O “metaverso” do Facebook precisa ser parado

O “metaverso” do Facebook precisa ser parado

foto: Kelvin Han

Texto original: Paris Marx
Traduzido do inglês por Rafaela Fraga

 

O “metaverso”, criado pelo fundador do Facebook Mark Zuckerberg, não é uma utopia – é mais uma oportunidade para a Big Tech colonizar nossas vidas em nome do lucro.

Mark Zuckerberg quer nos fazer acreditar que ele descobriu como socializaremos no futuro. Em 28 de outubro, ele demarcou sua visão acerca do metaverso, um ambiente virtual onde podemos passear, comprar e trabalhar. Entretanto, essa realização ainda depende de o Facebook e várias outras companhias adentrarem no espaço do metaverso para desenvolverem as tecnologias que, por sua vez, estarão sujeitas ao público comprar a ideia de passar mais tempo sentado em casa, numa realidade virtual, ao invés de sair para viver o mundo físico.

O Vale do Silício tem um longo histórico de grandes sonhos não realizados, a partir da utopia libertária de que a internet foi concebida, desde seus primeiros dias, como os onipresentes veículos autônomos – que supostamente teriam que substituir a propriedade de automóveis. É provável que o metaverso tenha o mesmo destino, o que, definitivamente, não significa que não haverá impactos. Como Brian Merchant explicou, a indústria tecnológica se vê frente a uma necessidade desesperada de encontrar um novo mecanismo para investir dinheiro, visto que suas grandes apostas da última década falharam. E o metaverso pode ser posto nesse lugar.

Nas últimas semanas desde o discurso de Zuckerberg, outras empresas adotaram aspectos do metaverso, mas também mostraram como o termo pode ser maleável. Em 2 de novembro, o CEO da Microsoft Satya Nadella fez sua própria defesa do metaverso, centrada em empreendedorismo e área de jogos. Ele elencou uma gama de argumentos discutindo que o conceito englobava mecanismos já existentes de chat por vídeo e ferramentas colaborativas, tal qual jogos como Halo e Minecraft, e que esses aplicativos de metaverso seriam aprimorados enquanto empreendimentos virtuais. De acordo com Nadella, o metaverso permite à Microsoft “incorporar a computação ao mundo real e incorporar o mundo real à computação”.

Não estou certo de que é algo tão atrativo como Nadella quer nos fazer acreditar, mas seu foco em jogos e trabalho talvez seja uma boa reflexão acerca do que o metaverso pode representar no fim das contas. Nos resta constatar se todos seremos empurrados para as novas façanhas do mundo virtual assim como aconteceu com a internet, que se tornou parte obrigatória da vida no mundo moderno. Mas será cada vez mais comum observar como as empresas de videogames e os nossos locais de trabalho poderão incentivar ou até mesmo impor o uso dessa nova plataforma.

 

Se inspirando nos jogos

A onda crescente em torno do metaverso é inspirada, em primeiro lugar e acima de tudo, por progressos recentes na indústria de videogames. Não podemos ignorar como a ficção científica de livros como o Snow Crash, de Neal Stephenson – onde o termo “metaverso” se origina – e o Ready Player One, de Ernest Cline – o qual teve cópias entregues a todos os novos funcionários do Oculus Division do Facebook – inspiraram o conceito, mas a influência mais forte foi mesmo dos jogos.

No ano passado, o investidor de risco Matthew Ball escreveu um ensaio prestigiado, onde colocou como ponto central alguns discursos de investidores sobre metaverso e Fortnite. Ele argumentou que “Fortnite emergiu como um jogo, mas rapidamente se tornou um ambiente de socialização”. Jogadores vêm jogar, mas permanecem para interagir nas estruturas virtuais do jogo ou nos espaços adicionais que vão além da experiência royale do centro de batalha de cem jogadores.

