Por Milton Pinheiro
Entrevista com a professora e pesquisadora Virgínia Fontes.
O MOMENTO – A conjuntura brasileira está sendo agravada pela condensação das diversas crises, como você examina esse processo?
VIRGÍNIA FONTES – Como na maioria dos países, a pandemia do coronavírus deslanchou uma crise econômica que estava latente e já era prevista por muitos dos analistas econômicos dos grandes jornais proprietários burgueses, como Financial Times, The Economist, etc. O disparador sanitário da covid19 entretanto revelou a face terrível das políticas anteriores de expansão da lucratividade do capital em detrimento dos bens coletivos – como a saúde, educação, transporte, água e saneamento – por exemplo. Essa destruição das conquistas efetivamente democráticas, aquelas que asseguram políticas universais, igualitárias e equitativas, ou expropriações secundárias, teve intensidade e ritmo desiguais nos diferentes países, mas avançou em praticamente todo o planeta.
No caso brasileiro, desde a Constituição de 1988, há um constante processo de destruição das conquistas democráticas, com maior ou menor ímpeto e com efeitos variados, como a contrarreforma do Estado de FHC, o deslocamento do PT para uma posição de ‘esquerda para o capital’ conforme a brilhante análise de Eurelino Coelho, o que garantiu algumas conquistas populares, mas desmontou por dentro a capacidade organizativa e de luta da classe trabalhadora. As características peculiares do golpe-impeachment de Dilma em 2016, consorciando forças díspares, tinham como elemento aglutinador central a intensificação do ataque a quaisquer conquistas de políticas democratizantes, e abriu a porta para que forças de teor protofascista assumissem a direção politica. Estamos desde 2016 num cenário dantesco.
Até mesmo enumerar os elementos contidos nesse entremeado de crises é complexo:
1) crise internacional – há uma recomposição de forças protofascistas no cenário internacional, longamente acobertadas pelo avanço de direitas a cada vez mais agressivas e pelo recuo (em alguns casos, até desaparecimento) de forças anticapitalistas organizadas. Não houve recuo de lutas populares, mas da capacidade de organização coletiva popular, em escalas nacionais e internacionais. Não posso me alongar sobre o tema, mas se o fascismo é uma opção política, não se limita a isso. Brota de contradições efetivas que abrem possibilidades para que tal opção reapareça. Uma dessas contradições é o crescimento constante de massas de trabalhadores no mundo – e no Brasil – desprovidos de direitos, tanto os ligados ao contrato de trabalho quanto os direitos sociais universais, em contraste com uma concentração de capitais de tal monta que exacerba mais ainda a crise social, no afã da extração de mais-valor imediata, crescente e sem contrapartidas. Da intensificação das expropriações primárias e secundárias resultou uma reconfiguração das classes trabalhadoras, cuja experiência de vida não parece adequar-se às fórmulas clássicas dos partidos de esquerda.
No Brasil estamos vivendo uma experiência protofascista de rara violência e agressividade, que conta com apoio de grupos díspares internacionais e até recentemente alinhava-se de maneira direta e subalterna a Donald Trump. A derrota eleitoral de Trump não elimina a existência dessa recomposição protofascista no cenário internacional, e não sabemos ainda que percursos adotarão.
2) crise econômica – A devastação de direitos em curso, assim como da própria natureza, não resultou em crescimento capaz de recompor uma estrutura econômica adequada para os enormes volumes de capital impondo valorização (superacumulação). Isso não significa, entretanto, um ‘recuo’ do capitalismo, mas uma guerra ainda mais acirrada entre os diversos grupos de capital mega-concentrado. As tensões entre eles tendem a ser mais discretas, mas já se evidenciam tensões entre grandes grupos capitalistas mas cujo escopo de atuação é de menor alcance. A lentidão e o descaso no enfrentamento da pandemia tanto na Europa quanto nas Américas contrasta espantosamente com os cuidados tomados na Ásia, especialmente na China, e vem prolongando uma situação que se torna a cada dia mais dramática: recursos bilionárioas são despejados para impedir a quebradeira de empresas, enquanto outras empresas tiveram enorme expansão de lucros; para os trabalhadores, ajudas fornecidas às populações garantiram a sobrevivência de muitos até aqui, mas não abrem nenhuma perspectiva futura.
O Brasil compartilha do mesmo cenário, mas a ele se adicionam outras dificuldades. O tortuoso caminho golpista assumido por lideranças parlamentares, pelo judiciário, pelas classes dominantes brasileiros e, last but not least, por interferências estrangeiras (notadamente estadunidenses) fechou as possibilidades de retorno ao status anterior. Isso leva a uma agressividade cada vez maior na fuga para a frente através de contrarreformas que nada mais são do que o avanço de expropriações primárias e secundárias e de pilhagem do fundo público. As declarações de que ‘tudo vai melhor’ se limitam a isso… declarações vazias de conteúdo. Crescem o desemprego e a precarização das relações de trabalho, aumentam as tensões sem que haja qualquer horizonte de efetiva melhoria de vida para a maioria da população.
