Entrevista do Momento – Fran Rebelatto

Por Milton Pinheiro

 

Fran Rebelatto – Cineasta, fotógrafa e professora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Atua também como docente na pós-graduação em Estudos Latino-Americanos na Unila. Jornalista e Mestre em Ciências Sociais pela UFSM e doutora em Cinema e Audiovisual pela UFF. É diretora do ANDES-SN (gestão 2021-2013), integra a Coordenação Nacional da Corrente Sindical Unidade Classista e o Comitê Central do PCB. Candidata à Secretária-geral pela Chapa 1 Andes pela base: Ousadia para Sonhar, Coragem para Lutar nas eleições do ANDES-SN.

1) Você é uma pesquisadora de cinema e fotografia, como examina o cinema brasileiro no momento?

O cinema brasileiro, assim como todos os campos das artes, se viu diante um cenário de muita apreensão nos últimos anos com o desmonte deliberado das políticas de incentivo à produção artística. Isso se deu depois de um processo relevante de democratização da produção e de sua descentralização para além dos grandes centros urbanos tradicionalmente produtores de imagens do país. Com a reestruturação da Ancine e de políticas públicas de incentivo à produção nacional a partir dos anos 2000 foi possível ver novas histórias emergindo desde o Brasil profundo. Com isso, a produção deslocou-se para o Nordeste, para o interior de Minas Gerais, para Brasília (para citar alguns exemplos) fazendo com que novas contradições da realidade brasileira fossem reveladas pelo cinema nacional como é o caso dos filmes da produtora Filmes de Plástico de Cataguazes em Minas Gerais, o cinema de Kleber Mendonça revelando o avanço da especulação imobiliária em Recife, o cinema de Adirley Queiroz na periferia de Brasília, inclusive, com o recente filme ‘Mato em Chamas’, ou o primeiro longa-metragem produzido no Acre, ‘Noites alienígenas’ que trata das facções nas periferias do Norte. Mais recentemente temos acompanhado também a reivindicação e a expressão do cinema negro brasileiro que tem ocupado as telas e também lutado por uma maior presença na frente e atrás das câmeras. Tem muita produção sendo feita no Brasil, em especial, a partir da chegada das plataformas de streaming e da produção de séries, no entanto, se por um lado isso movimenta o mercado criando novos postos de trabalho, também traz todas as contradições da precarização que segue à risca o modo de produção capitalista, o que fez com que recentemente se organizasse a campanha de luta pela #jornadajusta, se normalizou na produção cinematográfica e do audiovisual jornada que ultrapassam, muitas vezes, mais de 12h diárias. É necessário estar atentos (as) e organizados (as), e reconhecer que a produção cinematográfica e audiovisual brasileira têm nos ajudado a entender melhor o Brasil! E esse deve ser o seu papel.

 

2) Foi lançado recentemente um filme de sua autoria, discutindo a vida das mulheres na tríplice fronteira. Quais foram as abordagens que apresenta nesse filme?

O filme Pasajeras (2021) trata da vida das mulheres trabalhadoras que cotidianamente cruzam a fronteira entre o Paraguai e o Brasil, nas cidades de Ciudad del Leste e Foz do Iguaçu. São mulheres conhecidas como ‘paseras’, ou seja, que trabalham centralmente com o ‘leva e traz’ de mercadorias de um país a outro. Há muitos anos pesquiso a relação entre os territórios de fronteiras e as imagens produzidas sobre esses territórios pela imprensa, na fotografia e no cinema. E nessas andanças por diferentes territórios entre Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Colômbia, dentre outros, sempre me chamou atenção o papel das mulheres trabalhadoras que estão localizadas nos trabalhos mais precarizados. Quando cheguei a Foz do Iguaçu para dar aula na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) de imediato percebi que também nesta fronteira são as mulheres a carregar nas costas, nas caixas, nas bolsas a maior parte da mercadoria dos ‘descaminhos’. No entanto, em Foz do Iguaçu temos algumas outras contradições que se colocam, considerando que se trata de um dos principais destinos turístico do mundo. Por ali, as mulheres, com destaque para as de nacionalidade paraguaia, não só cruzam para transportar mercadorias, mas também tem aquelas que cruzam com sua arte (danças e músicas tradicionais paraguaias) para compor o cenário das expressões ‘artísticas’ vendidas aos turistas de passagem. O filme coloca lado a lado estas duas realidades: da mulher trabalhadora informal que carrega mercadoria, com a mulher artista que carrega sua arte e história do outro lado da fronteira. E mesmo massacradas pelo peso de suas histórias de violência e de exploração, essas mulheres sonham, encontram-se nas histórias de suas avós, mães, filhas e seguem na luta e na labuta. O filme está disponível na Plataforma Itaú Play Cultural podendo ser acessado de forma gratuita e também está à disposição para ser exibido junto ao bom debate por todo Brasil.

