Por Camila Oliver.
Dois mil e vinte é ano de eleições municipais. Neste ano completamente atípico por conta da pandemia, assistimos ao aprofundamento dos mais diversos tipos de violência, inclusive, a religiosa. Em uma quadra histórica na qual a política se associou ao mais avassalador fundamentalismo religioso cristão, não se pode lançar o olhar por sobre a cidade de Salvador, histórica e mundialmente conhecida por seu sincretismo religioso, sem discutir Intolerância Religiosa e Racismo Religioso.
Assim, O Momento convidou para esta entrevista o pastor Joel Zeferino. Pastor da Igreja Batista Nazareth (IBN), igreja situada no bairro de Nazaré em Salvador, com 45 anos de existência, conhecida por sua atuação no diálogo inter-religioso e que tem como lema: “Resistência, Luta e Fé”.
Alguns jornais do estado ao entrevistarem o pastor Joel Zeferino o anunciaram como: “O pastor que canta É D’Oxum”, fazendo menção à sua atuação musical em determinado evento ecumênico na cidade de Salvador. Porém, muito mais do que sobre a sua voz ao interpretar a música de Gerônimo, este anúncio trata da atuação em respeito ao “sagrado do outro” que o pastor carioca com muitos anos de Bahia desenvolve à frente da IBN.
Nesta entrevista, tratamos sobre intolerância, violência, fundamentalismos, todavia, tratamos sobretudo de respeito, da celebração da diferença e das poucas, porém potentes, vozes que se levantaram/levantam contra o racismo religioso em nosso estado.
O Momento: Estamos em dias nos quais a questão da Intolerância Religiosa aparece em destaque. Qual a sua opinião sobre os motivos desses ataques que vemos sendo noticiados com tanta frequência?
Joel Zeferino: Para poder explicar, é preciso lembrar que a formação religiosa brasileira se dá a partir de uma matriz religiosa muito perversa. O Brasil foi formado a partir das invasões portuguesas por um tipo de catolicismo, na época muito violento, muito próximo do poder. O tempo passou e algo “interessante” ocorreu: enquanto um setor importante da Igreja Católica vem reconhecendo os erros que cometeram e deu sinais de mudanças, agora é a vez de líderes e grupos evangélicos que começaram a se aproximar do poder e passaram a achar que a fé pode se impor através não da pregação da Palavra, da exposição da fé, do diálogo através da pregação, mas através da força, através da violência, do uso do Estado para fazer com que as pessoas se sintam constrangidas de alguma forma a aderirem à sua fé. O discurso evangélico passa a ser, em si mesmo, violento, intolerante, marcado por esse discurso agressivo, de conquista, de poder e isso alimenta ainda mais essa situação beligerante. Essas “marchas pra Jesus” meio evangélicas, meio militares, essa ideologia da conquista acaba influenciando as pessoas a também tornarem-se violentas, que exacerbam isso nas suas relações pessoais como também nas suas opções políticas.
O Momento: Afinal de contas, a Bahia é a “terra de todos os Santos” como dizem? Há uma verdadeira liberdade religiosa em nosso Estado?
Joel Zeferino: É muito interessante lidar com essa imagem que se tem construído sobre a Bahia – inclusive talvez por causa da influência da literatura de Jorge Amado – como uma terra onde todas as crenças convivem de forma harmônica. Para quem olha a Bahia de fora, há diversas construções imaginárias sobre nosso cenário religioso, aliás. Uma dessas construções é de que a Bahia é um grande Terreiro de Candomblé (o que é dito de forma quase sempre pejorativa) e que a presença cristã é mínima, ou, há quem o diga, até “perseguida”.
Enfim, há que se olhar a realidade a partir dela mesma e não do que é dito sobre ela. E a realidade a gente pode ver, por exemplo, na nossa arquitetura: o “Terreiro” de Jesus é completamente cercado de Igrejas Romanas e nas vielas e becos do nosso Centro Histórico cada vez mais crescem o número de Igrejas cristãs das mais diversas matizes – protestantes, históricas, pentecostais, neopentecostais etc.
Mais do que isso, em que pesem as homenagens e a presença e a contribuição inegável das religiões de matriz africana, em especial o Candomblé e a Umbanda, para toda a formação da Bahia em seus mais diversos aspectos: intelectual, cultural, político, artístico, etc. a representatividade em termos de poder é inversamente proporcional: este pertence a uma elite branca, heteronormativa e cristã.
E quando pensamos que o Cristianismo, que é uma realidade diversa e plural, mas que tem na sua face hegemônica um ranço de intolerâncias e fundamentalismos, percebemos o real: que secularmente perseguidos, o Candomblé, a Umbanda ainda convivem hoje com restrições inúmeras para o exercício de sua prática religiosa – o que vai das ofensas diárias, das especulações imobiliárias sobre os territórios dos terreiros, até aos ataques violentos e até mesmo assassinatos.
Então, não, nós ainda não temos liberdade religiosa em nosso Estado. Essa é uma luta ainda em curso, com muito ainda a ser feito.
O Momento – Mas, há algo positivo a se dizer sobre iniciativas de diminuir essa intolerância?