3) crise política –
a) partidos institucionais – a devastação do cenário político não começou com o golpe de 2016, que foi quase um tiro de misericórdia nos partidos institucionalizados. Nasceram partidos, que se pretendem novos, mas carregam as marcas das fraturas anteriores e são como frankensteins muitas vezes recosturados. Diversos partidos ‘novos’ pretendendo representar o capital, cada qual exibindo feito pavões suas caudas, mas sem correlação substantiva com segmentos específicos das classes dominantes, que segue leiloando seu apoio a várias dessas formações. Disputam avidamente os setores médios da população, mas estes passam por intensa transformação, desde a segmentação e precarização até oscilações características de sua condição social, balançando entre o fascismo e a desconfiança frente a ele. Assim, tampouco os setores médios se filiam de maneira clara a um ou outro partido. Com isso, as velhas máquinas partidárias herdadas da ditadura – DEM (descendente direto do partido ditatorial ARENA) e MDB (que foi a oposição consentida), do qual derivou um partido voltado para banqueiros – o PSDB – conservam a vantagem de sua capilaridade e controle de máquinas eleitorais. A direita protofascista não conseguiu até agora formalizar um partido próprio e se distribui entre diversos partidos de aluguel. O intenso transformismo do PT não parece ter sido sequer avaliado por seus integrantes mesmo após o golpe de 2016 e, de uma esquerda para o capital, ele parece direcionar-se para um ‘centro para o capital’, o que esperamos não aconteça. À esquerda, pequeníssimas mas aguerridas organizações, sob intenso combate, lutam ao mesmo tempo por manter uma perspectiva anticapitalista, por assegurar uma pauta institucional de direitos sociais e por ser um ponto de conexão entre as variadas lutas sociais que expressam reivindicações de ordens diversas – saúde, educação, transporte, cidade, habitação, terra, ambiente, mulheres, antirracismo, gênero, etc.
Muitos falam de ‘polarização’, mas a expressão não dá conta do desenho real. Pensemos o que significam essas expressões e podemos agregar nas direitas todos os que defendem o status quo – o capitalismo liberal sob desenhos variados, formas conservadoras de diferentes matizes, desde a autocracia de lastro ditatorial até as formas mais ou menos tingidas de religião e a extrema direita protofascista. As esquerdas – ao menos na história recente internacional – tenderam a agregar os partidos revolucionários e partidos fortemente ‘reformistas’, ou seja que tinham como perspectiva suavizar as condições do capitalismo através de concessões aos setores populares, sem entretanto combater diretamente o capitalismo. No centro, perfilavam-se aqueles que oscilavam entre as duas direções. Essa distinção é meramente metodológica, uma vez que as posições políticas são elásticas.
O desenho de tal ‘polarização’ no Brasil, à luz dos critérios acima, resulta num verdadeiro monstro, em que as direitas são desfigurada maioria, com um enorme amontoado de partidos (na defesa clara do capital, sob variados aspectos, e das formas conservadoras e tradicionais da política altamente segregadora brasileira), que agregam desde os grupos bolsonaristas, passando por partidos que se autodenominam ‘centro’, como o PSDB, tendo o Centrão como a expressão mais evidente dessa direita brasileira clássica e truculenta. A direita cresceu enormemente, engrossada e politicamente pilotada agora por uma extrema-direita de cunho fascistizante.
O centro político de fato é ocupado por partidos cujas denominações e mesmo seu histórico sugeririam estar à esquerda, como PSB, PDT, Rede, PCdoB e o próprio PT, mas cujas práticas e atividades são características do equilíbrio precário que propõem. Não mais pretendem arrancar ‘reformas’ ou ‘domesticar o capital’, mas acomodar a expansão do capital à alguma atenção aos ‘pobres’ e a assegurar a institucionalidade burguesa, apesar das limitações históricas brasileiras.
É sempre bom lembrar aos mais jovens que estamos atravessando um período peculiar, pois historicamente os partidos ligados às classes dominantes brasileiras procuravam se apresentar como de ‘centro’ ou até mesmo ‘centro-esquerda’, e as mídias proprietárias sempre endossaram essa apresentação truncada, que lhes era conveniente, tendo inclusive aceitado denominar ‘centrão’ ao agrupamento partidário que leiloa cargos, votos e prebendas. Mas é um leilão truncado, pois se vende sempre para suas próprias posições, isto é, à direita.
A figura se completa com uma pequeníssima esquerda, composta por partidos jovens e pequenos, como o PSOL e diversas siglas mais antigas com escassa representação parlamentar, como o PCB, o PSTU ou o PCO. Em condições extremamente adversas, precisam lutar para não desagregar-se em grupos sectários, e para não descolar-se das lutas populares.
b) lutas políticas organizadas, mas não institucionais – As análises políticas padecem de um lamentável institucionalismo (de base teórica liberal), o que as leva a observar sobretudo o movimento dos partidos oficiais e das eleições, desprezando as formas organizativas substantivas que vêm se alterando e reconfigurando aceleradamente as lutas de classes. No máximo, incorporam em suas reflexões alguns movimentos sociais populares, que chegaram a alcançar organização em escala nacional. De fato, se expandiram lutas populares em inúmeras direções, especialmente o antirracismo, o feminismo, o antifascismo, as lutas de gênero. Poucos se dedicam a analisar os movimentos políticos do empresariado frente aos subalternos.
