Por João Pedro Oliveira Magalhães
Os entregadores que trabalham através das plataformas digitais, ou aplicativos, estão mobilizando nacionalmente uma paralisação para exigir melhores condições de trabalho. Segundo relatos de lideranças locais de Salvador – além das notícias que circulam em grupos de WhatsApp e Facebook, apesar da abrangência nacional, não há uma coordenação para que as paralisações sejam realizadas em uma mesma data. Em São Paulo, por exemplo, ocorreu entre os dias 29 e 02 de abril; em Salvador, no dia 01 de abril; e no Rio de Janeiro, as datas puxadas foram os dias 02 e 03 de abril.
Note-se que a paralisação do último dia 29 em Salvador foi mobilizada, principalmente, entre os motoristas de transporte de passageiros que trabalham com a plataforma da Uber. Suas pautas são semelhantes às dos entregadores, salvo as devidas particularidades, mas a articulação entre esses trabalhadores na cidade ainda não acontece com uma unidade de ação¹.
Voltando para os entregadores, as exigências mais fundamentais da mobilização na capital baiana são o fim dos bloqueios temporários aos entregadores que rejeitem alguma corrida, o fim do agendamento de corridas e o pagamento de adicional noturno. Apesar de essas serem consideradas pela categoria como as questões mais candentes, suas demandas são ainda mais amplas e profundas. As pautas levantadas evidenciam o cerne da relação trabalhista que eles têm com as plataformas, configurando uma relação típica de emprego, com subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade, e não uma mera parceria comercial, como alega o discurso das empresas do ramo².
Estas pautas também jogam luz ao fato de que os custos de operação, seja de celular, internet, veículo, manutenção e desvalorização constante do veículo, combustível e outros, recaem sobre o trabalhador. Essa característica torna o modelo de plataformas ainda mais exploratório, tendo em vista que essas empresas, além de revelarem a incidência da regulação trabalhista³, se desincumbem de arcar com os custos e os riscos da atividade econômica, despejados sobre os ombros do trabalhador individualmente.
Dessa maneira, o entregador que trabalha entre seis e sete dias por semana para tirar cerca de mil reais referentes a esse período (o equivalente a quatro mil reais mensais, em média) percebe que, ao abater os custos mencionados, ganha efetivamente um salário mínimo mensal. Pagou para trabalhar.
Apesar das exigências colocadas estarem, em suma, dentro do arcabouço de direitos já previstos para trabalhadores com emprego formal, as lideranças de Salvador não creem que as empresas venham a aceitá-las. Em razão disso, através do contato que tiveram com estudantes pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, os entregadores buscaram a universidade para pensar maneiras de judicializar suas demandas. Há uma esperança de que a via judicial traga alguns direitos para a categoria; contudo, como comunistas, sabemos da fragilidade dessa opção.
Em primeiro lugar, o Judiciário tem como posição majoritária a de não reconhecer vínculo empregatício entre os entregadores e as plataformas digitais, e em regra, seguem a ideologia neoliberal que considera esses trabalhadores como “empreendedores parceiros” das plataformas. Então, até mesmo as chances de uma decisão judicial favorável não são altas. Ademais, sabemos que esse meio não garante a aplicabilidade material dos direitos que venham a ser reconhecidos formalmente. Soma-se a isso o fato de serem, as decisões judiciais, uma fonte precária para se prever direitos.
Em segundo lugar, e aqui está um debate central, há a questão do reconhecimento ou não reconhecimento do vínculo empregatício entre os entregadores e as plataformas: o reconhecimento desse vínculo ainda não é uma pauta consensuada entre os trabalhadores. Nota-se, inclusive, que as demandas em que há um entendimento comum consistem em mudanças pontuais na relação de trabalho existente.
Para ingressarem com uma ação judicial, com as demandas pontuais que apresentam, os trabalhadores só teriam como alternativa um litisconsórcio, ou uma série de ações individuais. Em ambos os cenários, os efeitos jurídicos de uma eventual decisão favorável aos trabalhadores só valeriam para aqueles inscritos no processo, sendo demasiadamente limitados. A opção mais abrangente seria a de uma Ação Civil Pública, mas que somente poderia ser aplicada se o objetivo almejado fosse o reconhecimento, pelo Estado, do vínculo jurídico de emprego que existe materialmente entre os trabalhadores e as plataformas.
A opção de se buscar o Judiciário para garantir, seja a formalização de um punhado de direitos básicos, seja a formalização dos entregadores enquanto trabalhadores celetistas, é uma tática imediata e de manejo instrumental do direito burguês para se buscar o mínimo de dignidade para os trabalhadores da categoria. Outra alternativa, também dentro da institucionalidade burguesa e mais imediata, seria a organização desses trabalhadores em sindicatos, o que traria à baila perspectivas de realização de negociações coletivas e a maior articulação dessas bases para se pressionar pela inclusão legal – e não meramente judicial – deles dentro dos parâmetros celetistas.
A luta atual dos trabalhadores de plataformas digitais está pautada por objetivos através dos quais eles buscam superar as condições mais primárias de precariedade no trabalho. Para além da objetividade da sua exploração, também está localizada a disputa subjetiva das mentes daqueles que laboram neste ramo, para que se desvencilhem da ideologia neoliberal e entendam que as empresas que controlam estas plataformas não pretendem, nem nunca pretenderam, tratá-los como iguais ou parceiros, mas apenas continuar se apropriando de sua força de trabalho através dos mecanismos mais sofisticados à sua disposição.
¹ Motoristas de aplicativo fazem manifestação em Salvador nesta terça. Bahia Notícias, Salvador, 29 de março de 2022. Disponível em: <https://www.bahianoticias.com.br/noticia/267319-motoristas-de-aplicativo-fazem-manifestacao-em-salvador-nesta-terca.html>. Acesso em: 29 de março de 2022
² OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. Entregadores da RAPPI são empregados, segundo decisão do TRT-SP. Assalariados Digitais, 22 de março de 2022. Julgados. Disponível em: <https://assalariadosdigitais.blogspot.com/2022/03/entregadores-da-rappi-sao-empregados.html>.
³ FILGUEIRAS, Vitor. Regulação da Terceirização e Estratégias Empresariais: O aprofundamento da lógica desse instrumento de gestão da força de trabalho. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 239, 2016, p. 742-770.