3) Para além de cineasta, você é professora da Unila e militante do movimento docente. Quais são as questões centrais para se pensar a universidade no processo societário atual?

Primeiro, é importante dizer que minha história de acesso à universidade pública é uma daquelas que corresponde à primeira pessoa da família a entrar num curso superior ou até mesmo a uma das poucas jovens de toda uma geração de uma pequena cidade do “interior” que teve possibilidade a esse acesso. Filha de trabalhadores pobres do campo no Rio Grande do Sul, a universidade era muito distante, com isso, algo que estava associado a um processo de emancipação. De fato, um ‘mundo’ se abriu quando passei na UFSM no curso de Jornalismo. No entanto, logo foi possível entender os limites dessa universidade pública que carrega em si muitas contradições da própria sociabilidade capitalista. Ou seja, uma universidade, na maioria dos casos, com precárias condições de acesso e permanência para os (as) estudantes, com infraestruturas que não dão conta das demandas de ensino, pesquisa e extensão, com professores (as) reféns do produtivismo ou da produção de conhecimento voltada aos interesses do mercado. Uma universidade ainda muito branca e elitizada, mesmo que esse quadro já tenha se alterado um pouco nos últimos anos, mas ainda de forma insuficiente, em especial no corpo docente. Instituições que reproduzem processos de assédio e relações de trabalho que se alimentam com lógica da competitividade. Temos muito que avançar para construir uma universidade popular que vá além do seu caráter público e gratuito, mas que possa ser uma universidade discutida e construída à luz de um outro projeto societário, a partir de um projeto de emancipação e que, histórias como a minha, não sejam exceções à regra, mas que as (os) filhas e filhos da classe trabalhadora possam ocupar as nossas universidades e que possamos produzir conhecimento coletivo que atenda aos interesses do povo trabalhador e que supere todas as formas de opressão e exploração.

 

4) Enquanto militante docente e dirigente do ANDES/SN, como desenvolver uma participação ativa em defesa dos direitos da categoria?

Um dos grandes desafios que temos nesta quadra histórica que nos coube atuar como militantes da categoria docente é a necessidade de ampliar a mobilização dos (as) professores (as) para que se sintam parte de um processo coletivo de luta em defesa da universidade pública e referenciada nos interesses de classe, pela valorização da nossa carreira, por melhores condições de trabalho e de vida, com isso, ser contra as tentativas de transformação do espaço da educação presencial humanizadora e crítica em uma educação voltada aos interesses exclusivos do mercado, desumanizada, mediada somente por tecnologias e pela lógica empresarial. Tudo isso associado à luta pela ampliação do acesso à universidade, em especial, para os estudantes negros (as), indígenas, da periferia, filhas e filhos de nossa classe. E isso depende de instrumentos que tenham a capacidade de provocar a consciência crítica dos (as) professores (as) como é o caso do sindicato. Temos o desafio de transformar nossos sindicatos de base, junto ao ANDES-SN, num espaço de luta, debate, acolhimento e lugar de mobilização da nossa categoria. Entendo, no entanto, que esse movimento não pode estar descolado das lutas dos trabalhadores (as) técnicos, dos estudantes, dos (as) trabalhadores (as) terceirizados (as), mais do que isso, tem que estar associado às pautas mais amplas do entorno da universidade, quais sejam, as lutas por moradia, por emprego, por terra, contra a precarização do mundo do trabalho. Por isso, precisamos de um sindicato capaz de intervir lado a lado com os movimentos de juventude, movimentos sociais e populares na realidade e transformar nossas universidades, institutos e CEFETs em espaços de organização das nossas lutas e de formação humanizadora e crítica.

5) O ANDES/SN está começando um processo de disputa eleitoral e você está como secretária geral da chapa 1. Quais são os eixos gerais que conformam a proposta dessa alternativa que quer dirigir o sindicato nacional?