A luta pela terra (MST e outros movimentos, inclusive indígenas e quilombolas), foi totalmente criminalizada pelas direitas e é alvo de política genocida pelo governo Bolsonaro (vale lembrar que essa criminalização é silenciada ou endossada pelas demais entidades burguesas). As demais reivindicações populares e suas formas organizativas vêm sendo alvo de intensa atuação empresarial no sentido de desarmá-las na luta de classes e instrumentalizá-las para seus próprios propósitos. É impressionante como o palco de lutas de classes intensas e fundamentais é pouco observado desde o ponto de vista da atuação empresarial.
Sob a pandemia, manteve-se o hiperativismo empresarial que caracterizou os últimos 30 anos no Brasil, tendo o foco sido direcionado para a minoração de danos das condições terríveis da pandemia de covid 19. Como? Garantindo a melhoria do SUS e do serviço público de saúde? Claro que não – através de campanhas de doações para ‘solidariedade’ empresarial, para confecção de máscaras (trabalho de costureiras, na maioria mulheres, sub-remuneradas), de estímulo à precarização das relações de trabalho através de trabalho remoto, e de dotação bilionária para um “Todos pela Saúde”, que pretende replicar o trágico “Todos pela Educação”, agora gerido pela Fundação Itaú.
São entretanto muitas as lutas populares e a atenção burguesa se dirige especificamente para as lutas antirracistas, estudantis, feministas, propondo financiamentos para alguns grupos e ofertas de remuneração para intelectuais emergentes.
Observe-se a movimentação das classes dominantes brasileiras: agem diretamente e em conjunto com o governo Bolsonaro para transformar suas próprias atividades em ‘essenciais’, submetendo seus trabalhadores à contaminação em ambientes desprotegidos de trabalho e em transporte cheio, demorado e de má qualidade; na contraparte, fazem propaganda mercantil de sua… solidariedade S/A; alguns se queixavam dos ‘modos’ de Bolsonaro, mas o empurram para aprofundar as ‘reformas’, ou seja, intensificar o saque do fundo público e as expropriações e, finalmente, fazem permanentes diatribes contra o excesso de gastos públicos com políticas universais, mas embolsaram bilhões de maneira praticamente direta ou através do Banco Central e do BNDES durante a pandemia
c) crise institucional – a atuação do governo Bolsonaro vem sendo sobretudo a de destruição de boa parte da institucionalidade anterior, decorrente da Constituição de 1988. O governo Bolsonaro atua em todos os flancos – pela tentativa de grandes contrarreformas, pelo esvaziamento dos setores governamentais cuja atuação constitucional é necessariamente discordante de sua política, pelo uso de medidas provisórias. Ademais, boa parte dessa devastação vem sendo realizada de forma infralegal, normativa e administrativa, além da alteração direta e da corrosão implementadas por dirigentes nomeados para destruir a institucionalidade prévia, como na Cultura, na Educação, Ambiente, Racismo, Saúde, etc. Um funcionalismo temeroso da perda de direitos, prática a que vem sendo submetido há longos anos, parece ter muita dificuldade de enfrentar abertamente estes procedimentos, ainda que sejam – quase todos eles – ilegais. Enfrentar o protofascismo exigiria enfrentar também o enorme desnível entre setores do funcionalismo e apostar resolutamente em assegurar efetivas políticas universais contra o governo central, trazendo os subalternos e setores populares para as decisões cruciais. Ao contrário, parece haver uma obediência burocratizada e tímida, que acredita possa preservar direitos corporativos ao manter-se “neutra” e distante dos demais trabalhadores. Há felizmente muitos grupos combativos e sérios interior dos serviços públicos, mas a maior parcela do funcionalismo ainda se mantém obediente aos desatinos governamentais e sob a influência dos aparelhos privados de hegemonia empresariais (a começar pelas mídias).
d) crise social – o aprofundamento intencional das desigualdades sociais, o aumento da precarização das relações de trabalho, o desemprego, as precárias condições de vida nas grandes cidades brasileiras sinalizam para um aumento das tensões, até aqui razoavelmente contidas pelo Auxílio Emergencial. Não se pode prever, entretanto, a direção que assumirão tais descontentamentos. A forte expansão de igrejas ligadas à teologia da prosperidade com o resoluto apoio dos governos anteriores e, agora, explícito, de Bolsonaro, tem mostrado firme intuito de apoiar formas protofascistas. O desmanche das políticas sociais favorece o conjunto das igrejas, que se convertem em centro distribuidor de recursos, inclusive públicos. A violência histórica e crônica que se abate cotidianamente sobre as populações de favelas e bairros periféricos, matando seus jovens e atemorizando a população, gera relação ambivalente com milícias e formas de vingança, favorecendo a oferta de cunho mercantil por “segurança” e acertos de conta diretos. O descontentamento com um partido de matriz popular, o PT, cuja atuação o distanciou daquelas que foram suas bases, é incentivado pelo empresariado e pela familícia através de um anticomunismo primário e brutal. Assim, apesar de ser claro que tensões tendem a crescer, não se poder prever sua direção. Até aqui, as maiores lutas populares foram a favor da educação pública, contra o racismo e contra o fascismo. Mas não é claro se deixam saldo organizativo popular substantivo. Estamos diante da urgência da continuação da verdadeira solidariedade de classe, da formação política ampla e consistente, da educação de grandes massas da população na prática, e não apenas na teoria, para que, elas próprias, possam organizar-se para assegurar direitos e para superar a piora das condições sociais e o aumento de repressão que se avizinha.
