Por Manuella Logrado
Há cerca de 3 anos, a rua Monsenhor Rubens Mesquita, no bairro do Tororó, é palco de uma disputa judicial que mostra mais e mais o seu caráter essencialmente político. A população vem resistindo à ofensiva da Prefeitura Municipal de Salvador, que pretende desapropriar os moradores para viabilizar a construção de um Shopping Center no lugar de suas casas, próximo à Estação da Lapa, com um enorme fluxo diário de pessoas – o que aguça os interesses da iniciativa privada e da especulação imobiliária.
Apesar de essa situação ter suas raízes fixadas no ano de 2013, com a pandemia de COVID-19 e a decisão judicial proferida em março de 2021 ela vem ganhando novos contornos, desfavoráveis aos moradores da região – que agora se vêem na incontornável luta de ocupação e resistência pelo direito à cidade e à moradia em meio à maior crise sanitária enfrentada pelo Brasil.
Para entender essa disputa e as suas incongruências, necessária se faz a compreensão da natureza legal dessa área do Tororó, bem como dos caminhos que conduziram até a atual situação, onde uma decisão judicial completamente arbitrária deixou de apreciar os diversos fundamentos propostos pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – hoje, representante das famílias que residem no local.
Desde o início dos anos 2000, a região – hoje compreendida pela Rua Monsenhor Rubens Mesquita, que compõe a ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) do Tororó – começou a ser ocupada por diversas famílias, que foram progressivamente se instalando na localidade e criando condições de sobrevivência com recursos próprios e sem qualquer oposição por parte da Prefeitura, esta que, inclusive, se fez deveras ausente na estruturação da localidade, lentamente adequada pela população que ali começou a residir.
As casas de alvenaria construídas com muito zelo, e até mesmo a infraestrutura externa, como elementos de viabilização da circulação de pessoas e interligação das moradias, escadarias, encanamento e iluminação foram sendo arcadas pelas próprias famílias, que ocuparam pacificamente a região. Tais fatos restam evidentes em nota técnica emitida pelo Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Estado da Bahia (SINARQ) para compor anexo do apelo judicial da DPE/BA junto ao Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
A infraestrutura montada pelos moradores – que não contou com técnicos e urbanistas do aparelho municipal soteropolitano -, apesar de deficitária pela sua própria natureza de construção artesanal, demonstra os efetivos esforços e recursos despendidos pela comunidade para tornar a área própria a habitação. Este fato foi reconhecido pela Prefeitura Municipal de Salvador, ao classificar a região como uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) através Lei n.º 9.069 de 30/06/2016, que dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador (PDDU).
A Constituição Federal de 1988, bem como o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) trouxeram ao ordenamento jurídico uma imensa gama de princípios e instrumentos norteadores do desenvolvimento urbano, observando a dita função social da propriedade, que consiste em uma condicionante supraindividual ao direito à propriedade respeitando-se, portanto, o interesse coletivo. Deste modo, todo o desenho legal do nosso ordenamento jurídico, tendo como marco a constituição de 1988, vem no sentido de criar condições e instrumentos para que se faça cumprir a função social da propriedade dentro do contexto de desenvolvimento urbano.
Apesar do lapso temporal entre a Constituição de 88 e o Estatuto da Cidade, existe um caráter de complementação entre ambos no que tange a ideia de desenvolvimento urbano e direito à cidade, de modo que é justamente através do instrumento infraconstitucional da Lei 10.257/2001 que são instituídas as chamadas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), como pode se ver da redação expressa do seu art. 2º:
Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia […]
[…]
Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
[…]
V – institutos jurídicos e políticos:
[…]
f) instituição de zonas especiais de interesse social;
As ZEIS formam uma categoria especifica de zoneamento urbano, demarcadas dentro desse espaço com o objetivo de promover o desenvolvimento da cidade conjugado à proteção da população com vulnerabilidade socioeconômica que a ocupe. Na prática, isso significa que tais zonas ganham uma proteção especial pela legislação, que também é aplicada de maneira especial, reconhecendo áreas ocupadas por população de baixa renda ou que venham a ser destinadas a programas de habitação, promovendo, assim, o princípio constitucional da função social da propriedade.
