Por: Rômulo Caires
Partindo do pressuposto de que a saúde está relacionada a uma totalidade de aspectos ligados às determinações sociais do processo saúde-doença e do bem-estar, notamos como as populações mais empobrecidas e oprimidas da Bahia têm de lidar com os graves problemas relacionados à ausência de infraestrutura básica, ausência de moradia, transporte público, segurança pública, segurança alimentar e emprego. Nesse sentido, um programa de saúde para o Estado não pode estar desvinculado à uma intensa agenda de transformações infraestruturais.
De forma imediata, o PCB executará uma política de investimento na saúde de caráter público, gratuito e de qualidade, rompendo com as transferências de recursos públicos para a iniciativa privada, bem como com os projetos de precarização dos serviços públicos e da seguridade social. Somos contrários à lei de responsabilidade fiscal e iremos instaurar a Lei de Responsabilidade Social.
Ao mesmo tempo em que tensionaremos o limite institucional para a efetivação de um autêntico programa de saúde para a classe trabalhadora baiana, impulsionaremos a organização coletiva dos trabalhadores da saúde e dos usuários, criando espaços reais de participação ativa destes setores nos rumos da saúde na Bahia. Não se tratarão de meros espaços consultivos, mas pretendemos romper com a dicotomia planejamento/execução trazendo para as tomadas de decisões os próprios trabalhadores da saúde e os usuários dos serviços de saúde.
Pretendo agora sintetizar uma proposta de programa dividida em 4 eixos principais. Tais propostas reúnem um conjunto de debates e lutas realizados pelos trabalhadores da saúde do PCB no último período. A proposta de programa será debatida no dia 13/09/2022, às 19h, no Comitê de Poder Popular do PCB em Mussurunga em evento organizado pela comissão de saúde da célula de trabalhadores Carlos Marighella em parceria com o núcleo de saúde da Unidade Classista- Salvador:
1) Ampliação e melhoria dos postos de trabalho no setor saúde.
- Eliminação de todos os chamados “novos” modelos de gestão e pela revogação das leis que deram origem às organizações sociais (OSs), empresas estatais de direito privado (ex. a EBSERH), bem como parcerias público-privadas;
- Generalização de contratação via concursos públicos e pelo reajuste salarial dos servidores públicos estadual, compatível com o aumento da inflação. Observa-se nestes últimos anos uma perda real do salário dos trabalhadores estatutários, o que impacta nas condições de vida e sobrevivência dos trabalhadores e na qualidade da assistência prestada, visto que muitas vezes esses trabalhadores necessitam ampliar a carga horária para garantir a sua subsistência e de sua família;
- Diminuição da centralização dos cuidados em saúde na figura do médico a partir da maior qualificação profissional e ampliação dos salários das categorias não-médicas, diminuindo as diferenças salariais entre as categorias, sem perder de vista a importância e especificidade de cada uma delas;
- Criação de planos de carreira estaduais que abarquem todas as categorias dos trabalhadores da saúde e planificação das demandas em saúde no Estado. A ampliação de vagas universitárias e postos de trabalho será mediada diretamente pelos interesses da população e não pelo mercado de trabalho.
2) Ampliação da rede de serviços com foco na saúde do trabalhador
- Reversão imediata do processo de privatização já instalado em diversos setores da saúde e que se manifestam através de convênios e contratos com instituições privadas e filantrópicas, freando a tendência atual de ampliação e interiorização deste modelo de gestão no estado;
- Pela ampliação da responsabilidade do Estado na Atenção Primária a Saúde tanto a partir de maior financiamento direto como a partir da criação de instituições públicas que fomentem a pesquisa e expansão do acesso a APS assim como garantam a formação continuada dos trabalhadores da saúde;
- Expansão da rede ambulatorial e hospitalar a partir de intenso processo de planificação econômica. O investimento hospitalar não funcionará na lógica de investimento em grandes obras isoladas que servem como material de intensa publicidade sem ter necessariamente autêntico respaldo social. O investimento massivo na Atenção Primária será complementado pela oferta de ambulatórios e hospitais que garantam a continuidade da rede sem produzir gargalos de acesso entre a Atenção Primária e os outros setores. A partir da planificação serão reconhecidas as demandas mais urgentes e os locais apropriados para a instauração das redes de saúde;
- Expansão da rede de serviços diagnósticos e enfrentamento dos grandes conglomerados financeiros que atuam na saúde. Os serviços diagnósticos também comporão a rede de saúde pública e será diferente dos tempos atuais em que boa parte destes serviços estão nas mãos da iniciativa privada;
- Criação de instituições responsáveis pela operação de serviços de assistência e pesquisa em saúde do trabalhador. A saúde do trabalhador é reduzida na sociedade capitalista à saúde ocupacional e assim limita-se a garantir ao trabalhador continuar reproduzindo a sua força de trabalho sem necessariamente se preocupar com a integralidade da saúde deste trabalhador. Assim, a saúde do trabalhador que pautamos insere-se em uma análise das relações entre trabalho e modo de vida sob o capital, com o foco de garantir uma vida em vigor e em sentidos, não apenas uma vida pautada no trabalho.
