Por Cleide de Lima Chaves
“Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína”
(Caetano Veloso, música Fora da Ordem)
No dia 06 de novembro, a população baiana foi surpreendida com o anúncio do leilão do prédio onde está abrigado o Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), a segunda maior instituição arquivística do país e uma das maiores do mundo. Ele armazena mais de 40 milhões de documentos, que ajudam a contar a história do estado e do país.
Mas como um prédio histórico, construído no século XVI e tombado pelo IPHAN em 1949, foi a leilão? O terreno da Quinta do Tanque – como é conhecido o prédio do APEB – foi penhorado em um processo judicial contra a Bahiatursa, movido pelo escritório TGF Arquitetos Ltda. Uma ação foi movida, em 1990, na 3ª Vara Cível da Capital pelo escritório com um pedido de indenização pelo não pagamento de projetos entregues à Bahiatursa que, na época, alegou a inexistência de contrato e disse que os projetos tinham sido apresentados espontaneamente. Em 2005, a Bahiatursa ofereceu – absurdamente – à penhora alguns de seus imóveis, incluindo a Quinta do Tanque. A dívida foi se acumulando e chega agora a cerca de R$50 milhões. O imóvel em questão está avaliado em até R$ 12.575.829,62.
Graças à mobilização de diversas associações científicas e culturais, Universidades e fóruns ligados à preservação do patrimônio histórico, o juiz de direito George Alves de Assis, no dia 08 de novembro, suspendeu temporariamente o leilão do imóvel que abriga o Arquivo Público do Estado da Bahia. De acordo com a decisão, houve a suspensão, no entanto, o juiz acabou mantendo “a alienação do imóvel que compõe o Lote 02 do edital anteriormente referido. Acolho também o pedido ministerial para determinar seja oficiada a Fundação Pedro Calmon, gestora do APEB, para apresentar plano de salvaguarda e remoção do acervo, no prazo de 60 dias”. No entanto, o prédio permanece em risco, haja vista que foi estabelecido um prazo para remoção do acervo, mas o leilão continua mantido.
A repercussão – negativa para o governo Rui Costa – fez o governo se pronunciar, no dia 10 de novembro, dizendo-se indignado com o ocorrido e empurrando a responsabilidade para os governos anteriores. No entanto, cabe questionar como esse governo não sabia desse leilão e das dívidas? A quem interessa deixar correr, sem intervenção anterior, um leilão de um prédio de valor histórico incalculável como a Quinta do Tanque? Ficam aqui alguns questionamentos…
Como isso foi acontecer? Em primeiro lugar, vale a pena debater acerca do que significa um patrimônio e porque alguns espaços e prédios são considerados tombados e importantes e outros não. Podemos dizer que há dois tipos de patrimônio: o oficial, aquele que legalmente reúne poucos e escolhidos bens eleitos, pelo poder político, como preserváveis à posteridade e o não oficial, ou seja, aquele que é reconhecido por determinados grupos ou por um conjunto de uma população, mas que não tem o aval das autoridades ou do poder público.
Quem escolhe os patrimônios oficiais e como essas escolhas são feitas? É importante destacar que a produção do patrimônio – seja ele material ou imaterial – não é uma operação inocente e a determinação e o valor patrimonial se inscrevem em um jogo político e histórico. Historicamente, os prédios e a cultura colonizadora e europeia foram selecionados como patrimônio oficial na maior parte das regiões do Brasil, enquanto a arquitetura, a cultura e a herança africana e indígena passavam ao largo dessas “escolhas”.
Embora discordemos e critiquemos sobre as “escolhas” políticas e o que tem sido preservado ou se tornado patrimônio público ao longo de nossa história, é importante destacar que, para o caso do Arquivo Público do Estado da Bahia, este abriga uma documentação que conta não somente a história dos opressores e dos colonizadores, mas também a história dos vencidos, dos trabalhadores e das trabalhadoras e suas lutas e resistências, como é o caso da Revolta dos Búzios, dos Malês e de tantas outras manifestações combativas do povo brasileiro. Por isso, podemos e devemos defender a preservação deste patrimônio, mesmo contendo tantas contradições e peculiaridades. A defesa pela manutenção do prédio e da documentação não visa a valorização da memória – que está sempre em disputa –, mas busca proporcionar o debate e descortinar os processos históricos de seleção, atribuição de valores e silenciamentos, em especial da população trabalhadora.
Ainda que um considerável número de patrimônio oficial esteja ligado à dominação portuguesa e ao modelo cristão, colonial, racista e patriarcal reconhecidos no país, atualmente a lógica da ordem do capital cada vez mais devora tudo à sua volta, mesmo aqueles ditos símbolos que contribuem para justificar a dominação e exploração da classe trabalhadora brasileira. A geógrafa Simone Scifoni (2019, p. 27) destaca a necessidade de politizar o debate em torno do patrimônio pois, de acordo com ela, “é preciso explicitar que, também, se torna sujeito da destruição do patrimônio a própria instituição que deveria preservá-lo, na medida em que se opta por favorecer determinados interesses econômicos ou políticos em detrimento da missão que é a proteção aos valores culturais”.
É o caso, por exemplo, da situação do Palácio Rio Branco, que está sendo desapropriado em vistas de se tornar um hotel de luxo. O projeto do hotel deu entrada no IPHAN em 2019 e já está APROVADO. Ao buscar setorizar o conjunto que compõe o Palácio Rio Branco, o governo do Estado está realizando uma apropriação, mesmo que legitimada pela legislação utilizada, da cultura de um lugar importante para a História da Bahia. O Palácio Rio Branco já conta com tombamento pelo IPHAN, pois faz parte do conjunto arquitetônico do Centro Histórico de Salvador, bem de singular valor cultural, que integra a Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO. Dessa forma, o art. 11 do Decreto-Lei nº 25/1937 proíbe a venda de imóveis públicos tombados a agentes privados, ao dispor que “as coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades”.
No entanto, mesmo com uma legislação que protege esse patrimônio, o mesmo está sendo desapropriado, numa explícita atitude privatista e de atendimento aos interesses econômicos do capital internacional, promovendo aquilo que Simone Scifoni (2015, p.211) denominou de ajuste do patrimônio, que “compreende um conjunto de mecanismos por dentro do Estado e por meio dele, com o objetivo de viabilizar a aprovação de empreendimentos privados e grandes projetos públicos que, pelas práticas institucionais apoiadas na expertise no campo do patrimônio ou pelo corpus legal, não seriam possíveis anteriormente. O ajuste permite produzir legalidade onde antes não existia tal possibilidade e, com isso, garantir a realização do valor e o lucro máximo na produção imobiliária a partir do momento em que elimina uma barreira ou obstáculo: o patrimônio”. Todo esse ajuste está sendo feito para promover a apropriação privada do grande capital do espaço público urbano, privatizando o que antes era acesso de todos e todas, para monopolizar, dentre outras coisas, a deslumbrante vista da Baía de Todos os Santos para os “privilegiados” que detém o capital manchado de sangue e suor do povo indígena e afro-descentes deste país.
Referências:
SCIFONI, S. Patrimônio como negócio. In: CARLOS, A.F.A. et al. (Org.). A cidade como negócio. São Paulo: Contexto, 2015.
________ . Conhecer para preservar: uma ideia fora do tempo. Revista CPC, [S. l.], v. 14, n. 27esp, p. 14-31, 2019.
Mas é revoltante! E personagem fictícia como eu, fica arrancando os cabelos e derramando grossas lágrimas de raiva, sem poder fazer absolutamente nada! Odeio essa tal de democracia, afffff