No encerramento do semestre, estudantes relatam adoecimento mental e falta de assistência estudantil planejada no ensino remoto
Por Nalbert Antonino
(Des)Assistência Estudantil – “Nunca me senti tão desgastada mentalmente”. Esse foi o relato da estudante do 7º semestre de Direito, Flávia Oliveira, sobre a experiência no semestre letivo suplementar (SLS) da UFBA. Com 24.522 alunos matriculados, o SLS da Universidade Federal iniciou o seu período letivo no dia 09 de setembro e, a poucos dias para a conclusão, a administração central já tem marcada a realização de mais um semestre remoto para o início de 2021.
Como muitos alunos de baixa renda, Flávia reclama de dificuldades para estudar e assistir as aulas devido à falta de uma estrutura adequada onde mora; com dois filhos e vivendo na casa da avó, a estudante de Direito precisou se inscrever nas Tendas Virtuais – o projeto permitia que os alunos inscritos tivessem acesso à internet e espaço de estudo na universidade durante a pandemia – para só assim conseguir assistir as aulas online.
Ela conta que, com exceção dos sábado, tinha que pegar um ônibus todos os dias para assistir às aulas online no PAC (Pavilhão de Aulas do Canela). “…Não recebi nenhum auxílio, inclusive na quinta-feira estive no PAC e vi que estava fechado. Nem sequer me mandaram e-mail ou ligaram pra avisar que não abriria. Justo nesse dia que tinha que responder uma avaliação. Fiquei no pátio do PAC usando a internet UFBA visitante para poder responder… fiz pelo celular, que tem a tela trincada”, conta a estudante.
Além disso, Flávia, assim como muitas mães durante o período de quarentena, precisou conciliar as demandas do final de uma graduação junto à criação e formação dos seus filhos. “Tem sido horrível… sem escola, eu que tenho que ensiná-los; no começo fazia atividades para entretê-los, mas depois não tinha mais criatividade para nada; fazer comidas diferentes; só estudo depois que eles dormem”.
Quando perguntada sobre a condição da sua saúde mental, Flávia disse que nunca esteve tão desgastada mentalmente e comparou com períodos em que fazia uso de medicamentos controlados. Mesmo assim, preocupada em finalizar o curso, ela diz que pretende participar do próximo semestre remoto. “Infelizmente vou ter que fazer… se não, a formatura vai ficar muito distante”.
Essa preocupação foi uma constante entre muitos estudantes que enxergaram no SLS uma forma possível para “adiantar” a graduação. Como aponta o relatório institucional sobre as ações remotas do UFBA em Movimento, 60% dos matriculados no SLS tiveram a renda mensal diminuída na pandemia. Em contraste com os índices de aumento do desemprego, tem gerado ansiedade e angústia entres os estudantes, que cada vez mais precisam se inserir no mercado de trabalho.
Esses dados são ainda corroborados pela V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural de Graduandos/as das Instituições Federais de Ensino (IFEs), realizada em 2018 pela Associação Nacional de Dirigentes destas instituições, que aponta que 70,2% dos estudantes das IFEs tem uma renda mensal de até 1,5 salário mínimo, fazendo um contraste notável com os dados de 22 anos antes, quando esse percentual era de 44,3%.
Nesse sentido, embora tenha sido apresentado como “experimental” e “não-obrigatório”, essa não foi a realidade para os muitos estudantes, principalmente os que dependem das bolsas para sobreviver e que tiveram que se inscrever no SLS para garantir a regularidade da matrícula e de sua fonte de renda.
Esse foi o caso do estudante de Letras Everton Maurício, que, desde março deste ano, vive em Salvador com uma bolsa de R$900,00 pela monitoria em aulas de espanhol para o PROFICI (Programa de Proficiência em Língua Estrangeira para Estudantes e Servidores da UFBA). Orientado pelo colegiado a se matricular em pelo menos uma matéria para não perder a bolsa, Everton chegou a solicitar 6 disciplinas na matrícula web, sendo-lhe concedida apenas uma disciplina optativa.
Essa única disciplina optativa foi, durante um breve momento, o principal vínculo entre ele e sua fonte de renda. Quando soube da notícia de que a disciplina seria cancelada devido a internação do professor, o estudante conta ainda não ter noção do que significava a perda desse vínculo. Foi, porém, no dia 29 de outubro, quando contactado pela sua orientadora pedagógica (e também diretora do Instituto de Letras) avisando que ele estaria sendo afastado do PROFICI, que compreendeu ser por causa do cancelamento da única disciplina que conseguiu.
