Por Pedro Henrique Oliveira
Tratar sobre a formação histórica das identidades gays e lésbicas dentro do debate político do movimento LGBTQIA+ tomou tradicionalmente um percurso deveras emaranhado por uma defesa a-histórica dessas identidades, tendo como pressuposto básico preliminar a formação de narrativas mitológicas que sustentavam uma estratégia para tornar as experiências sexuais individuais inteligíveis dentro de uma comunidade, ou melhor, de uma subcultura urbana de homens gays e mulheres lésbicas que crescia a partir da segunda metade do século XX. Foi a partir daí que essa subcultura ganhou corpo e passou a se apresentar de maneira expressiva: até os anos 30 sua existência era difícil de identificar devido à instabilidade e ocultamento desses espaços. Mas antes de levantar os pontos problemáticos deste percurso, é necessário compreender de que forma, em qual contexto e quais foram condições históricas que provocaram a formação tanto dessa subcultura emergente quanto de novas identidades.
John D’Emilio, em seu texto intitulado “O Capitalismo e a Identidade Gay”, preocupa-se em delinear as condições históricas e materiais, dentro da emergência do capitalismo, que tornou possível o surgimento das identidades gays e lésbicas. Devido ao seu grande êxito em fazer uma análise materialista histórica da opressão LGBT, este texto será a base para a discussão que estamos propondo aqui. Dito isso, voltamos à questão inicial. John D’Emilio é criterioso ao vincular o surgimento dessas identidades sexuais, dentre outros fatores, à emergência do sistema de trabalho livre, possibilitado pelas novas relações sociais impostas pelo capitalismo.
O movimento de libertação gay emergente nos Estados Unidos a partir dos anos 60 configurou um momento no qual homens gays e mulheres lésbicas das grandes metrópoles estadunidenses tiveram conquistas institucionais significativas, como por exemplo, a revogação das leis de sodomia em diversos estados do país, a exclusão homossexualidade da listas de doenças mentais, etc. Vale destacar que estamos partindo de um contexto social pós Segunda Guerra Mundial, que reconfigurou as relações de sexualidade no interior da sociedade estadunidense uma vez que a Guerra possibilitou novas conexões de gênero e sexualidade. Recordemos que a Segunda Guerra separou os jovens por sexo de forma abrupta no processo de recrutamento militar: de um lado os homens combatentes eram enviados para lugares distantes e concentrados em centros militares; por outro lado, as mulheres permaneciam no país em pensões femininas para trabalhadoras ou eram enviadas às seções femininas do Exército estadunidense. Em decorrência disso, podemos inferir que a Guerra tornou possível a experiência de milhares de homens e mulheres afastada da sociabilidade heterossexual, o que permitiu uma maior abertura para relações não heterossexuais. D’Emilio traz relatos de aventuras homoeróticas entre soldados, marinheiros e fuzileiros navais em cidades portuárias, como Nova Iorque, que mais tarde se tornaria palco da grande revolta de Stonewall. Relatos, como o de Allan Bérubé, revelam o quanto a guerra foi crucial para a emergência de uma comunidade gay masculina nas grandes cidades dos Estados Unidos.
Isso tudo resultou na formação de uma subcultura de encontros em bares gays e lésbicos nos quais as relações homossexuais eram permitidas, criando o terreno para a formação de uma identidade assumida por todos de forma coletiva, tornando possível o nascimento de uma política ordenada por uma identidade sexual. Apesar disso, nos anos subsequentes ao movimento de libertação gay, um amplo setor de uma incipiente direita conservadora inicia uma estratégica perseguição contra a comunidade LGBT, que começava a ter destaque social e avanços políticos, invadindo bares e locais de encontros de pessoas LGBTs e perseguindo sistematicamente quaisquer movimentações da comunidade. Isso mostra o quanto havia uma fragilidade teórica e política dentro do movimento LGBT, que culminaram em um sentimento de liberdade dependente e relativa dentro de uma comunidade sem uma proposta teórica e de ação estratégica contra as medidas do Estado de McCarthy, que tinham como alvo justamente as pessoas que expressavam uma sexualidade desviante à norma, vinculando-os a uma decadência moral que precisava ser combatida com todas as ferramentas de vigilância e violência estatal possíveis.