Empresas realizaram eventos para promover filmes como Star Wars, e superestrelas como Travis Scott e Ariana Grande fizeram shows virtuais. As corporações também estão dispostas a explorar sua propriedade intelectual, propondo-lhes a criação de itens baseados em sua figura artística para incluir no universo dos jogos, como por exemplo, personagens da Marvel ou DC. Foi dessa maneira que Fortnite acumulou a maior parte do seu capital: jogadores converteram dinheiro real em dinheiro virtual (chamados “V-bucks”), com o qual eles poderiam comprar bens ou bilhetes para batalhas, garantindo crescimento consistente no jogo.

Ball acredita que o metaverso será estendido para além do que atualmente é oferecido em Fortnite, mas vê que o jogo já é uma boa demonstração de “proto-metaverso”, por causa da socialização e da atividade comercial que ocorre lá. Tim Sweeney, CEO da Epic Games, apostou na narrativa do metaverso para angariar mais fundos para sua empresa, mas também se colocou contrário à indústria tecnológica como existe hoje. Ao invés dos ecossistemas fechados, ele defende que o metaverso seja uma plataforma aberta e interoperável.

Como parte dos esforços para mostrar contraste, a Epic processou a Apple por seus termos contratuais na App Store; mas, como notou o juiz responsável pelo caso, a empresa ganharia muito mais se abrisse mão da ação. Isso é reflexo de uma tendência presente na história da indústria tecnológica, onde promessas de abertura e empoderamento individual dão lugar aos interesses empresariais.

Numa escala mais ampla do mundo dos jogos, as empresas EA, Square Enix, Take Two e Ubisoft estão entrando na onda, com recentes afirmações positivas acerca dos NFTs – por sua vez, alimentados pela quantidade absurda de dinheiro que vem sendo investida em jogos baseados em blockchains. Algumas dessas empresas estão considerando desenvolver jogos “play-to-earn” (jogue-para-lucrar), que trazem a fixação especulativa dos NFTs para esse universo, incentivando jogadores a continuarem nos jogos intermitentemente, em busca da chance de conseguir NFTs mais valiosos para revender. Em suma, jogar se tornará seu trabalho, pois os bens virtuais poderão valer quantias grotescas de dinheiro real. Mas o metaverso pode mudar muito mais a forma como as pessoas trabalham.

 

Um novo ataque aos trabalhadores

A indústria da tecnologia tem o histórico de alterar o modo como as pessoas pensam sobre empregos em geral. Nos anos de 1980, as empresas do Vale do Silício eram associadas ao estímulo por menor hierarquia nas estruturas de trabalho – tal qual a Apple, que, no rescaldo da recessão, nasceu como uma gigante econômica, baseando-se em aplicativos de serviço para confundir os trabalhadores, colocando-os como freelancers (autônomos) e, assim, negando-os direitos e benefícios aos quais só teriam acesso como empregados efetivados. Nesse sentido, o metaverso pode mudar as coisas de muitas formas.

De acordo com anúncios recentes da Microsoft, e com o que as salas de trabalho Horizon do Facebook demonstraram, aplicações voltadas para o trabalho são consideradas centrais para o metaverso; mas por que esse interesse repentino em escritórios virtuais? Durante a pandemia, muita força de trabalho – inclusive a daqueles da área da tecnologia – migrou para a modalidade remota com o objetivo de reduzir a propagação da COVID-19, e agora, muitos trabalhadores não querem retornar ao presencial. Empregadores implantaram uma variedade de softwares para seguir os passos de seus funcionários durante o expediente desde que eles passaram a trabalhar de fora do escritório, e as aplicações do metaverso podem oferecer novas e avançadas formas de fazer isso. Se você não pode estar fisicamente no escritório, eles esperam que você esteja virtualmente – e sendo monitorado a cada minuto em que estiver lá.

