Como estão as drag queens soteropolitanas durante a pandemia?

Karma Leoa e Marie Flamel

Karma Leoa e Marie Flamel

Por Luiza Brandão

São notáveis, ainda que de maneira muito lenta, os avanços no que diz respeito à cidadania e reconhecimento da população LGBTQIA+. Com isso, as expressões culturais dessa comunidade, entre elas a cena drag queen, vêm ganhando espaço ao redor do mundo. Tal acontecimento é resultado da luta histórica dessa parcela da população em busca de legitimar suas identidades e atuar para a construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária. Embora as produções culturais e a própria luta política da comunidade LGBTQIA+ sejam alvos constantes de cooptação por uma lógica liberal através, por exemplo, de uma representatividade meramente simbólica em programas de televisão, e da política do Pink Money, as produções artísticas da cena emergem, sobretudo a partir da década de 70, como forma de resistência e movimento político.

É nesse contexto em que a arte drag se apresenta em seu caráter político. Essa representação artística, com frequência, dialoga e se insere junto à luta antipatriarcal, no sentido de expor o modo através do qual as relações de gênero se expressam a partir de uma ideia de performance: comportamentos considerados masculinos ou femininos nos são ensinados desde a mais tenra infância, a partir da socialização dos homens para o papel de dominador e provedor, ao passo que a mulher é subalternizada e confinada às funções relacionadas à reprodução social (cuidar das casas, satisfazer sexualmente o marido, reproduzir a força de trabalho, cuidar das crianças, etc). Faz-se importante mencionar que essa divisão binária de gênero é, nada menos, que uma perspectiva importada da Europa que se impôs às populações locais, sobretudo nas Américas e no continente africano. Se observarmos a organização social de povos nativos americanos, é notável, até o início da catequização dos povos indígenas, que passa a reprimir as performances de gênero que não se encaixam nos ideais de masculinidade e feminilidade, a inexistência de tal divisão. Drag, portanto, se constitui enquanto movimento político no sentido de romper com essa perspectiva sobre o gênero, rasurando uma visão binária acerca da masculinidade e da feminilidade imposta pelo que Saffioti chamou de racismo-patriarcado-capitalismo.

É notável que o surgimento da pandemia do Coronavírus vem impactando de modo bastante particular o setor da cultura. A necessidade do isolamento social e a demanda pela suspensão de atividades presenciais seguem afetando diretamente a cena: mesmo com a flexibilização das medidas restritivas devido ao avanço, ainda que a passos muito lentos, da vacinação, as atividades culturais estão entre as últimas a retornarem de forma plena. Este fator vem de encontro justamente àquilo que é a essência da arte drag: a importância do palco, da platéia e da interação direta com o público.

Desde o início da pandemia, diversas artistas se viram diante da necessidade de se reinventar para garantir a própria sobrevivência. Segundo a drag queen Karma Leoa, representada por Anna Louise Rabello, que começou a se envolver com a cena a partir de 2017 com experimentações de roupa e maquiagem, “na pandemia a gente passou por muitas dificuldades, por que, o que era nossa vida, né? A gente performava nos palcos, a gente ganhava o nosso cachê da noite, seja como drag queen num palco performando, dublando, cantando, seja como drag queen que trabalha como hostess de uma festa, seja como drag queen que trabalha como produtora de uma festa, seja como drag queen que trabalha como DJ de uma festa, tipo, seja em casamentos, eventos sociais, isso mudou muito por que a arte performática de quem trabalha no palco, com o público, mudou completamente. […] a gente teve que se adaptar.” Karma ainda apontou para o fato de que parte considerável dessas artistas encontraram dificuldades para pagar o aluguel, bem como garantir itens básicos para a sobrevivência, muitas vezes tendo de contar com redes de apoio para conseguir financiar a própria vida.
Além das redes de apoio citadas acima, se faz importante chamar a atenção para a necessidade das drag queens de Salvador, e do Brasil como um todo, buscarem outras formas de atuação para além da performance. Christian Lacerda, que dá vida à drag Marie Flamel, unindo a arte drag à sua jornada acadêmica e à palhaçaria, aponta para a realização de performances online, ofertas de cursos e oficinas, e até mesmo o trabalho com chamadas de vídeo, no qual a artista é contratada para enviar mensagens a pessoas queridas, em moldes parecidos com o das telemensagens tão populares entre os anos 1990 e 2000.