Sendo assim, quando a Prefeitura de Salvador, em 2016, ao instituir o seu Plano Diretor (PDDU) através da Lei n.º 9.069/2016 reconheceu a área contemplada pela Rua Monsenhor Rubens Mesquita como uma ZEIS, o Poder Executivo Municipal legitimou a ocupação popular que, a partir desse momento, foi revestida pela proteção do Plano Diretor.
O PDDU enuncia, inclusive, a regularização das edificações da área concluídas até a data da publicação da referida lei, conforme pode se extrair dos arts. 70º e 71º do referido diploma legal:
Art. 70º. Fica isento da incidência de taxas municipais o licenciamento de construção, reforma, ampliação e melhoria de edificação residencial unidomiciliar, localizada em ZEIS, desde que o interessado não tenha outro imóvel no Município.
Parágrafo único. Serão regularizadas pelo Executivo, para fins urbanísticos, as edificações existentes nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), concluídas até a data de publicação desta Lei, observado o disposto no art. 59.
Art. 71º. O Executivo Municipal deverá promover a regularização fundiária – urbanística e jurídico-legal – dos assentamentos precários urbanizáveis, por meio dos seguintes instrumentos:
I – Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS);
Em linhas gerais, o reconhecimento da região do Tororó na condição de ZEIS, implica diretamente na regularização fundiária das edificações instaladas na área da ocupação por parte do Executivo, ou seja, implica num regime especial de reconhecimento e regularização do território com o escopo de dar cumprimento ao quanto formulado pela Constituição de 88 e pelo Estatuto da Cidade no que tange as diretrizes de desenvolvimento urbano e função social da propriedade.
Contudo, apesar de a normativa clara e expressa que se extrai do PDDU municipal, o Executivo manteve-se oportunamente inerte em relação à regularização das edificações ali instaladas pela população na área identificada como ZEIS 1 nº 27, consoante com o Plano Diretor da cidade de Salvador. Isto é: existe, na essência, uma contradição entre o reconhecimento da área como de proteção especial ao desenvolvimento urbano – no sentido de um balanço das desigualdades na arquitetura e no direito à cidade, e o descumprimento à diretriz de regulação, por inércia do Executivo, quanto ao determinado no mesmo Plano Diretor que reconheceu as ZEIS do Tororó.
É nesse contexto que começa o conflito acerca da ação de reintegração de posse, movida pela Prefeitura, em face das famílias que residem na região reconhecida como ZEIS do Tororó pelo Plano Diretor Municipal.
O conflito, que traz efeitos judiciais à comunidade do Tororó em 2017, na verdade, tem sua origem no Projeto de Lei (PL) 903/2013 que tinha a intenção de conceder a Estação de Transbordo Clériston Andrade (Estação da Lapa) à iniciativa privada para controle e gestão, sendo tal projeto aprovado posteriormente em 2014 através da Lei 8.545/2014.
Com a referida lei e a consequente concessão de uso e gestão da Estação da Lapa, também veio o Decreto Municipal 25.268/2014, onde em seu art. 1º estabelece a concessão de direito real de uso dos terrenos anexos à Estação pela iniciativa privada, sem, contudo, delimitar qual área seria esta e qual a afetação de imóveis da região, sendo tais contornos apenas apresentados no contrato nº 0001/2015 firmado entre a Secretaria Municipal de Mobilidade (SEMOB) e a empresa Nova Lapa Empreendimentos Spe S.A., através de licitação, sem qualquer indicação de mapa, tão somente através de coordenadas geográficas.
Curiosamente, apesar de o reconhecimento da região do Tororó como ZEIS e da não-definição legal da área anexa à Estação da Lapa, que teria direito real de uso concedido à iniciativa privada, o contrato firmado através do processo licitatório engloba uma área muito maior do que a que contempla a Estação da Lapa, pois concede direito real de uso de moradias firmadas antes mesmo do ano de 2014 na região, não existindo qualquer coerência entre o Plano Diretor, a Lei que estabeleceu a concessão de uso e o contrato firmado com a concessionária Nova Lapa, como pode se extrair de comparativo por ilustração realizado em nota técnica da SINARQ nos autos da reintegração de posse da referida área:
Com a concessão de uso da Estação da Lapa à iniciativa privada por 35 anos através da Lei 8.545/2014 na figura da empresa Nova Lapa, possibilidades de exploração da área se abriram e, assim, surgiu o projeto de construção de um novo centro comercial na localidade, chamado “Shopping Estação”, que aproveitaria o volumoso fluxo direto de pessoas na Estação da Lapa e seria edificado em sobreposição à parte da região das ZEIS do Tororó, conforme planta de fachada arquitetônica divulgada pela própria Prefeitura Municipal de Salvador, mesmo este sendo um local onde residem diversas famílias há mais de 15 anos.