Joel Zeferino: Sim, com certeza. Há um legado tão grande e bonito de baianas e baianos que marcaram sua trajetória nessa luta, de forma tão heroica, aliás, que talvez também daí haja essa fama “positiva” sobre a Diversidade Religiosa nessas terras. Obviamente, o legado de Jorge Amado e de tantas figuras que há séculos deixaram seu nome na luta contra a intolerância e na promoção da Diversidade não precisa ser repetido aqui. Mas, vale lembrarmos de figuras contemporâneas como Mãe Stella de Oxóssi, líder religiosa desde 1976 do Terreiro Ilê Axé Opó Afonjá – que além do serviço religioso sempre foi reconhecido por seu trabalho social – escritora premiada, membra da Academia Baiana de Letras, foi uma grande teóloga do Candomblé, defendendo ideias inovadoras como o fim do chamado “sincretismo”, que dizia ter tido uma função histórica de resistência no passado, mas que não havia mais necessidade do mesmo: convidava então a retomada dos símbolos originários da sua religião, sem a conversão ou redução dos mesmos à sua versão sincretizada com a fé cristã. Mesmo após a sua partida, o legado de Mãe Stella permanece vivo e sua afirmação da necessidade do resgate dos sentidos originários de sua fé certamente encontram-se com as reivindicações do Movimento Negro sobre a necessidade de se reafirmar a ancestralidade e cultura de África, aviltada e subalternizada numa lógica de um país colonial e racista como o Brasil.
Bem, isso é para mim fundamental na luta contra a intolerância porque, de fato, como é apontado por intelectuais negras(os), o que temos aqui não é meramente “intolerância”, mas sim a operação do Racismo Religioso, como uma das expressões do Racismo Estrutural. Nesse sentido, é certo que para ser superado, é preciso primeiro ser reconhecido, denunciado, enfrentado. E isso, como em todas as outras mudanças de estrutura, nunca vem como concessão daqueles que exploram, mas sim como reivindicação e luta dos que sofrem, como protagonistas, e daquelas e daqueles que reconhecendo privilégios, se tornam aliadas(os).
O Momento – E onde seria possível encontrar os sinais de que há possibilidade de mudanças no cenário do Racismo Religioso?
Joel Zeferino: Como eu disse, há na Bahia um legado muito grande de pessoas e grupos na busca de mudanças, que escreveram páginas belíssimas nessa história. Voltando a figuras contemporâneas que nos deixaram, lembro aqui de Makota Valdina, do Candomblé Tanuri Junsara, com quem tive a honra de integrar o I Comitê de Diversidade Religiosa ligado à Secretaria de Direitos Humanos, do Professor e Historiador Jaime Sodré, Ogã do Terreiro Bogun, e Djalma Torres, apelidado carinhosamente de “Pastor Djalma de Ogum”, que foi pastor por mais de 30 anos na Igreja Batista Nazareth.
Falo desses nomes, mas há certamente muitos outros, para dizer que há sim um amplo movimento de resistência a esse Racismo Religioso e na promoção da Diversidade. Isso se desdobra nas muitas marchas dos povos de terreiro, na defesa de seus territórios e símbolos sagrados e na cobrança de políticas públicas de reparação.
Significa também incontáveis encontros de formação para o respeito e para paz – pois longe de se falar em “tolerância”, o que se exige é verdadeira compreensão e respeito à dignidade e alteridade – promovidos por pessoas e movimentos que se inspiram nessas figuras do passado, que seguem presentes nas Celebrações inter-religiosas, nas muitas formas de aproximação e diálogo.
O Momento: Mas, quais são as ações, para além do campo religioso? O que a sociedade, a política, podem fazer para se superar o Racismo Religioso?
Joel Zeferino: Não é nada simples…. Afinal, se é parte da estrutura, para se mudar efetivamente, só com uma radical mudança na estrutura! Mas, pensando no cenário que temos, há as questões pontuais mais importantes: a efetivação do caráter laico do Estado Brasileiro. Sim, por que embora esteja na Constituição, a efetivação da laicidade do Estado, em suas várias esferas, não é real. Isso passaria por exemplo, pela retirada dos símbolos religiosos de todas as instituições estatais – pois se não há como se garantir a colocação dos símbolos de todas as religiões, é melhor que não tenha nenhuma. O fim de qualquer ensino religioso do tipo confessional. É uma vergonha que uma religião – e falo aqui obviamente da cristã – se utilize dos recursos públicos e do sistema estatal de educação para o doutrinamento de sua fé. Além de um abuso dos recursos públicos, me parece um fracasso moral e mesmo religioso: é prova da incapacidade dessas igrejas em propagar livremente, sem o uso indevido do Estado, a sua própria fé.
É preciso também punir dentro da lei aqueles(as) que praticam atos de intolerância racismo-religiosa. Sabemos que o “Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa”, 21 de janeiro, criado por meio da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, se deu por conta de um crime cometido contra Mãe Gilda, que morreu de infarto fulminante como consequência de ter sua imagem estampada na capa da “Folha Universal”, jornal da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus. A foto colocada de forma indevida, vinha acompanhada da falsa manchete “Macumbeiros charlatões enganam fiéis”. Infelizmente, crimes continuam sendo cometidos – só para lembrar, o busto em homenagem justamente a Mãe Gilda, já foi alvo de ataques por duas vezes, a mais recente agora no dia 15 de julho de 2020. E mais uma vez, há uma imensa dificuldade de se tipificar o crime e de punir quem o comete.
Enfim, superar o Racismo Religioso não é uma tarefa fácil, mas há sim medidas que podem e devem ser tomadas nesse sentido.