe a todos nós, trabalhadoras e trabalhadores de todas as populações oprimidas, criticar ferozmente os retrocessos capitalistas, resgatando todas as diversas experiências do campo socialista que apontaram para um sistema de saúde mais compatível com os interesses de tais populações. É no resgate dessas experiências que podemos observar os limites absolutos que o sistema capitalista coloca ao campo da saúde.

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