A Chapa 1 reivindica a história de luta do ANDES-SN nos seus erros e acertos e compreende que nosso sindicato é um instrumento fundamental de luta no Brasil que tem se consolidado como um sindicato com independência de classe. Um sindicato autônomo, classista e construído por suas bases que hoje está enraizado em mais de 120 seções sindicais nas universidades federais, estudais e municipais, Institutos e CEFETs em todo território nacional. Articulamos no programa da Chapa 1 as reivindicações pelas condições de trabalho e de vida da nossa categoria docente que está na ativa, mas também as condições de vida dos (as) professores (as) aposentados (as); a defesa da universidade pública, gratuita, laica e referenciada nos anseios fundamentais do nosso povo trabalhador, para isso, defendemos uma ciência e tecnologia popular e com financiamento público, aliás, a questão da recomposição do financiamento público é algo central. Também, reforçamos a luta pelas liberdades democráticas, contra o fascismo e pelo reconhecimento da necessidade de contribuir para o processo de reorganização da classe trabalhadora. Para nós, a classe trabalhadora não é uma abstração, tem raça, gênero, sexualidade, território e cultura e isso nos exige uma atenção especial às lutas contra as opressões que entendemos como estruturais ao modo de produção capitalista brasileiro, por isso, nossa luta anticapitalista é antirracista, antimachista, antiLGBTfóbica e anticapacitista, pois enquanto houver exploração e opressão não é possível qualquer processo de educação emancipadora. Outra questão fundamental da nossa chapa é a compreensão de que não podemos cair no encanto do adesismo às políticas do novo governo – que apresenta muitas contradições -, mesmo tendo representado uma vitória importante na luta contra o fascismo, ao mesmo tempo em que, não podemos deixar de estar alertas à ameaça permanente do avanço do fascismo e das forças conservadores e de extrema-direita no país o que demanda esforços de construção de unidade em nossas lutas, por isso, também não podemos titubear diante de qualquer projeto político sectário que nos impeça de seguir avançando em nosso processo de reorganização.

6) Você também é militante e dirigente do PCB, qual é o papel da práxis comunista na sua trajetória?

Se bem o ideário comunista se consolida em minha vida em período recente, fundamentalmente, depois de já estar organizada no movimento sindical docente e no PCB, os princípios que movem nossa práxis comunista ancorada na camaradagem, na necessidade de mudança radical deste estado de coisas, no sentimento profundo de humanidade e solidariedade de classe e internacionalista sempre estiveram presentes na minha vida. Volto a mencionar um pouco da minha história: sou filha de uma mulher campesina que sempre esteve envolvida na luta sindical, na organização do sindicato rural e das lutas feministas das mulheres no campo, sendo hoje, inclusive, presidenta do Sindicato Rural de Charrua. Meu pai também sempre esteve presente na luta sindical, na luta pela agricultura familiar contra o avanço do agronegócio e no movimento contra as barragens. Me criei em uma comunidade rural onde os princípios de solidariedade comunitária sempre estiveram presentes, estudei até a 5º série em uma escola rural onde éramos responsáveis pela autogestão do espaço coletivo da escola. Nasci em 1984 e, como sempre me lembra minha mãe, com um ano de idade ela me colocava dentro de uma ‘bacia’ e me levava para os ‘movimentos’, me criei nos ‘movimentos’ que, na década de 80, lutaram pela constituinte. Fui pouco atuante no movimento estudantil mais organizado, na universidade acabei me envolvendo muito mais com projetos de extensão em diferentes realidades de Santa Maria, foi então no cinema e na comunicação no RS que me reencontrei com a militância política. Logo ao entrar na universidade como docente, foi o sindicato que me levou ao PCB, ao principal operador político das lutas de nossa classe nestes últimos 101 anos. Me orgulho e sinto-me muito comprometida com a construção do nosso partido, mais do que isso, movida pelos princípios que balizam nossa práxis.

7) Em um momento de condensação da crise capitalista no Brasil, qual seria a principal bandeira que pode ser levantada para colocar a classe em movimento no atual cenário político brasileiro?

Precisamos intensificar nossa presença e intervenção no chão dos nossos locais de trabalho, de estudo, na relação próxima com os movimentos populares de luta por moradia, por terra e por pão. Estamos numa encruzilhada histórica que nos exige esforços militantes e uma leitura de conjuntura que nos levem a movimentos táticos no sentido da disputa da classe trabalhadora massacrada pela desesperança diante de um brutal cenário de exploração e opressão e distante dos espaços de organização coletiva, como os sindicatos. É momento de disputar essa classe trabalhadora, de estar nas ruas, de apresentar com nitidez e entusiasmo as nossas bandeiras históricas, com mediação tática, a partir das condições concretas da vida. É momento de reorganização das nossas lutas, de assentar nossos esforços na construção de um novo ciclo de luta, um ciclo que nos afaste do gosto amargo da derrota histórica que sofremos e que nos permita avançar na construção de outro modo de vida, que, na nossa compreensão, só será possível quando superarmos o capitalismo. Até lá temos muito chão e boas lutas para pavimentar. É momento de nos reorganizar e de disputarmos com mais ênfase ainda os corações e mentes.

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