e) crise cultural – a existência de meios massivos de difusão instantânea alterou profundamente os modos clássicos de transmissão de informação e de conhecimento e das próprias formas de convencimento social. Assim como os seus predecessores – jornais, rádios e televisões – são monopólio de pequenos grupos de proprietários altamente capitalizados e geram enorme massa de lucros. Mas exigem análises muito mais densas do que as que fizemos até aqui, uma vez que também a população mundial é muito mais escolarizada do que anteriormente. Socialização do conhecimento e da ciência são reivindicações antigas e profundas dos setores populares e são na atualidade um terreno onde se acirram as lutas de classes. Na ausência de formas organizativas populares substantivas capazes de se contrapor à promoção de pós-modernismos, pós-verdades, negacionismos, opiniões circulam como se fossem informações, teorias conspirativas e outros que-tais são amplamente divulgadas. Vivemos em situação de perplexidade e sem conseguir distinguir as verdadeiras e fundamentais clivagens que atravessam as ciências e o conhecimento. Clivagens que também atravessam o conjunto da vida social. Essa crise atinge dimensões gigantescas e internacionais pelas tensões inter-burguesas no cenário internacional e pelo aumento dos descontentamentos populares em diversas partes do mundo.
Aqui é importante destacar que perdura a disseminação constante de material de extrema-direita para nutrir redes de whatsapp mais ou menos familiares, além de outras redes sociais. A derrota de Trump pode levar a uma exasperação e intensificação das falsificações da ira popular, aproximando cada vez mais a extrema direita dos discursos fascistas clássicos, os quais elegeram os ‘banqueiros judeus’ como bodes expiatórios. Olavo de Carvalho, em programa recente, começou a ‘denunciar’ as ‘oligarquias’ brasileiras. Isso demonstra que o contexto da pandemia – apesar do negacionismo que essas mesmas direitas pregaram – dificultou sua capacidade de mobilização, e que tentam agora enveredar por caminhos ainda mais dramáticos. A tentativa de golpe nos EUA levada a efeito por seguidores de Trump ilustra um dos aspectos dessa exasperação e demostram a permanência de forças fascistas.
O que se observa é a difusão de enorme confusão no cenário ídeo-político, em que as linhas de demarcação entre as posições políticas e ideológicas se esfumaçam e tornam-se borradas. O teor de falsificação protofascista não encontra limites, e atua sobre terreno já anteriormente devastado, o que pode conduzir tanto ao aumento da adesão popular ao protofascismo bolsonarista quanto a intensas lutas de enfrentamento popular, mesmo que se encontrem momentaneamente dispersas.
O MOMENTO – Mesmo com a diminuição do bolsonarismo no espaço institucional, o processo eleitoral de 2020 foi vencido pela direita tradicional no Brasil. Quais lições podemos tirar dessa jornada eleitoral?
VIRGÍNIA FONTES – Não tenho tanta tranquilidade de que haja uma redução do bolsonarismo no espaço institucional, uma vez que a destruição da institucionalidade burguesa derivada da Constituição segue de forma acelerada e que não há um movimento forte popular, nem do conjunto do funcionalismo – afinal, são trabalhadores – para impedir esse processo. O que se pode observar é o aumento de disputas intra-institucionais por posições de força de um ou outro grupo (Legislativo, Judiciário, Executivo), mas todos eles posicionados em defesa do capital e do capitalismo, sem maiores compromissos com os direitos assegurados em 1988, apesar das nuances entre eles. Isso é visível nos enfrentamentos no Supremo Tribunal Federal, por exemplo. Mas é ainda mais explícito na atuação da grande mídia proprietária que simultaneamente critica os ‘maus modos’ de Jair Bolsonaro, mas mantém a defesa de sua política econômica e, ainda exige mais ‘reformas’ ou seja, maior arrocho sobre os trabalhadores. Demonstram a existência de tensões entre classes dominantes e a tentativa de impor limites aos “excessos mobilizatórios” bolsonaristas. Mas não assinalam posições firmes antifascistas e nem mesmo democráticas.
Como tentei mostrar na resposta anterior, há quase um monopólio das direitas (fascistas ou não) no cenário parlamentar brasileiro, em seus variados níveis. E não começou recentemente, mas essa seria outra discussão. Além disso, precisamos definir muito bem o que estamos chamando por ‘direita tradicional’. É verdade que, historicamente, as classes dominantes brasileiras evitaram processos fascistizantes, pela excessiva mobilização que promovem. Assim, apesar de terem promovido manifestações antes do golpe empresarial-militar de 1964, este primou pelo esvaziamento das formas mobilizadoras e pelo estrangulamento das organizações populares, qualquer que fosse o seu formato. Esse seria portanto o formato político mais adequado às direitas tradicionais, autocráticas.