Mas a transformação pode ser muito mais significativa do que uma mera expansão da vigilância. Empresas como Uber e Amazon não apenas investiram fundo nos sistemas de algoritmos desde os anos 2010 para limitar a autonomia dos trabalhadores e aumentar suas metas de produção; eles também expandiram os números de terceirizados e freelancers através de gigantes da economia e plataformas como a Mechanical Turk. Ball escreveu que o metaverso será “a próxima grande plataforma de trabalho”, enquanto Zuckerberg declarou que ela permitirá às pessoas “estarem no trabalho e em vários outros lugares, não importa onde elas vivam”. 

No contexto da relação do Vale do Silício com trabalhadores contratados e terceirizados, não temos boas notícias. Trabalhadores das gigantes já alertaram que a redução nas suas condições de trabalho foi o primeiro passo no sentido de ampliar as economias das empresas, e que as tecnologias voltadas para o espaço de trabalho lançadas pelos defensores do metaverso podem ser a chave para emplacar o próximo grande assalto aos direitos dos trabalhadores.

Voltando ao play-to-earn, esquemas similares já existem há anos. No início dos anos 2000, trabalhadores envolvidos com garimpo, principalmente do sul global, poderiam ganhar moedas virtuais em jogos multiplayer online, e então as venderiam para jogadores geralmente localizados em mercados ocidentais. Ball usou esse exemplo do que pode ser feito com os trabalhadores no metaverso; mas, como Merchant disse numa entrevista recente ao podcast Tech Won’t Save Us, nessa visão, “disparidades existentes serão consagradas e transportadas para o mundo virtual”. A visão das gigantes para o trabalho virtual pode parecer promissora, mas, em verdade, tornará mais difícil para os trabalhadores lutarem por seus direitos, serem respeitados e terem qualquer benefício perante seus empregadores.

 

O metaverso precisa ser parado

O metaverso é uma visão expansiva, que pode permitir que o digital colonize muito mais aspectos das nossas vidas. Assim como vimos durante a pandemia, as receitas e lucros das empresas de tecnologia subiram quando fomos forçados a passar mais tempo usando serviços digitais ao invés de estarmos fisicamente no mundo. Mas, enquanto o metaverso não alcança as escalas contidas nas visões de Ball e Zuckerberg – se é que um dia alcançará -, isso logo logo poderá ser uma realidade para jogadores e, certamente, para trabalhadores.

Empresas de videogame tiveram sucesso em alterar a forma como os jogos são feitos e em monetizar as estratégias embutidas neles por anos para maximizar os lucros; nesse escopo, as empresas podem facilmente desenvolver serviços obrigatórios e específicos para o uso do espaço de trabalho, assim como eles fizeram com o Slack e o Zoom, dando-lhes um ponto de apoio para expandir ao mercado consumidor. Mas isso não significa que não existem formas de parar tudo isso.

Em 2017, a EA foi forçada a retirar as microtransações e os caixas para saque de Star Wars Battlefront II diante da insatisfação dos jogadores por conta dos recursos de monetização que foram concebidos no modo “pay-to-win” (pague-para-vencer), incentivando as pessoas a gastarem dinheiro real. Após a controvérsia, houve regulamentação em muitos países, e o editor contribuidor da Gamesindustry.biz, Rob Fahey, acredita que os jogos play-to-earn podem enfrentar um escrutínio semelhante. Além disso, há um crescente movimento de trabalhadores da tecnologia, que estão contando com o poder coletivo para forçar um recuo das empresas quando estas ultrapassam os limites éticos ou colocam seus colegas em risco.

O Vale do Silício tende a acreditar que pode fazer o que quiser. Suas maiores empresas ignoraram regulamentações de menor porte, além de terem moldado a forma como nos comunicamos em prol de aumentar seus lucros, a despeito dos danos sociais que causam. Como a pressão pelo metaverso é uma realidade crescente, precisamos estar prontos para nos opor a isso. Mas nós também podemos começar a ir além da visão da indústria tecnológica, que só vê soluções que servem para seus próprios interesses comerciais, e ao invés disso, pensar como a tecnologia pode ser desenvolvida para as necessidades sociais.

Publicação original: Facebook’s “Metaverse” Must Be Stopped

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