Uma necessidade para o trabalho de cuidado da mulher 

Por Amanda Neves e Bernardo Ramos

Para as mulheres, não basta exercerem suas profissões, pois é socialmente construído que elas necessitam realizar outros trabalhos paralelos, por exemplo, as atividades domésticas, prestando atenção e amparo às pessoas idosas, bem como, nos cuidados com filhas e filhos. Essas são algumas das situações que configuram o trabalho sexualmente condicionado que as sobrecarrega, seja por ausência do parceiro pelas mais variadas situações, ou ainda, por negligência masculina no cuidado cotidiano com as crianças ou com outras tarefas de reprodução da vida social.

As atribuições femininas ainda sofrem modificações quando consideradas determinações como a raça e a classe dessas mulheres. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre o período de 2012 e 2022 a quantidade de mães solo chegou ao número de 11,3 milhões, das quais, 90% são mulheres negras (pretas e pardas). Os dados ainda mostram que mais da metade (54,3%) dessas mulheres têm, no máximo, ensino fundamental completo e menos de 14% tem ensino superior.

A compreensão da totalidade na qual se relacionam essas determinações é essencial para expor, entre vários outros aspectos, a invisibilidade ideológica do trabalho de cuidado da mulher, a qual impede materialmente seu reconhecimento enquanto momento fundamental para que as outras esferas sociais possam funcionar. Enquanto humanidade, no entanto, não conseguimos objetivar nenhuma alternativa concreta para o limite que a exclusividade e, consequentemente, a naturalização do trabalho de cuidado como atribuição feminina, impõe ao desenrolar de nossa história, apesar dos intensos debates e tentativas dos últimos cem anos.

Seguimos à procura de uma resposta e, para isso, nos embasamos no legado de grandiosas intelectuais que participaram ativamente desses processos de luta e produção teórica. Junto a elas, discordamos que a alternativa de tal entrave seja a simples divisão igualitária de tarefas de casa e a conscientização individual através de campanhas.

Importante destacar sobre quais mulheres estamos falando, parafraseando a intelectual brasileira Sueli Carneiro. Baseando-se neste argumento, discutiremos papéis desenvolvidos por mulheres cisgênero (mulheres que se identificam com o sexo biológico atribuído a elas em seu nascimento, de acordo com seu aparelho reprodutor) sob a sociabilidade burguesa.

Ainda, as mulheres serão abordadas em contexto de uma relação heteroafetiva, mas não as colocando como universais e negando as demais feminilidades e afetividades, contudo, entendendo que a estas são aplicados argumentos biológicos, e por vezes religiosos (discursos bastante presente em religiões hegemônicas) de seu dever natural em exercer o cuidado. Tal prerrogativa desenvolveu-se historicamente, sobretudo em sociedades ocidentais (parte da Europa e nas Américas), emergindo de forma desigual uma divisão sexual do trabalho que tende a sobrecarregar as figuras femininas com jornadas de trabalho expressivamente maiores que a dos homens.

A socióloga Lélia González (1935-1994) bem colocou que, no Brasil, à época da escravidão, havia duas principais categorias de trabalhadoras escravizadas. Algumas trabalhavam junto aos africanos escravizados (trabalhadoras de eito que executavam tarefas pesadas no campo), enquanto outras atuavam como mucamas. Nessa última posição, realizavam os afazeres domésticos na casa grande, cuidavam e amamentavam os filhas das sinhás, além do trabalho sexual, com o qual eram forçadas a iniciar sexualmente jovens das famílias senhoriais, ou mesmo manter relações com seus senhores e convidados.

Com o fim do regime e com a industrialização do país, houve uma profunda reorganização do mundo do trabalho e da vida em geral, mas muitas dessas tarefas permaneceram sob a responsabilidade das mulheres, sobretudo das mulheres negras. Por boas décadas após a abolição, reservou-se à mulher negra, como expõe nossa socióloga, no imaginário popular e objetivamente por ações de discriminação, dois postos de trabalho, um de doméstica e outro de mulata.

A mulata, nesse caso, seria a mulher socialmente associada ao trabalho sexual, demarcando o lugar hiperssexualizado de seu corpo, como aquela dada à toda sorte de promiscuidade, disponível para atender aos prazeres masculinos (este, compreendido aqui como pertencente ao sistema cisheteronormativo), enquanto o trabalho reprodutivo é majoritariamente atribuído à mulher branca. Para aquelas empurradas ao trabalho doméstico, existe ainda a imposição do cuidado com as filhas e filhos de seus patrões, alimentando ideologicamente o mito de que “nasceram” para isso, o que representa uma dupla naturalização da maternidade para a mulher negra. Naturaliza-se a maternidade de filhos biológicos por serem mulheres e naturaliza-se a maternidade de filhos de terceiros por serem trabalhadoras escravizadas/domésticas.

