Mudanças nas contratações para concessão de serviços que abrem as portas para o setor privado é um dos pontos centrais.
No mês de junho, o governo de Jair Bolsonaro e Mourão aprovaram o novo Marco do Saneamento Básico para o Brasil, a lei nº 14.026 que modifica um conjunto de leis que regulavam o setor em nosso país.
Enquanto a necessidade humana ainda é a universalização do acesso à água, a nova regulamentação tem como foco abrir os caminhos para a iniciativa privada obter concessões nesta área. O anunciado pelo governo é a meta de garantir que 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e a coleta de esgoto até o ano de 2033. Além de facilitar a privatização de estatais, a nova lei prorroga o prazo para o fim dos lixões até o fim de 2024.
O novo marco extingue o modelo atual de contrato entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto. O texto aprovado também estabelece prioridade no recebimento de auxílio federal para os municípios que efetuarem concessão ou privatização dos seus serviços.
A quem interessa o novo marco?
Sem explicar como, o governo tem anunciado a expectativa de lucrar R$700 bilhões, o que torna possível questionar qual tem sido a sua prioridade.
De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento, em 2018, existiam 39,4 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada, cerca de 83% do total, enquanto 101 milhões, mais de 53%, não têm serviços de coleta de esgoto.
Entendendo que a água é um elemento fundamental para a vida humana, esses dados destacam as raízes de diversos problemas sanitários enfrentados pela classe trabalhadora, principalmente neste momento de pandemia da Covid-19. O processo de interiorização da doença no Brasil tem elevado o número de mortes diariamente, já são 100 mil óbitos nesta primeira semana de agosto. O combate ao coronavírus depende diretamente do acesso à água e isso tem tornado a sua letalidade ainda mais brutal em regiões periféricas.
Sob a farsa de que a população será beneficiada, o projeto não apresenta nenhuma política efetiva para as áreas mais carentes desses serviços, que são os pequenos municípios, áreas rurais e periferias das grandes cidades. Com isso, atendimento nesses lugares, que dependem de amplo investimento onde as tarifas não cobrem custos e os serviços não apresentam o lucro pretendido pelas empresas privadas, continuarão desatendidos.
Em seu boletim informativo, o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado da Bahia (Sindae) divulgou a pesquisa do Instituto Mais Democracia: “Quem são os proprietários do saneamento no Brasil?” na qual foi apontada que 58% dos grupos atuantes neste setor possuem fundos de investimento e instituições financeiras entre seus controladores, sendo que dois dos maiores – BRK Ambiental (ex-Odebrecht Ambiental) e Iguá Saneamento (ex-CAB, da Queiroz Galvão) – são totalmente controlados por instituições financeiras. Além disso, o capital estrangeiro está presente em 27% das empresas, mas participa como sócio majoritário ou minoritário de quatro líderes do segmento: Aegea (Fundo Soberano de Cingapura e Banco Mundial como minoritários), BRK (controlada pelo Fundo canadense Brookfield), Grupo Águas do Brasil (corporação japonesa Itochu, minoritário) e GS Inima (controlado pela sul-coreana GS).
Ao mesmo tempo que os defensores do novo Marco constroem a falácia da boa vontade das empresas privadas em investir no saneamento básico de um país, o que as experiências em outros países revelam é a movimentação das empresas que perdem espaço em seus países de origem e passam a procurar territórios alternativos para continuar lucrando no mercado. Estudos da Transnational Institute – TNI apontam que priorização do lucro por parte das empresas é conflitante na maior parte das vezes e tem ocasionado em um movimento de reestatização por todo o mundo. Na Europa, só Alemanha e França já desfizeram 500 concessões e privatizações do gênero. Bolívia, Canadá, Índia, Estados Unidos, Argentina, Moçambique e Japão também caminham nesse sentido.
O Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento realizou um levantamento indicando que o investimento no saneamento por pessoa na rede pública é de R$ 405,00, enquanto na rede privada é de R$ 377,00. Já em relação à tarifa cobrada, a média per capita do setor público é de R$ 3,78 e do setor privado R$4,72.
O que fica escancarado é que mais uma vez os grandes empresários querem fazer a festa com o dinheiro dos trabalhadores. Assim como as demais experiências de gestão privada em serviços essenciais, a população mais pobre será a principal atingida, com tarifas cada vez mais altas para garantir o lucro dos grandes empresários.
E a Bahia?
Na Bahia, o setor também está sendo empurrado para o capital privado. Enquanto nacionalmente o Partido dos Trabalhadores publiciza o fato de terem votado em bloco contra o novo Marco do Saneamento Básico, o governador Rui Costa (PT), não tem escondido sua vontade de acelerar o processo de abertura de capital da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A. – Embasa.