Certo de que não havia feito nada de errado e de que se tratava de um mal entendido, Everton buscou entrar em contato com a coordenação do PROFICI, e, na medida em que a situação não se resolvia, tratava de encaminhar para uma instância superior.
“Eu não tenho fonte de renda, estamos numa pandemia, a situação está extremamente complicada. Não sou daqui de Salvador, minha família mora em Camaçari e eu não tenho nenhum apoio porque eu sou gay, meu pai não me aceita, então eu não tenho nenhuma ajuda ou apoio financeiro, nunca tive desde que eu tô aqui nessa luta universitária”, relatou.
O estudante diz que, para não para não encerrar o processo, precisou entrar em contato diretamente com o reitor da universidade, que, num primeiro momento, chegou a encaminhar a situação para a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPG), e, num segundo momento para a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE), não no intuito de retomar a bolsa inicial, mas de conseguir algum outro auxílio que consiga ajudá-lo a se manter.
Os impactos de um sistema desordenado e pouco organizado tem afetado cada vez mais a saúde mental dos estudantes, à mercê de uma burocracia que pode determinar a permanência ou não no espaço universitário.
UFBA em Movimento? Para onde?
Embora tenha sido aprovado por unanimidade no Conselho Universitário (CONSUNI), a proposta do semestre suplementar nunca foi um consenso na comunidade UFBA. Quando ainda se discutia sobre a possibilidade de um semestre remoto, houveram manifestações contrárias nos mais diversos institutos, apontando inclusive para a necessidade de se pensar a assistência estudantil e a própria relação do processo de ensino-aprendizagem.
Na reunião do CONSUNI do dia 21 de julho, quando foi debatida a proposta do Semestre Letivo Suplementar, houveram manifestações críticas por parte do movimento estudantil – se diferindo da posição de adesão do DCE e constrangendo o espírito de unidade absoluta e uniformidade em relação às decisões da reitoria.
Entretanto, o semestre foi aprovado mesmo assim. Sob a argumentação de que a UFBA não poderia parar de exercer a sua “vocação ao ensino”, foi adotado o mote “UFBA em Movimento”, que nomeou o portal agregador de informações e dicas para o semestre. Agora, próximo ao fim dessa experiência, tem se buscado fazer um balanço crítico ao SLS, para além da publicidade política – afinal, para onde a UFBA esteve em movimento?
Para o professor Hélio Messeder, do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (PPGEFHC) e do Instituto de Química da UFBa, está havendo um entusiasmo muito grande da parte da reitoria em falar de um “êxito” do semestre suplementar. “Precisamos considerar que, para fazer de fato um balanço desse semestre, é necessário ter com mais clareza os índices de evasão dos estudantes nas disciplinas e a relação de aprendizagem daquilo que as disciplinas se propõem a ensinar”, afirma o professor.
Especialista em Psicologia e Pedagogia Histórico-Crítica, o professor acredita que “existe um elemento, do ponto de vista do ensino e aprendizagem, que precisa ser colocado, que é a dimensão da relação afeto-cognitiva com o conteúdo. E aqui não tem nenhuma celebração do afeto, mas uma perspectiva de que, de fato, as relações sociais estabelecidas com o processo de aprendizado de qualquer coisa que seja não é mero detalhe, é essencial no movimento”, ele afirma.
Continua: “Isso perpassa pela própria construção dos motivos e disposições para estudar, que dependem de um ambiente adequado para isso. Ou seja, envolve ter acesso a espaços de biblioteca para poder estudar, envolve ter acesso a grupos de estudos, a livros, e as relações emocionais com esses materiais que são importantíssimas no processo de aprender e ensinar.”
“Isso é completamente desconsiderado e passa-se a pensar muito pouco sobre, ou passa-se a pensar nas condições de aprendizagem apenas por acesso a computadores, ou acesso a chips, como se isso fosse suficiente para o processo de ensino-aprendizagem. Sem levar em consideração as condições de estudo, os lugares que os estudantes estão, e as relações que esse estudante poderá estabelecer com os conteúdos ensinados sendo atravessado pela vida cotidiana. Isso não é uma questão menor…”.
“É uma pena, a Universidade poderia ter aproveitado o momento para estreitar os laços com a comunidade, para poder falar de extensão, dentro dos limites extensionistas poder divulgar seu trabalho, mas preferiu tocar como se nada tivesse acontecendo, tentando dizer que a Universidade estaria fazendo seu papel de ensino. Não está, porque isso não é ensino”, conclui.