Jair Bolsonaro, criado nos porões da ditadura, associou-se a grupos com perfil mais próximo aos de teor fascista, tanto no Brasil quanto no exterior. Sua atuação é fundamentalmente mobilizadora, não importa se à custa de sucessivas mentiras. É extremamente agressivo, e pode disparar para qualquer lado. Conserva a proximidade com os setores militares, aparentemente submissos à condução protofascista e a ela obedientes. Bolsonaro foi derrotado em várias de suas iniciativas – não conseguiu formar seu partido; a maioria dos parlamentares que ele indicou não foi eleita; seus candidatos vitoriosos sofreram uma significativa redução do número de votos.
Há entretanto, um movimento de aproximação entre essa direita tradicional (autocrática) e Jair Bolsonaro (protofascista), e não sabemos que resultados poderá gerar ou para que lado da balança – autocracia ou fascismo – essa aproximação pesará mais. A condição protofascista de Bolsonaro era clara desde a sua campanha para as eleições presidenciais, e contou com o apoio empresarial e parlamentar.
Há ajustes, em muitos casos similares a guerras de gangues, como no Rio de Janeiro e as disputas entre grupos políticos e judiciários, com diferentes perfis mas quase todos com aproximações miliciano-políticas. Há também tensões no Judiciário, tradicionalmente ferrenho aliado das classes dominantes, com integrantes que se contrapõem a setores próximos a bolsonaristas. Bolsonaro, aliás, continua avançando nas posições de mando em todas as áreas da segurança pública que, como sabemos, mantém ramificações com setores paramilitares, seguranças privadas, jagunços e milicianos.
O desmascaramento da LavaJato realizado pelo VazaJato e que prossegue seu curso, mostra as características do Judiciário brasileiro: favorecimentos tradicionais aos setores dominantes com os quais mantém estreitos laços, oportunismos variados, facilidade de cooptação internacional (por países e por empresas), elevadíssimos salários isolando-os dos demais trabalhadores, etc. Não obstante, há democratas sinceros no Judiciário, como em todas as instâncias do funcionalismo público, mas se encontram sob intenso ataque.
O MOMENTO – A esquerda social-democrata representada pelo PT e o pragmatismo nacional-libertador apresentado pelo PC do B, diminuiu sua representação nas prefeituras por todo o Brasil. Contudo, tivemos uma ampliação importante nas Câmaras Municipais diante da presença do PSOL. Como analisar essa dinâmica política?
VIRGÍNIA FONTES – Eu considero que a prática do PT não autoriza chamar sua atuação de ‘esquerda social-democrata’, aproximando-se mais na atualidade a um ‘centro-esquerda eleitoral de perfil democrático’. Digo isso com tristeza, e espero estar errada, mas parece tender a uma ‘esquerda do centro’, após seu papel de esquerda para o capital. Aparentemente, quanto mais um antipetismo histérico procura atingi-lo, mais o PT se encolhe, supondo que isso o permitiria afastar-se de qualquer suspeita de ‘marxismo cultural’ ou ‘comunismo’. Manter-se na retranca e na auto-defesa reduz enormemente a preparação para o enfrentamento ao capital – e ao protofascismo, que é um de seus desdobramentos políticos – de grandes massas populares. Não se trata de uma educação meramente formal, ou de ‘cursos’ de formação, mas da formação na vida prática, cotidiana. O PT não se caracterizou por um papel educador sólido, no sentido da formação política e da organização de grandes massas, pois nas últimas duas décadas desprezou processos de formação política e atuou em prol do apassivamento das organizações populares. Mas, em sua atuação governamental, procurou ao menos assegurar melhorias para os setores populares, como melhores salários, bolsa família, cotas raciais, políticas para mulheres, etc. Eram melhorias reais, embora subalternizadas à política que pretendeu ser neodesenvolvimentista. Enquanto isso, as práticas empresariais agiam seja para bloquear tais políticas (especialmente no caso das cotas étnicas), seja para capturá-las economicamente, como no caso das bolsas do FIES, ou politicamente, como o hiperativismo empresarial em aparelhos privados de hegemonia. A atuação burguesa procura impedir que tais reivindicações se convertam em efetivas bandeiras nacionais de luta popular.
Enquanto o protofascismo vocifera ‘contra tudo o que está aí’, falsificando a ira popular, aparentemente parcela dos que se apresentam como esquerda parecem tornar-se defensores ‘de tudo o que está aí’… Apenas poucos partidos, como o PSOL e o PCB, além de outros pequenos partidos de fato à esquerda, ousaram apresentar-se com postura mais coerente e aderir resolutamente às lutas populares, sem perder o viés de crítica anticapitalista. A tarefa desses valentes companheiros é importante, mas não pode limitar-se à atuação parlamentar.