Em março deste ano, foi publicado no Diário Oficial uma Manifestação de Interesse Privado – MIP, em que a estatal apresenta o requerimento da empresa Saneamento Ambiental Águas do Brasil S/A (SAAB), sediada no Rio de Janeiro. O objetivo é a apresentação de estudos para a universalização dos serviços de esgotamento sanitário, assim como gestão do abastecimento de água na cidade de Feira de Santana e outros municípios da região, como Amélia Rodrigues, Conceição da Feira, Conceição do Jacuípe, São Gonçalo dos Campos, Tanquinho, Riachão do Jacuípe, Santa Bárbara, Santo Estevão e Santanópolis.
Enquanto isso, o governador tem apostado na mudança dos gestores da Embasa para colocar em prática o seu antigo projeto de abertura do capital. Dois anos atrás, ele tentou colocar ações da Embasa na recém criada Bahiainvest. A tentativa só não se concretizou devido à mobilização e resistência dos movimentos sociais e trabalhadores do setor.
O levantamento do estudo de domicílio do IBGE, de 2019, revelou que no Nordeste, um em cada quatro domicílios não contavam com frequência diária de abastecimento, apenas 69% dos domicílios contavam com água diariamente. E, de acordo com Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento – SNIS, no ano de 2018, só 81,6% da população da Bahia tinha acesso ao abastecimento de água potável.
Deixando de lado a necessidade concreta do povo baiano como acesso à água, Rui Costa debate a questão apenas com a linguagem do mercado, ou seja, o quanto é possível lucrar com este serviço.
No mês de julho, seguindo a política de Jair Bolsonaro, escolhendo operadores do setor privado para preparar as estatais para a privatização, Rui Costa nomeou o engenheiro Cláudio Villas Boas, que iniciou a carreira na Odebrecht Ambiental, a qual foi vendida para o fundo de investimentos canadense Brookfield, que criou a BRK Jaguaribe, onde Vilas Boas esteve atuando até fevereiro de 2019.
Segundo o Sindae, a manobra em curso vai implicar num gravíssimo prejuízo: ao ter ações negociadas no mercado, a imunidade tributária da empresa pública é perdida, tendo essa, portanto, que pagar cerca de R$ 1 bilhão por ano de impostos (PIS/Cofins, IPTU etc). Além de não investir em infraestrutura social, o governo quer retirar do orçamento da empresa muito dinheiro, que deixará de ser investido em saneamento básico.
Ainda pode piorar!
Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), estima-se que o país possua cerca de 12% da disponibilidade de água doce do planeta. As duas maiores reservas de água do planeta, os aquíferos Guarani e Alter do Chão, também estão no Brasil. Os conflitos pelo uso da água têm crescido a cada ano, como aponta a 34ª do relatório “Conflitos no Campo-Brasil”, no ano de 2019 aumentou em 77% o número de casos em relação a 2018.
Diante de uma abundância deste recurso natural, o representante fiel do capital estrangeiro, o senador do Ceará, Tasso Jereissati (PSDB) tem realizado movimentação do projeto de lei 495/2017, que cria o Mercado das Águas visando “priorizar o uso múltiplo e a alocação mais eficiente dos recursos hídricos, bem como para criar os mercados de água”, facilitando a exploração de rios e fontes hídricas pelas empresas, do qual ele é relator. O senador tem a maior fortuna declarada pela justiça eleitoral e tem relação direta com o grande monopólio de bebidas Coca Cola.
Entrevista com Sofia Manzano:
A privatização da água no Brasil é uma das faces mais brutais do projeto neoliberal. Como pode ser entendido o processo de privatização de um dos bens básicos para reprodução da vida?
Nesse capitalismo decrépito, cada vez mais fica evidente que o sistema funciona em função do lucro e não da humanidade. Assim, tornar tudo mercadoria, inclusive e principalmente o que é essencial para a vida é, e será, a sua estratégia. A água é essencial para a reprodução da vida humana tanto quanto o alimento e, nesse sistema, tudo é apropriado pelo capital para gerar lucro e a humanidade tem que se submeter a isso, a menos que derrubemos o sistema.
Segundo os defensores do novo Marco do Saneamento Básico no Brasil, a concessão dos serviços locais à iniciativa privada não será obrigatória e não enfraquecerá as públicas. Com o novo Marco, empresas públicas e privadas estarão, de fato, em pé de igualdade pelo princípio da concorrência?
As empresas estatais e privadas nunca estão em pé de igualdade se os ocupantes de cargos públicos utilizam do poder para favorecer o setor privado. Por exemplo, em São Paulo, a SABESP, que é a principal empresa de fornecimento de água, já opera com ações em bolsa desde 2002, ou seja, é uma empresa pública, mas atende aos interesses dos acionistas, mesmo que estes não sejam majoritários. Isso fez com que a gestão hídrica [AP1] na Grande São Paulo entrasse em colapso em 2014 e até hoje não foi normalizado. Todos os anos a empresa distribui dividendos aos acionistas e grande parte da população, principalmente nos bairros mais pobres, são submetidos a um racionamento não declarado, ou seja, falta água, mas o Estado não se responsabiliza por isso.
