Concessão dos Parques Ambientais para Iniciativa Privada

Reprodução: R7

Por Rodrigo Cabral e Rodrigo Santos

Concessão dos Parques Ambientais para Iniciativa Privada: O Cerceamento dos Bens Comuns e o Ecoturismo Financeiro – Estamos em 2021, quase 1 ano de pandemia, e o Ministro do Meio Ambiente – Ricardo Salles –, conforme prometido, segue “passando a boiada”. No momento, a nova atenção do mercado financeiro tem sido o enorme “potencial ecoturístico” brasileiro, que levou ao governo federal incluir os parques ambientais no Programa Nacional de Desestatização (PND), no decreto nº 10.147 lançado em dezembro de 2019. Esse é um dos programas-chave de Paulo Guedes no tocante a privatização e concessão dos órgãos e bens estatais para empresas e grandes corporações. Estes parques estão regulados enquanto Unidades de Conservação (UC), pela lei 9.985/2000,3 que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

Nesse sentido, a operacionalização desse processo se deu por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que, através do Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais, irá realizar os estudos necessários à concessão. Inicialmente, esse processo tinha foco nos Parques Nacionais de maior potencial turístico, como o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses e Foz do Iguaçu, mas agora também já atinge diversos parques estaduais do Brasil, incluindo a Bahia. O Governador do Estado da Bahia, Rui Costa (Partido dos Trabalhadores), por meio da Secretaria de Meio Ambiente (SEMA), sem o menor questionamento ou posicionamento crítico desse processo, está dando seguimento ao projeto de concessão dos parques. Inclusive, já anuncia o início do processo de estudo da viabilidade econômica da concessão por meio do BNDES em conjunto com o INEMA,[1] órgão de fiscalização ambiental do estado.

Mas porque um banco como o BNDES se interessaria pela gestão de parques ambientais e urbanos? Qual tipo de negócio está associado a isso? Para elucidar esta questão, precisamos apontar os novos critérios ambientais, sociais e de governança para investimentos em ações que, desde 2018, são defendidas pelo mercado financeiro com o objetivo de capitalização de empresas: a agenda ESG (ESG do inglês, environmental, social and governance). A introdução dos critérios ESG para a ampliação do mercado de acionistas pretende levar em consideração todos os processos que envolvem dimensões ambientais, trabalhistas e de governança da produção[2]. Uma agenda criada pelo próprio mercado financeiro para regular o investimento em crédito para recursos em projetos, inserindo uma narrativa de Princípios de Investimentos Responsável para atrair investidores na reformulação da performance para empresas. Nesse sentido, vemos como a biodiversidade brasileira já se tornou objeto de atenção do mercado financeiro internacional e o meio ambiente agora também é um ativo (“ativo verde”).

O BNDES incorporou essa agenda no Brasil com o objetivo de captar recursos necessários para os projetos e programas de desestatização e privatização dos serviços públicos. Aqui ele assume a função de ser o responsável de disseminar práticas ESG, que melhoram a governança dos produtos e serviços, afim de diminuir os custos considerados um “peso” para o Estado na regulamentação, gestão e fiscalização dos parques urbanos e naturais do Brasil[3]. É com essa narrativa que o BNDES se coloca enquanto um Banco que se preocupa com a situação socioambiental do Brasil, ao considerar que o Governo demonstra falha e incompetência na administração/gestão de recursos públicos – inserindo a iniciativa privada como a única capaz de resolução dos problemas. Oferece, através do Programa de Estruturação e Concessão de Parques Naturais, lançado no fim de 2020, propostas de desestatização por serviços de visitação com o objetivo de atrair investidores para melhorar a qualidade de infraestrutura, ampliação de novos atrativos e regulação do acesso a estes espaços[4].