Aqui, vale um parênteses: a) o PSOL ainda não é um partido, mas uma aglomeração de organizações, o que torna algo errática sua atuação; b) a atuação parlamentar dos eleitos de esquerda, em sua grande maioria, vem submetendo quadros formidáveis a um verdadeiro triturador. É estrutura tão viciada, que manter minimamente uma atuação coerente e não cooptada consome todo o tempo e energia de nossos militantes. São exigidos para resolver problemas imediatos, atuando na linha de frente de uma infinidade de problemas. Atuam na Educação, nos Direitos Humanos, nos transportes, na questão da violência e das prisões… precisam enfrentar questões para as quais seus mandatos estão totalmente despreparados, e ao mesmo tempo defendendo a existência daquele espaço. Com isso, mal sobra tempo para explicar à população o que são tais parlamentos municipais, o que está em jogo ali, pois estão engolfados em milhares de tarefas, todas elas relevantes. Partidos pequenos e pouco orgânicos não favorecem uma atuação coletiva, o que permitiria em parte contornar essa dificuldade através de uma atuação comum, compartilhando efetivamente tarefas. A importância de uma frente de esquerda anticapitalista não limitada a partidos, mas com sua participação segue fundamental, inclusive para reduzir a dispersão dessas forças que são imprescindíveis para as dimensões das lutas que temos diante de nós.
O MOMENTO – Um dado que chama a atenção no campo da esquerda socialista é que candidaturas da representação identitária com foco na defesa das políticas públicas obtiveram importantes vitórias. Essa representação parlamentar modifica o perfil classista da esquerda?
VIRGÍNIA FONTES– Eu pessoalmente considero que as lutas contra as opressões integram plenamente as lutas de classes. Não me parece que, porque não se percebem como integrantes da classe trabalhadora, a grande maioria de negros e negras, mulheres, LGBTQI não o sejam. Esse argumento me parece muito frágil – será que a massa da classe trabalhadora se percebe como… classe? A secular luta sindical demonstra que não basta a filiação a sindicatos para que se instaure uma consciência de ‘integrantes da classe trabalhadora’, o que resulta de processos de luta. Ademais, a história sindical mostra também a intensa atuação estatal e empresarial no sentido de esvaziar o teor combativo dos sindicatos, tanto através da repressão (ameaças, chantagens, restrições legais, violência policial ou paramilitar), quanto por diversas modalidades de cooptação e apassivamento. Portanto, a luta contra o capital precisa ser permanente.
Há, ao meu juízo, um avanço significativo na plena incorporação dessas lutas como bandeiras permanentes e centrais das esquerdas. Não há dúvidas de que sempre foram lutas levadas adiante pelas esquerdas, como uma espécie de lutas complementares, a serem direcionadas para a luta econômica. Talvez somente na atualidade elas se impõem – teórica e praticamente – como lutas permanentes, com sentido pleno em suas reivindicações específicas, uma vez que a reprodução de racismos e de sexismos tende a reconfigurar permanentemente formas de dominação social, além de reproduzir opressões. Em outros termos, racismos, sexismos, discriminações diversas são formas de segregação de classes. Cada uma dessas lutas específicas– e incluo aqui outra série de lutas fundamentais, como lutas ambientais e acesso à terra, ou por questões setoriais, como educação, saúde, transporte, cidade, cultura, etc. – precisa se manter na sua especificidade e, simultaneamente enfrentar o capital desde suas próprias reivindicações. Está cada vez mais evidente que somente abrem efetivos horizontes de conquistas se, em cada uma delas, houver o enfrentamento ao capital que tenta subordiná-las, corrompê-las (oferecendo cargos e prestígio a alguns líderes), adestrá-las, controlá-las. Isso se chama… luta de classes, levada a efeito pelas classes dominantes. A unificação dessas lutas me parece menos sua dissolução numa única luta comum, do que sua impulsão permanente e conjunta no enfrentamento ao capital.
Não é fácil, porém. A denominação identitarismo, altamente desqualificadora, mostra a complexidade desse processo. As classes sociais atravessam mulheres e negros, é verdade; mas racismos e sexismos também atravessam as classes trabalhadoras e até mesmo a militância anticapitalista. As lutas são o momento mais pedagógico e educador e é a capacidade de lutar junto que indica a direção correta. Isso exige um esforço permanente de circulação de informações, de capacidade de reflexão (pensar), mas também capacidade de sentir, como lembrava Gramsci.
Angela Davis mostra como as lutas feministas dos EUA, em primórdios do século XX, ao desprezarem as lutas contra o racismo, acabaram se perfilando ao lado das classes dominantes brancas e desfigurando suas próprias bandeiras.
Estas são as áreas da mais intensa luta de classes na atualidade, pois as classes dominantes oscilam entre sua repressão direta (o que é evidente na atitude protofascista bolsonarista) e formas de cooptação variadas, de maneira a contarem com lideranças forjadas por elas contra a massa de mulheres e de negros e negras. A semelhança com o que realizam contra os sindicatos é espantosa.
O MOMENTO – Para além das questões que conformam a crise brasileira, a pandemia avança sem a devida resposta do governo do agitador fascista, Jair Bolsonaro. Como analisar e enfrentar esse quadro de morte?
VIRGÍNIA FONTES – A situação sanitária é dramática e todas as palavras parecem insuficientes para descrever o descaso e o genocídio praticados pelo governo protofascista de Bolsonaro. Não vou me deter no que todos sabemos e nos horrorizamos. Quero destacar alguns aspectos da conexão entre fascismo e negacionismo da pandemia que me parecem gravíssimos e que vem encontrando menos ecos do que me parece urgente.