Na Bahia, o governo Rui Costa considera que a abertura de capital não é uma forma de privatização da Embasa. O mesmo acontece diversas empresas estatais no Brasil. No que de fato consiste isso? (reformular)
Na Bahia o novo marco regulatório vai ser desastroso não só para as famílias no abastecimento residencial, mas, sobretudo, para o pequeno agricultor familiar, que vai ser cobrado pela utilização da água (mesmo que dos açudes e dos rios) para o cultivo. Rui Costa sabe disso, mas está defendendo o interesse do agronegócio e das grandes indústrias que utilizam muita água no processo produtivo, como a indústria de cerveja e alimentos em geral.
Como o projeto econômico de Bolsonaro, Mourão e Guedes intensifica o processo de exploração no Brasil? O que isso representa no processo de subjugação do Brasil ao grande capital?
O Brasil tem um capitalismo subordinado e dependente ao capital internacional e isso, com mais ou menos intensidade, impacta na vida da população no decorrer dos governos, sendo eles de extrema-direita, direita, ou mesmo, do campo da democracia formal. Nunca houve um governo que ousasse enfrentar, mesmo na ordem do capital, essa relação de subordinação e dependência. Esse novo marco regulatório da água é apenas mais um instrumento de aprofundamento dessa relação. Precisamos ter um governo do Poder Popular que enfrente essa relação e imponha o arcabouço legal a serviço dos interesses da maioria da população.
Mudança em contratos
Atualmente as cidades firmam acordos direto com empresas estaduais de água e esgoto pelo chamado contrato de programa, que contêm regras de prestação e tarifação, mas permitem que as estatais assumam os serviços sem concorrência.
O novo marco extingue esse modelo, transformando-o em contratos de concessão com a empresa privada que vier a assumir a estatal, e torna obrigatória a abertura de licitação envolvendo empresas públicas e privadas.
Os atuais contratos de municípios com estatais de saneamento, geralmente estaduais, serão mantidos até o fim do prazo pactuado.
Também poderão ser renovados pelas partes por mais 30 anos até 30 de março de 2022.
A mesma possibilidade se aplica às situações precárias, nas quais os contratos terminaram, mas o serviço continuou a ser prestado para não prejudicar a população até uma solução definitiva.
Os novos contratos deverão conter a comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada seja por recursos próprios ou por contratação de dívida.
Essa capacidade será exigida para viabilizar a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033.
Blocos de municípios
Outra mudança se dará no atendimento aos pequenos municípios do interior com poucos recursos e sem cobertura de saneamento.
Pelo marco, terão de ser constituídos grupos ou blocos de municípios, que contratarão os serviços de forma coletiva. Municípios de um mesmo bloco não precisam ser vizinhos.
O bloco, uma autarquia intermunicipal, não poderá fazer contrato de programa com estatais nem subdelegar o serviço sem licitação. A adesão é voluntária: uma cidade pode optar por não ingressar no bloco estabelecido e licitar sozinha.
O modelo funciona hoje por meio de subsídio cruzado: as grandes cidades atendidas por uma mesma empresa ajudam a financiar a expansão do serviço nos municípios menores e mais afastados e nas periferias.
Subsídios
Famílias de baixa renda poderão receber auxílios, como descontos na tarifa, para cobrir os custos do fornecimento dos serviços e também gratuidade na conexão à rede de esgoto.
Lixões
O projeto estende os prazos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305, de 2010) para que as cidades encerrem os lixões a céu aberto.
O prazo agora vai do ano de 2021 (era até 2018), para capitais e suas regiões metropolitanas, até o ano de 2024 (era até 2021), para municípios com menos de 50 mil habitantes.
Nova tarifa
Os municípios e o Distrito Federal deverão passar a cobrar tarifas sobre outros serviços de asseio urbano, como poda de árvores, varrição de ruas e limpeza de estruturas de drenagem de água da chuva.
Se não houver essa cobrança depois de um ano da aprovação da lei, isso será considerado renúncia de receita e o impacto orçamentário deverá ser demonstrado. Esses serviços também poderão integrar as concessões.
Regulação
A regulação do saneamento básico será de responsabilidade da Agência Nacional de Água (ANA). Agências reguladoras de água locais serão mantidas.
Plano de saneamento
O projeto exige que os municípios e os blocos de municípios implementem planos de saneamento básico.
A União poderá oferecer apoio técnico e ajuda financeira para a tarefa. O apoio, no entanto, estará condicionado a uma série de regras, entre as quais, a adesão ao sistema de prestação regionalizada e a concessão ou licitação da prestação dos serviços com a substituição dos contratos vigentes.
FONTE : CONGRESSO EM FOCO