Por outro lado, destacamos que essas mulheres submetidas à violência escravista, a qual era sustentada ideologicamente por projeções racistas, sempre resistiram. Muitas fugiam da escravidão, sozinhas ou em grupos, auxiliavam na formação de quilombos, em que destacamos a famosa República dos Palmares enquanto o primeiro Estado independente de nosso continente, como Lélia registrou em seus textos, e tomavam parte em revoltas históricas nas quais escravizados foram protagonistas.

Em meio a esse contexto, essas mulheres, quando não participavam diretamente das lutas, como Luísa Mahim na Revolta dos Malês, levavam adiante uma certa resistência pacífica, ainda que inconsciente por vezes, ao transmitirem valores e tradições culturais próprias, como o “pretuguês”, às crianças brancas que criavam e também ao organizarem as casas religiosas enquanto ialorixás. A partir dessas considerações, começamos a reconhecer uma luz ao horizonte, que se encontra não somente na resistência, mas na capacidade de organização e luta dessas trabalhadoras, o que derruba qualquer tese que afirme o caráter pacífico dos escravizados (africanos, crioulos e indígenas).

Em nossa história, como vimos, cristalizou-se a ideia do trabalho de cuidado como exclusividade feminina, em que certamente há um peso maior que recai sobre mulheres negras, mas que não perdoa mulheres da classe trabalhadora no geral. Tornemos então à esfera do trabalho doméstico. Ele é uma pré-condição para o funcionamento do capitalismo, na qual as mulheres são isoladas e alienadas objetivamente e subjetivamente. Vale destacar que a atuação do trabalho doméstico braçal era exercido de formas diferentes de acordo com o lugar social dessa mulher, se nobre, obviamente este não era seu papel.

A partir dessa constatação, a intelectual estadunidense Angela Davis criticou o movimento feminista por reivindicarem a remuneração do trabalho doméstio como saída final para sua exploração. Tal reivindicação desconsidera o fato de que faxineiras e trabalhadoras domésticas no geral, lugar ocupado por trabalhadoras não brancas (mulheres afro-americanas e imigrantes) há décadas, não existem em melhor condição por receberem por seus serviços.

Pelo caráter próprio do trabalho doméstico, que isola e, por ser ainda mais mecânico e repetitivo, carente de novidade e de surpresas, que outras formas de trabalho, se mistura à personalidade degrada a condição humana criativa das mulheres em maior medida que o trabalho industrial externo. Esse mesmo trabalho, quando realizado no mesmo espaço de existência não laboral jamais chega ao fim, em um ciclo apenas momentaneamente interrompido, dia após dia. Nesse sentido, a primeira necessidade que se impõe é a socialização desse trabalho.

A socialização, no entanto, não se basta, pois o trabalho de cuidado reservado à mulher, entre outros campos, além do doméstico, também caracteriza sua principal forma de atuação, socializada por sinal, na área da saúde. Nesse ponto, os números também apontam o percentual de profissionais da Enfermagem, em que 84% dos/as profissionais do ramo que apresentam  nível médio são mulheres, 58% delas são negras, de acordo com levantamento realizado em 2015 pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Concluímos, portanto, que no trabalho de cuidado em saúde, sob a organização hierárquica das atribuições nessa área, predominam as mulheres e, como bem sabemos, mesmo de forma majoritariamente socializada, as condições de realização do trabalho e de existência dessas trabalhadoras continuam a ser precárias.

Ainda que não consiga superar por si só as determinações raciais e de gênero que operam na sociabilidade burguesa, a socialização do trabalho de cuidado representa um avanço com relação a formas pré-capitalistas ao facilitar a organização coletiva das trabalhadoras que o realizam. A esse respeito, a própria Angela Davis alerta para o risco da obsolescência desse forma de trabalho no âmbito doméstico sob o jugo do capital em sua fase monopolista, quando descreve o aparecimento de empresas de fast food, apontando que o trabalho de produção alimentar, por exemplo, poderia realizar-se de forma socializada sem contribuir para a emancipação feminina.

Em suma, defendemos que reivindicações por rede de creches, seguridade, direitos trabalhistas para trabalhadoras domésticas e empregos fora de casa para mulheres são, de imediato, extremamente importantes. A mobilização em torno dessas necessidades concretas, entretanto, deve ser apenas o momento inicial da organização das mulheres trabalhadoras em sindicatos, movimentos sociais e partidos revolucionários, no sentido do objetivo final de erguer uma nova sociedade.

A alienação do trabalho de cuidado, sobretudo em sua forma doméstica, será superada apenas com o fim das relações sociais que constituem o modo de produção capitalista e a sociabilidade burguesa, as quais se apoiam ideologicamente em esquemas de dominação como o racismo, a monogamia e o sistema binário de gênero. Por fim, esperamos que as condições degradantes nas quais o trabalho doméstico se realiza tornem-se obsoletas e passem a uma forma verdadeiramente socializada e livre.

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