Diante de todas estas circunstâncias, foi movida ação de reintegração de posse da área referente à Rua Monsenhor Rubens Mesquita (ZEIS do Tororó) pela Prefeitura Municipal de Salvador no ano de 2017 contra as 47 famílias constantes em cadastro da Prefeitura. Estima-se que o impacto seja a um número muito maior do que os das famílias que integram o processo judicial, além dos prejuízos permanentes à comunidade local que tem suas raízes culturais fincadas no Tororó há mais de uma década.
O processo judicial de reintegração de posse que se iniciou em 2017, inaugurou um período de grande insegurança para a comunidade da ZEIS do Tororó, que vem, desde então, resistindo e criando mecanismos populares de união e promoção da cultura popular local, dando visibilidade à situação de completa injustiça que permeia a reintegração de posse movida pelo Município de Salvador.
O processo tramitou em primeiro grau sob o nº 057098- 23.2017.8.05.0001 na 8ª Vara da Fazenda Pública na comarca de Salvador, tendo inclusive parecer favorável emitido pelo Ministério Público em seus autos (PARECER No. 10083/2018, ID 2292660, p.15/17) ante o grave risco de irreversibilidade da medida liminar de reintegração de posse. Nesse sentido, a liminar (medida de tutela antecipada) foi negada pelo juiz de primeiro grau, pois ele compreendeu existência de posse mansa e pacifica (instituto da posse velha) pelos moradores da comunidade, e entendeu ainda que não teria a Prefeitura comprovado posse material dos imóveis, ensejando recurso do Município de Salvador ao Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ/BA).
Em julgamento do recurso da Prefeitura (agravo de instrumento), o TJ/BA decidiu pelo provimento do mesmo com a reversão da decisão liminar, determinando a reintegração de posse das residências da Rua Monsenhor Rubens Mesquita, sob o argumento de que não há que se falar em posse velha de bem público, de modo que a ocupação indevida de bem público configura mera detenção e não posse (Súmula 619 do STJ).
A decisão por si só é contraditória com o que dispõem os diplomas legais acerca da posse em nosso ordenamento jurídico, bem como do ponto de vista de violação do direito à moradia e do direito à cidade, uma vez que a própria Prefeitura de Salvador havia reconhecido em 2016 como ZEIS hoje a área que pretende desapropriar em detrimento de construção de Shopping, que beneficiará diretamente a iniciativa privada com a concessão de direito real de uso local.
O acórdão lavrado pelo TJ/BA foi objeto de incessantes recursos pela Defensoria Pública do Estado da Bahia, que viu as suas teses vencidas em março do corrente ano, em meio à pandemia, eclodindo assim decisão válida, apesar de injusta e viciada, capaz de desapropriar os moradores das ZEIS do Tororó. Moradores que, agora, trabalham coletivamente em formas de resistência à decisão completamente arbitrária, que colocará diversas famílias nas ruas, demolindo seus imóveis por ínfimas indenizações, mesmo com as orientações do STF e do CNJ acerca da vedação à execução de ações de despejo durante a pandemia.
Assim, importa dizer que a execução de tal medida liminar não se confunde com o julgamento do mérito da ação de reintegração de posse, a ser julgada oportunamente, apesar de que o objeto da medida liminar em muito se confunde com o próprio mérito da ação ante a irreversibilidade da medida. Quando são demolidas casas, também são demolidas histórias, laços de vizinhança, vínculos culturais e comunitários de gente que empenhou recursos próprios não só na construção de suas próprias casas, mas também no levante de toda uma comunidade, fato este que foi muito bem retratado no documentário “Nascidos e Vivos da Fonte do Tororó”.