Trump e Bolsonaro (este último replicação ainda mais fiel à causa fascista do que o original, com os pés cravados na ditadura e nas práticas milicianas) fizeram, nos últimos meses algumas sutis mudanças de comportamento, que é importante destacar. Em função da pandemia, ambos foram mais ou menos obrigados a assegurar auxílios à população. Ambos fizeram discursos negacionistas e enalteceram um vago e abstrato ‘trabalho’, que significava expor as massas trabalhadoras ao vírus.
Trump foi derrotado, houve intensas lutas antirracistas por lá, mas assistimos estarrecidos a tentativa de golpe sobre o Capitólio, com bandeiras abertamente racistas.
Houve aqui e nos EUA, uma forma especialmente perversa de utilização política da pandemia que envolve ao mesmo tempo um pacto com a morte e o sofrimento da população e uma ênfase oportunista em temas e situações que que estão sendo profundamente sentidos pela mesma população. No primeiro deles, cultiva-se a morte em nome da… saúde ou da liberdade, como a ênfase na necessidade de exercitar-se, caminhar, tomar sol, divertir-se, etc., agindo para bloquear e desqualificar a forma mais clássica de controle de epidemias, que é o isolamento físico. A mais repugnante dessas práticas assume o formato religioso. No segundo deles, exalta-se a ‘importância da acolhida e da fé’, que deveriam ser de fato as práticas de todas as religiões e, por essa razão, deveriam limitar o contato físico, especialmente em ambientes fechados sabidamente propiciadores de alto número de contágios. Mas, ao contrário, o que se viu foram religiosos insistindo na visita aos templos, na negação do contágio, oferecendo um verdadeiro abraço de morte e de disseminação da covid19. Com forte apoio das lideranças protofascistas.
O terceiro é talvez ainda mais perverso e dramático, e está em curso. Trata-se de uma tática fascista de aparentar estar ao lado dos trabalhadores, quando o que de fato se faz é assegurar ao patronato as formas mais brutais de exploração, eximindo-os da responsabilidade por colocarem em risco a saúde de seus funcionários. Exaltam o trabalho enquanto massacram os trabalhadores. Não à toa, replicam a tragédia dos campos de concentração nazistas, que ostentavam à entrada a frase “Arbeit mach Frei” – o trabalho liberta. O trabalho era apresentado de maneira vaga, abstrata, enquanto se assassinavam os trabalhadores nas câmaras de gás.
A política implementada de auxílios públicos de emergência – aqui e nos EUA – deu vazão a uma intensificação dessa prática, quando converteram o que fora uma imposição (frente à qual, aliás, tanto Trump quanto Bolsonaro resistiram) numa espécie de ‘doação personalizada’ para os trabalhadores. Todos sabemos que estes receberam apenas migalhas, enquanto doações bilionárias fluíram para o grande capital sob respeitoso silêncio da mídia proprietária que ainda pedia mais recursos para os empresários.
Há indícios entretanto de que, frente não apenas à continuidade da pandemia, mas da tragédia social, sanitária e econômica que se intensifica entre as massas populares, protofascistas recorram ao arsenal da infame prática nazista, se arvorando em defensores de trabalhadores ou até mesmo do ‘proletariado’. Esse tipo de prática já está em curso desde novembro por Olavo de Carvalho e alguns de seus seguidores, inclusive apresentando Trump como o único defensor do proletariado, em emissão televisiva no youtube de canal devotado à defesa de Bolsonaro.
Coliga-se diretamente à política genocida protofascista – estrangula os trabalhadores, mas menciona a defesa vaga do ‘trabalho’ e usa de variados recursos para mobilizar os próprios populares contra políticas de defesa da vida e da saúde. Esse recurso foi utilizado por pastores neopentecostais associados a milicianos no Rio de Janeiro, e agora vem novamente sendo utilizado especialmente em cidades do nordeste brasileiro.
O MOMENTO – O cenário conjuntural da crise brasileira pode sinalizar para o acirramento da luta de classes em 2021. Qual sua leitura sobre essa possibilidade?
VIRGÍNIA FONTES – Estamos diante de uma nova configuração das classes trabalhadores, com parcela significativa desprovida de direitos e de contratos de trabalho. Suas formas de manifestação são múltiplas e pouco conectadas com as organizações tradicionais de trabalhadores (partidos e sindicatos). São massas de trabalhadores expostos a todas as formas de exploração e opressão. Do ponto de vista da exploração, os capitalistas que sugam sua força de trabalho estão distantes e sem contato direto com eles, parecendo inexistentes ou invisíveis. Vivem como se não ‘tivessem patrões’, mas pressionados pela necessidade imediata da sobrevivência. Ao mesmo tempo o capital distante atua de forma abrupta e poderosa, podendo cortar sua fonte de subsistência com apenas um clique de computador. As opressões que experimentam são múltiplas (racismo, sexismo, gênero, discriminações de sotaques e de bairro, etc), e provenientes das mais diversas direções, de seus contratadores, de colegas de trabalho com os quais o contato é apenas eventual, de concorrentes de outras empresas, de clientes, da população com a qual estão em contato. Frente a muitas agressões, estão frequentemente isolados e sem associações sólidas para sua defesa e o enfrentamento da situação. Seguramente há também formas de solidariedade entre eles, mas na maioria dos casos ainda é difusa.