Uma pesquisa, publicada em 2020[5] e realizada pelo Instituto Semeia (instituição parceira direta do BNDES), teve o objetivo de compreender qual a percepção dos brasileiros sobre os parques naturais e urbanos no Brasil. Ficou evidente a intencionalidade desta pesquisa ao se obter como resultado principal do relatório o favoritismo de 74% da opinião dos entrevistados à concessão de parques estaduais para a  iniciativa privada, indicando a motivação como melhorias na infraestrutura interna, acesso e entorno dos parques. Vale ressaltar que a amostra realizada no relatório totaliza 815 entrevistas, sendo 204 pessoas entrevistadas em São Paulo, 122 no Rio de Janeiro, 120 em Porto Alegre, 128 em Salvador, 121 em Manaus e 120 em Brasília. Ou seja, a amostra não representa uma população expressiva e nem diversificada sobre a opinião pública nacional e nem deve servir de parâmetro para institucionalização de uma política ou programa de desestatização de um bem ou serviço público. A falta de participação popular nas tomadas de decisão deste país já se tornou regra para expropriação de direitos fundamentais e cerceamento dos espaços de uso comum e gratuito. Essa proposta liberal fica mais evidente na pesquisa quando perguntado para os entrevistados sobre o grau de eficiência dos Governos, perguntando se os entrevistados concordavam com as seguintes afirmativas: a) Mesmo quando tem dinheiro, o governo não é eficiente na gestão de seus recursos; b) Parcerias do governo com a iniciativa privada podem melhorar o atendimento da população. As duas proposições tiveram altos índices de aprovação, incitando a opinião pública a não só estar de acordo com as afirmações preestabelecidas, mas, excluindo as alternativas de resolução da falta de governabilidade dos bens públicos, orientando os resultados dos questionários para convergir na direção do que na verdade já está acertado pelos investidores do mercado financeiro, criando uma falsa ilusão de consulta popular.

Entre as indicações de concessão de parques no Estado da Bahia, as propostas começaram pelos que possuem o maior potencial turístico na Bahia, entre eles o Parque Zoobotânico Getúlio Vargas (o Zoológico de Salvador), fechado desde o início da pandemia. Em pesquisa, no portal da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR) da Prefeitura e do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), dos mapeamentos e macrozoneamentos oficiais elaborados para compor a Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo (LOUOS) e o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), a área do zoológico não está enquadrada enquanto Unidade de Conservação de acordo com o artigo 157 do PDDU 2016. Está enquadrada apenas enquanto macrozona de conservação ambiental, uma categoria que não estabelece diretrizes para a preservação integral daquela floresta e nem a necessidade de um plano de manejo. Ou seja, mesmo contendo uma área com remanescente de Mata Atlântica, o parque não está delimitado como tal. Além disso, a inexistência do plano de manejo possibilita uma maior liberdade para a empresa que conseguir a concessão, no sentido de uma gestão que não tenha a obrigação legal de participação da comunidade local na administração do parque. É importante lembrar que as UC’s são as principais políticas públicas de preservação do meio ambiente no Brasil, que já se encontram tão degradadas e predatoriamente exploradas principalmente devido ao nosso modelo econômico agroexportador e de mineração.

No dia 03 de fevereiro[6] ambulantes que trabalhavam na área do Zoológico de Salvador fizeram uma manifestação pedindo a reabertura do parque. Segundo esses trabalhadores e trabalhadoras, o público que frequentava o parque era a sua principal fonte de renda. Com o fim de suas reservas de dinheiro e também do auxílio emergencial, eles encontram-se sem nenhuma garantia de renda para si e para suas famílias, pois são trabalhadores informais. Em entrevista para O Momento, dois ambulantes que trabalhavam na área do zoológico, residentes do entorno no bairro do Alto de Ondina, Keli e Edmilson, colocaram algumas contradições e preocupações relativas à concessão da gestão do parque para uma empresa ou grande corporação. Como dito anteriormente, o zoológico de Salvador não está enquadrado enquanto uma Unidade de Conservação, logo, não há a existência de um plano de manejo e nem da participação da comunidade local na gestão do parque, informação que é confirmada pelos ambulantes, que afirmam nunca haver um contato com a administração do parque além do que fosse referente ao cadastro dos ambulantes para a venda de suas mercadorias no zoológico.

“A única relação com o INEMA, na verdade com o zoológico, que os ambulantes de dentro tem é o cadastro pra saber quem tá lá dentro e quando é necessário tirar alguma coisa eles tem que se reportar ao diretor, que é o biólogo Vinícius. Só. A relação é essa. Não participam de nada (plano de manejo do parque). Tanto na matéria quando vocês forem ler você vai ver que diz que tá conversando com a comunidade pra ver a melhor forma de privatizar e não existe isso. Não tem como ter conversado com ninguém da comunidade. Porque a gente tá aqui na frente (moram em frente ao muro do zoológico) e não fomos procurados e ninguém disse que foi procurado porque se alguém tivesse sido procurado pra conversar teriam avisado, a gente tem um grupo né, teriam avisado. (Keli, ambulante)

Ou seja, mesmo enquanto residentes da área do entorno do parque, nunca houve um contato dos órgãos públicos responsáveis com a comunidade local. Sendo assim, se esse diálogo nunca aconteceu, qual a garantia de que o processo de concessão da área de visitação do parque irá ocorrer de maneira democrática e com participação dos que vivem lá?