Para avançar nas contradições e instabilidade, era preciso pensar e formular novas teorias e ações estratégicas, e nesse ponto é importante mencionar que o movimento de libertação gay não acumulava um estudo sobre a sua própria história. Esse é um aspecto findamental, uma vez que no lugar desse estudo foram construídas narrativas mitológicas do que seria ser gay ou lésbica e do que era preciso fazer para expressar essas sexualidades de forma livre política. Soma-se a isso uma característica significativa: uma grande quantidade de homossexuais e lésbicas nos anos 60 experienciaram suas relações sexuais de forma isolada, sem um entendimento real do significado do que sentiam. Então, a invisibilidade e as relações isoladas e escondidas seriam atributos positivos que devem fazer parte da vida gay no presente, e fazia também no passado. Essas narrativas, por consequência, continham um esvaziamento relacionado às condições históricas constitutivas dessa própria identidade. Por quê? O movimento de libertação gay, por sua característica incipiente, não formulou uma teoria em torno da opressão contra a comunidade LGBT que analisasse os aspectos históricos estruturais para o surgimento dessa opressão, vinculando-o ao processo de desenvolvimento do sistema capitalista. Isso causou um limite na perspectiva política do movimento LGBT, que precisou (e precisa, ainda hoje) ser superado.
O objetivo de John D’Emilio é questionar esses mitos criados ao propor a localização da formação tanto da identidade gay quanto da opressão contra as sexualidades não normativas dentro da sociedade capitalista. Então, a questão é descobrir as relações entre a identidade gay e o sistema de trabalho assalariado inaugurado pelo capitalismo. D’Emilio irá dizer que a expansão do capital e do trabalho assalariado possibilitou a formação da identidade gay, uma vez que ele isso modificou aspectos estruturais dentro da família nuclear como a indissociabilidade entre sexualidade e subsistência, que antes, nas sociedades pré-industriais, eram coisas imprescindíveis para a manutenção da economia doméstica, já que toda a subsistência era produzida pelos integrantes da família. Isso não quer dizer que não existiam práticas homossexuais nas sociedades anteriores à sociedade capitalista, pelo contrário. Contudo, é necessário pontuar que comportamento homossexual é diferente de identidade homossexual. O último só passa a existir com o desenvolvimento do sistema de trabalho assalariado pois o imperativo da procriação já não ditava as regras da expressão sexual.
É todo um conjunto de transformações de significados no interior da família nuclear que permite a aparição de uma vida gay. A família, a partir do século XIX, passou a ter um significado atrelado à afetividade, ao desejo, que produzia não só bens materiais, mas felicidade. Com a possibilidade de trabalhar fora de casa em uma grande fábrica, a família se tornou parte de uma “vida privada” diferente da “vida pública”, que seria o mundo do trabalho assalariado e a produção. Neste compasso, a sexualidade se desprendia aos poucos da procriação, se aproximando, ideologicamente, de uma expressão como um meio de se obter prazer, intimidade e felicidade.
Mas, apesar de possibilitar a emergência da identidade gay, o capitalismo, dentro de suas contradições, não foi capaz de aceitar gays e lésbicas, e muito menos acabar com a hegemonia da heteronormatividade. A família, para o capitalismo, continuou como um ambiente heterossexual e privatizado, que deveria se conformar às relações de produção do sistema capitalista, ou seja, era preciso reproduzir a força de trabalho. Ideologicamente, o capitalismo leva a conformação hegemônica de famílias heterosexuais no seio da sociedade.
A expressão sexual continua condicionada ao imperativo da produção, só que agora de um sistema totalmente diferente aos anteriores, que eleva a família à proeminência ideológica, que irá garantir mais força de trabalho, mais heterossexismo e, por consequência, mais homofobia. Então, o problema para uma expressão sexual livre, sem rédeas, é o próprio sistema capitalista e suas contradições. Nossa estratégia, a curto prazo, seria o fortalecimento dos terrenos sociais que se contraponham aos limites da família nuclear heterossexuais, ou seja, estamos falando de políticas que nos possibilitam viver de forma digna longe das violências do heterossexismo. Isso passa por pensar em políticas de amplo acesso ao aborto, o acesso universal à creches públicas, pleno emprego, etc. de forma geral, políticas que possibilitem uma vida digna mesmo longe da família tradicional, criando redes de apoio que superem a necessidade de afeto apenas quando há ligação consaguínea entre as pessoas. Podemos perceber que o sistema capitalista tornou a identidade gay possível, mas não acabou com as contradições entre gênero, sexualidade e classe. Embora a defesa de uma identidade seja estratégica para estabelecer um debate inteligível das nossas demandas atuais, nossa política deve ser pelo fim da sociedade de classes e da identidade gay para que possamos viver de forma plena enquanto sujeitos emancipados.