Esse cenário evidencia a precarização da cena cultural e artística, sobretudo voltada para a comunidade LGBTQIA+, que vem sofrendo com um verdadeiro apagão nas políticas públicas direcionadas a esta parcela da população desde o início do governo Bolsonaro-Mourão. De 2020 para cá, vimos espaços de grande importância para a cena, como o Bar Caras e Bocas, fecharem as portas, ao passo que outros precisaram se manter abertos mesmo nos momentos de maior agravamento da pandemia, diante da necessidade de sobrevivência, uma vez que a maior parte da população brasileira sequer teve o direito a fazer quarentena.

Por mais que as performances online tenham se apresentado enquanto uma alternativa diante do contexto pandêmico, o fazer artístico das drag queens foi profundamente afetado. Nessas formas de expressão, nada substitui a energia e a necessidade do público, que acaba sendo um elemento ativo dessas apresentações. Para Marie Flamel “As pessoas que estão no público também estão performando, tipo, todo mundo tá trabalhando junto, se ligou? É uma coisa de troca […] Eu, especificamente, amo performar com o público, por que eu gosto de interagir com o público, eu acho que a energia do público muda a maneira com que você vai performar, e as minhas performances são muito pautadas em cima do improviso, então o que acontece na hora pode mudar completamente o que eu vou fazer.” A queen considera que o momento de transição para o online foi bastante difícil, por não gostar de trabalhar com tecnologia.

O que antes acontecia no calor do palco, hoje depende de conhecimentos técnicos do audiovisual, como iluminação, edição de vídeo e montagens de cenário, além de itens tecnológicos caros, como uma boa câmera, equipamento de som e internet rápida e estável. Isso, por si só, já figura enquanto algo que aprofunda as desigualdades entre as performers que possuem recursos materiais para investir nesses equipamentos e aquelas que precisam se virar com aquilo que tem em mãos. O contato com o público, portanto, “virou outra coisa no online. Virou palmas, virou coraçãozinho, virou comentários, e a gente sente falta do bater de palmas, do grito, da interação”, nos conta Karma Leoa.

Para as artistas LGBTQIA+, resistir e manter uma cena cultural ativa e movimentada diante das adversidades não é novidade. Essa parcela da população, diante do descaso do Estado e do apagamento promovido pela ideologia dominante, está habituada a se autoproduzir, mesmo com a ausência de qualquer investimento externo à própria comunidade que contribua para a elaboração e circulação de suas produções artísticas. Os circuitos da cultura, evidentemente, estão permeados pela lógica do capital, que define, com base nos interesses de uma minoria dominante, aquilo que terá maior alcance e circulação massiva entre a população. Diante disso, é importante mencionar algumas ações ocorridas durante a pandemia e que vêm mantendo viva essa arte, em meio a tantas dificuldades impostas.

Na primeira metade de 2021, a Pikú Online foi aprovada em primeiro lugar na categoria de formação em teatro da Lei Aldir Blanc, fornecendo oficinas de formação drag. Na ocasião, foram realizadas diversas atividades como a Oficina de voz (Karma Leoa), Oficina de performatividade (Aimée Lumière), oficina DeMonxtração (Malayka SN), Oficina de maquiagem artística (Milita Sativa) e Oficina de Vogue (Lucas Montty). Para a realização das atividades, seis residentes receberam um kit montação a fim de que pudessem realizar as atividades propostas. Além disso, o coletivo Manifesto, que vêm realizando festas e movimentando a cena da cidade desde 2019, produziu a Manifesto Nordestão, envolvendo pessoas LGBTQIA+ de todo o nordeste em sua Line Up. Os concursos também não pararam: em maio desse ano aconteceu o Super Queen, apresentado por Victoria Blossom e transmitido através do YouTube, além do concurso TNT Macabra, que teve a sua estréia no dia 4 de outubro, trazendo as influências do horror para a arte drag Nacional. O Reality é apresentado pela queen soteropolitana DesiRée Beck e está em andamento através do YouTube.

É notável que o momento segue sendo de grandes dificuldades para o setor cultural e a cena drag soteropolitana. Ainda assim, momentos como esse podem, também, atuar no sentido de fomentar a reflexão crítica e a necessidade de aliar a arte ao debate e à prática política, para assim podermos transformar o cenário em que nos encontramos. Diante da completa ausência de políticas públicas voltadas para a população LGBTQIA+ em todas as dimensões, temos uma comunidade que mantém ativas as suas produções e o “fervo”, demonstrando, também, relações de solidariedade e ajuda mútua para que possamos, coletivamente, atravessar o período sombrio em que vivemos.

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