Outro problema bastante grave que esse processo de concessão pode acarretar é relativo aos limites do entorno do parque, onde existem muitas famílias que construíram suas casas, mas que até hoje não conseguiram a regulação fundiária de sua propriedade (encontram-se sem escritura, que nunca foi dada pela prefeitura). Com a concessão e a possível especulação imobiliária no Alto de Ondina, modificando os acessos e serviços do entorno, há o risco de retirada dessas famílias desta comunidade. No zoneamento do município, a área do Alto de Ondina já se encontra enquadrada enquanto Zona Econômica de Interesse Social (ZEIS). No mapeamento, já estão identificadas as áreas de assentamentos precários: favelas, loteamento irregular e conjuntos habitacionais irregulares. Essa vulnerabilidade habitacional coloca essas famílias, que residem nesta área em um risco de serem desalojadas, por um processo não participativo de regularização fundiária (expulsão por indenização). A iminência desse risco é colocada por Keli e Edmilson, que inclusive falam sobre o processo histórico de retirada e expulsão das comunidades do Alto de Ondina e imediações, uma área de alta especulação imobiliária

 “Fui testemunha de várias derrubas daqui de casa, várias e várias vezes. Eles vinham com presidiários no carro da presidiária para poder derrubar as casas tudo com martelada, como o terreno é muito íngreme, não tem como entrar com trator, então tinha que derrubar no braço, como os servidores públicos não queriam fazer este trabalho, vinham os presidiários, todos de camisas em seus rostos, com marretas de 2 metros e chegavam e derrubava mesmo”  (Keli, ambulante)

“Temos o medo de eles quererem desativar a comunidade, por tudo, porque pode colocar um condomínio de não sei quantos apartamentos, pode colocar resorts, porque é uma área muito cobiçada, desde do tempo de ACM, uma das coisas que ele não conseguiu fazer foi desalojar todo mundo aqui, mas, hoje em dia,  tudo pode acontecer, colocarem o pé de que pode atrapalhar o investimento deles, que quando eles verem na planta e perceberem que ao lado tem uma comunidade, eles podem dizer “não, eu posso comprar, eu posso privatizar isso aí, porém essa comunidade vai ser desativada” tenha certeza que o governo não vai pensar duas vezes, não vai pensar que somos seres humanos, ser vivo, mas seguramente desalojados” (Edmilson, ambulante)

Além disso, outro cenário que também se coloca com a concessão dos parques para a iniciativa privada, e que, ironicamente, também está colocada na pesquisa do Instituto Semeia – a pesquisa que o BNDES usa enquanto referência a uma “consulta popular” –  é a cobrança de uma taxa de entrada para o parque. Até o presente momento, o zoológico de Salvador sempre foi um parque de acesso gratuito. Porém, essa gratuidade tende a acabar a partir do momento que a iniciativa privada assumir a gestão do parque, pois todo o investimento em infraestrutura de visitação que será colocado, certamente pedirá um retorno financeiro. Na pesquisa do Instituto Semeia, onde foram entrevistadas 815 pessoas em alguns estados do Brasil, eles colocam que “Entre aqueles que nunca visitaram um parque natural (47%), as principais barreiras mencionadas à visitação revelam limites em termos de recursos (custo, 52%)” ou seja, não terão dinheiro para o pagamento da tarifa de visitação após ser concedido. De forma bastante lúcida, Keli e Edmilson descrevem as consequências da taxa de ingresso:

 “Pra ter essa quantidade de animais que o zoológico necessita, vai ter que ter um retorno financeiro, um ingresso financeiro. E não vai ser 5 reais por pessoa. Cinco reais pra ver elefante, pra ver leão, pra ver pinguim, foca essas coisas não vai ser 5 reais, eles vão cobrar caro! E mesmo se fosse 5 reais, as pessoas não tem condição. […] E ainda tem isso né, vai elitizar o público do zoológico. Vai cercear o lazer gratuito que a galera tinha né? Que domingo é dois reais (a passagem de ônibus), fazia aquele aperto, e botava os meninos pela frente, pagava os dois reais de transporte e vinha. Fazia sua farofa, seu guaraná e vinha. E agora não vai ter né?”  (Keli e Edmilson, ambulantes) 