Mesmo em um momento complexo de pandemia, os moradores seguem na estratégia coletiva de resistência, negando acordos indenizatórios individuais já que estes não conseguem contemplar a dimensão do que se está na iminência de perder com a desapropriação da ocupação nas ZEIS do Tororó. No entanto, isso não impede o capital de adentrar pela Rua Monsenhor Rubens Mesquita demolindo as primeiras casas da comunidade.
Em audiência pública realizada em 14 de julho de 2021 onde moradores, associações, coletivos, vereadores e a DPE/BA estiveram presentes, foi amplamente debatido entre os presentes os mecanismos de resistência à decisão do TJ/BA, que deferiu a liminar de reintegração de posse nos imóveis localizados na área em questão. Durante a audiência, moradores relataram a ofensiva da Prefeitura Municipal de Salvador que, dotada de todo um aparato de opressão, já iniciou processos individuais de acordo demolindo casas no local, sendo tal ação amplamente documentada pela comunidade através do canal de comunicação mantido na rede social instagram, na conta @torororesiste.
Nesse sentido, é importante chamar a atenção para a incongruência da decisão que subsidia a desapropriação dos moradores da comunidade das ZEIS do Tororó, que coexiste com orientação do CNJ quanto à não execução de ordens de despejo durante a pandemia e com determinação do STF por liminar do Ministro Luís Roberto Barroso, que suspendeu por seis meses as ordens de despejo, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse coletivas em imóveis que sirvam de moradia ou área produtiva de populações vulneráveis durante o estado de calamidade pública instaurado pela pandemia. A decisão proferida em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828, se funda na atual crise sanitária e risco de contágio em face de uma terceira onda da pandemia.
Despejar famílias, executar reintegrações de posse ou qualquer outro meio de remoção forçada de população em situação de vulnerabilidade socioeconômica de suas moradias, é manifestamente ilegal, e desvela oportunamente o privilégio do lucro acima da vida humana, das relações sociais e do interesse coletivo. É com esta tônica que a Prefeitura Municipal de Salvador, guiada por Bruno Reis (DEM), tem agido ao iniciar demolições de imóveis no Tororó, colocando em situação de insegurança e terror a comunidade que há mais de 15 anos fez daquele espaço urbano o seu lar.
Essa comunidade agora se vê, para além de todos os percalços e temores da pandemia, lutando também pelo direito à moradia digna e acesso à cidade que, fundada na injustiça e desigualdade, encontra em espaços de ocupação como a Rua Monsenhor Rubens Mesquita um mecanismo de resistência e sobrevivência nos desequilíbrios da injusta balança social e vergonhosa distribuição fundiária soteropolitana.
O desenho da disputa nas ZEIS do Tororó sempre foi de extremo desbalanço entre o aparato da Prefeitura Municipal de Salvador e a existência comunitária de pessoas que edificaram naquela rua uma vida inteira de sobrevivência, tendo seu direito à moradia reconhecido e depois arrancado pelo município tão somente em face do interesse financeiro ligado à iniciativa privada.
No atual momento da pandemia e com a decisão validada de reintegração de posse, a disputa ganha novos contornos com o início das demolições de casas contrariando as determinações do STF de maneira arbitrária e confirmando que a gestão municipal de Salvador apenas serve aos interesses dos ricos e dos empresários, e não do melhor interesse da sua população.
A estratégia da ocupação das ZEIS do Tororó é de resistência coletiva de um povo que desde muito cedo teve que batalhar e construir com os próprios braços condições de sobrevivência na Salvador que não aparece nos cartões postais, mas que é a Salvador real, de desigualdades.
O caminho de resistência permeia a existência dessa ocupação que continua aguardando definições de mérito e interpelando, através dos mecanismos institucionais, para que se faça valer as determinações de Despejo Zero do STF, resguardando o seu direito à moradia digna na pandemia, que sequer deveria ser colocado em comparativo ao interesse da iniciativa privada.
A luta da ocupação da Rua Monsenhor Rubens Mesquita é a luta pela moradia, pela cultura popular, pelo povo que resiste e vê diariamente o ordenamento jurídico sendo modelado aos interesses dos mais ricos. O Tororó resiste!