A atuação empresarial desde a Constituição tudo fez para precarizar e desqualificar os serviços públicos voltados para as grandes maiorias – especialmente saneamento, saúde, educação e transportes. O compromisso de tais massas com políticas universais públicas tende a ser vacilante e duvidoso, dada a sua precariedade, a intensa campanha publicitária contra saúde e educação públicas e, por último, pela deserção de parcela dos setores médios (inclusive funcionários públicos) das políticas universais, acreditando que estariam a salvo – por seus salários – pelas escolas privadas e seguros de saúde. Apesar dessa destruição real, o Sistema Único de Saúde, assim como as redes de educação pública são uma condição de possibilidade para o enfrentamento não apenas da pandemia, mas do desgoverno Bolsonaro.
O que fazem os setores médios e o próprio funcionalismo público diante dessa devastação? De maneira mais do que legítima lutam para proteger-se da contaminação e exigir que o trabalho presencial somente seja realizado com condições de isolamento e aeração e, para muitos casos, somente após a generalização de vacinas. Legítima e necessária, essa postura é entretanto insuficiente e se arrisca a reduzir o governo protofascista ao comportamento genocida sob a pandemia. Precisamos levar em conta a destruição que está fazendo diariamente dos serviços públicos que deveriam chegar à população e é possível estabelecer, com todos os protocolos mais rigorosos de segurança sanitária, uma solidariedade ativa com os setores populares atingidos (alunos, pais, pacientes e doentes em segundo plano em função da covid, trabalhadores dos setores essenciais, sindicatos, populações com maiores carências, etc.), mas também reorganizar o próprio serviço público CONTRA Bolsonaro, contando com o apoio e a participação real da população. É fundamental não naturalizar esse desgoverno, e não obedecer a ordens espúrias, que destroçam conquistas da população à qual devemos servir. E talvez seja este o momento de aprender que todos os trabalhadores têm importante função na vida coletiva e podem organizar coletivamente sua atuação.
A atuação de Bolsonaro acelera e intensifica a desqualificação aberta de todo comportamento público pautado pelo sentido de coletividade – limites de velocidade, cadeirinhas para transporte de crianças, controle de posse e porte de armas, devastação da educação e das universidades, desrespeito das regras democráticas, imposição da violência na vida cotidiana (milícias) e como forma educativa (escolas policializadas), ataque à preservação ambiental, proposta de assassinato dos defensores da reforma agrária, dentre inúmeros outras barbáries. Simultaneamente promove mobilizações lastreadas pela violência e pelo sentido do individualismo e da urgência, e pode gerar formas de ação direta descontroladas. Que seus seguidores populares sejam suas eventuais primeira vítimas – contraindo a covid19, alvo da violência paramilitar, de torturas psicológicas e/ou físicas – apenas reforça o fio genocida que atravessa o governo Bolsonaro.
O MOMENTO – Na sua avaliação quais são as balizas por onde a esquerda brasileira pode marchar em 2021?
VIRGÍNIA FONTES – Estamos diante dos maiores desafios que já experimentamos, e vivendo uma tragédia sem precedentes. As esquerdas – múltiplas e variadas, de movimentos sociais, associações, sindicatos e partidos, de estudantes e de estudiosos – sabem que precisam enfrentar o capital – e, portanto, as grandes burguesias – sem deixar-se iludir. Onde há lutas, haverá ‘entidades beneficentes’ do grande capital para cooptá-las e cerceá-las, maquiados de ‘filantropia’. Haverá ameaças milicianas ou protofascistas, virtuais ou diretamente violentes. Ou ainda a truculência desgraçadamente tradicional no país, com a qual convivemos secularmente, racista e sexista, sempre anti-popular. Nossas são as lutas por auto-organização da população, para o enfrentamento tanto da tragédia econômica, quanto da sanitária. Nosso papel não é simplesmente o de ‘liderar’, mas o de seguir junto na luta, o de dar o exemplo.
Eleições e cargos parlamentares são fundamentais. Nossos eleitos precisam lembrar entretanto que não estão lá para resolver sozinhos os problemas da população, o que não podem conseguir, em primeiro lugar, pois a estrutura parlamentar é feita para isolá-los da população e, além disso, são minoritários e impotentes para tanto. Mas podem ser poderosos para que a população e os trabalhadores assumam as rédeas da existência social. Não basta serem eleitos – precisam mostrar com todas as letras à população brasileira o que são os parlamentos, pois somente assim poderão estar acima dos conchavos, cooptações e outros que-tais que campeiam nas instituições, mesmo quando funcionavam regularmente. Agora, sob o predomínio protofascista, precisam evidenciar como ele age, denunciar concretamente suas mentiras, ajudar a organizar e apoiar a organização autônoma das forças populares e dos trabalhadores.
Não basta fazer leis. Tampouco basta impedir leis cretinas. Tudo isso é muito importante, mas o essencial é que os trabalhadores saibam quem são e se reconheçam nos seus eleitos, não para perpetuá-los nos cargos, mas para ir muito além deles.
A derrota de Trump contribui para isolar Bolsonaro, mas este continua na presidência. O fascismo não se dilui nos votos – precisa de luta social e popular para derrotá-lo.