Também no sentido de “higienização” dos serviços do parque, que irá segmentar o uso em diferentes públicos, os ambulantes também trouxeram a preocupação de não serem privilegiados no serviço de alimentação com a possível substituição desses por quiosques e franquias de fastfood, retirando os meios de trabalho dessas pessoas. Sobre isso, Keli também relata:

“Pituaçu não é um parque assim com um público de visitantes. Porque Pituaçu é um parque que só tem natureza. O parque de São Bartolomeu até a localização não facilita toda população da cidade ir pra lá. O zoológico ja bateu 80 mil pessoas num dia. Porque é num lugar central, um bairro central. Todo lugar você consegue acessar fácil. Dia de domingo tem o negócio dos dois reais. E aqui todo mundo vem, pobre, rico, preto, branco, favelado, quem mora no Horto. E agora isso ai vai ser elitizado, né? Porque um público elitizado vai ter que ser posto do Subway, MC, Habbibis, essas concessionárias grandes ai, as empresas grandes, gringas, né? Enquanto Dona Maria que vende um churrasquinho ali, que vende um cachorro quente… não vai poder mais.”  (Keli, ambulante)    

Por fim, vale mencionar que o zoológico de Salvador é apenas um dos parques da Bahia que estão começando os processos de estudos setoriais para a concessão da iniciativa privada. Também estão em estudo os parques de Pituaçu, São Bartolomeu, os parques estaduais da Serra do Conduru (nos municípios de Ilhéus, Itacaré e Uruçuca) e o Sete Passagens (município de Miguel Calmon). A política de concessão dos parques ambientais para a iniciativa privada ainda é muito recente e sem muitos exemplos históricos. Porém, já é possível traçar alguns cenários e identificar as intencionalidades envolvidas, principalmente em um contexto de um governo neoliberal durante um período de crise prolongada do capitalismo, onde a pandemia tem sido um grande catalisador das crises sociais.

Sendo assim, algumas questões ficam sem resposta sobre o andamento desse processo: Qual nível de participação popular que se pretende usando o termo “consulta à sociedade” no processo de implantação da concessão? Quais serão as reivindicações da comunidade local capazes de alterar o que já está pré-estabelecido e orientado pelo mercado financeiro? O que desencadeou o esfacelamento do Estado, a ponto de agora não poder gestionar, fiscalizar os próprios parques ambientais?


[1] Parceria entre o BNDES e Governo do Estado fortalecerá gestão de preservação de parques baianos. INEMA. Disponível em: <http://www.inema.ba.gov.br/2021/02/parceria-entre-o-bndes-e-governo-do-estado-fortalecera-gestao-de-preservacao-de-parques-baianos/> Acesso em 20 Fev 2021.

[2] Wongtrakool, B.; ”ESG essentials: What you need to know about environmental, social and governance investing”; Western Asset report, 2018.

[3] Ambrozio, A.M.; Barboza, R.M; Casotti, B; Kabri, N.M; Capanema, L. Ervilha, G.”A Difusão da Agenda ESG no Mundo e no Brasil”. Agência BNDES de Notícias. Blog do Desenvolvimento, 2020.

[4] Agência BNDES de Notícias. “Para melhorar experiência de visitantes, BNDES estrutura concessão de parques estaduais”. Disponível em: <https://agenciadenoticias.bndes.gov.br/detalhe/noticia/Para-melhorar-experiencia-de-visitantes-BNDES-estrutura-concessao-de-parques-estaduais/> Acesso em 18 de Fev. 2021.

[5] Instituto Semeia. Parques do Brasil: Percepções da População, 2020.. Disponível em <http://www.semeia.org.br/arquivos/2020_PercepcoesdaPopulacao_V6.pdf> Acesso em: 18 Fev. 2021.

[6] Ambulantes realizam protesto e pedem reabertura do zoológico de Salvador. Portal G1 BA. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/02/03/ambulantes-realizam-protesto-e-pedem-reabertura-do-zoologico-de-salvador.ghtml> Acesso em: 20 Fev. 2021.

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