3) Reestruturação radical do Cuidado em Saúde Mental
A OMS estima a existência de mais de 350 milhões de pessoas com depressão no planeta, sendo a principal causa de incapacitação dos indivíduos para o trabalho, como também há crescimento de 40% nas taxas de suicídio no mundo, sendo o Brasil o país com o maior número de suicídios anuais da América Latina.
As classes dominantes potencializam esse processo ao enunciar o mito da responsabilização individual: cada trabalhador é estimulado a sentir que a sua pobreza, desemprego e miséria social são frutos apenas de suas ações, da cor de sua pele, do seu gênero, e não resultado de escolhas políticas e da estrutura organizativa da sociedade. Quando doentes, muitas vezes não possuem acesso a serviços de saúde que promovam o cuidado adequado, não possuem direitos trabalhistas que os protejam da sede de lucro dos capitalistas, não possuem moradia adequada para o seu descanso.
Há também um processo de ampliação do encarceramento da população, intensificando uma perspectiva de cuidado asilar – cuidado a casos graves e persistentes, ou uso de substâncias psicoativas em instituições fechadas, com internação de longa duração. Percebe-se um aumento de leitos em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas. Outro debate que está no centro do cuidado em saúde mental é referente o uso abusivo de substâncias psicoativas (SPA). Observa-se um processo de criminalização do uso de SPA vinculado à criminalização da pobreza, reforçando uma perspectiva militarizada de cuidado com ações de caráter higienista. Em vez de cuidar das pessoas de maneira integral, compreendendo inclusive que o uso abusivo de SPA é também reflexo das contradições sociais, contribuindo com o processo de reabilitação e redução de danos para quem apresenta um quadro de dependência e uso abusivo de substância, os últimos governos estaduais têm estabelecido uma prática de retirada forçada das pessoas da rua, institucionalização em serviços fechados e super medicalização. Dessa maneira, entendemos serem nossas prioridades as lutas:
- Pelo cuidado em saúde mental em serviços territoriais e comunitários, com equipes multiprofissionais, que tem como perspectiva o cuidado integral e restabelecimento social dos indivíduos acometidos pelo adoecimento psíquico;
- Pela reversão imediata do processo de aumento e investimento em hospitais psiquiátricos e em Comunidades Terapêuticas;
- Pela descriminalização e legalização das drogas, além de nacionalização dos postos de venda, com instituição de uma política consistente de redução de danos.
- Pela ampliação das instituições de lazer e cultura, que garantam o acesso dos indivíduos em sofrimento psíquico a instrumentos de cuidado não cerceadores da liberdade e da criatividade;
- Pela oferta de tratamentos adequados, que podem passar pelas psicoterapias e pelo uso de psicotrópicos, mas que não confundam as demandas em saúde mental apenas enquanto demandas de serviços de saúde e sim compreendam a ligação do sofrimento psíquico com a vida social.
4) Combate à violência contra a mulher e pessoa gestante
I
No Brasil, o aborto é legal em três situações: em casos de estupro, anencefalia e nas situações em que a gravidez gera riscos à vida da mulher. Nos últimos anos, houve várias tentativas da “bancada evangélica” em fazer retroceder tal legislação a partir de projetos apresentados na câmara de deputados, o mais conhecido deles foi o Estatuto do Nascituro, que conferia direitos legais ao feto desde o momento embrionário. Isso significaria que mesmo em gestações que poderiam levar a mulher à morte, sem viabilidade da gravidez, a mesma deveria ser mantida.
Daí se impõe uma pergunta essencial: qual vida importa? Em países que legalizaram amplamente o aborto, como o Uruguai e a França, e que também investiram em outras estratégias tais como educação sexual e ampliação de acesso a serviços de saúde, observou-se significativa redução no número de abortos. Enquanto no Brasil, dados do DataSUS apontam que no primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas pelo SUS em casos de abortos malsucedidos – provocado ou espontâneos- foi 79 vezes maior do que o de interrupções da gravidez previstas em lei. Foram realizadas mais de 80 mil curetagens, procedimento muito mais frequente em abortos provocados do que em abortos espontâneos. Além disso, quase 68% dos procedimentos pós-aborto concentraram-se nas regiões Norte e Nordeste.
Os dados podem indicar o quanto as barreiras de acesso ao aborto legal podem não só aumentar a incidência dos abortos provocados e aumentar os custos hospitalares em procedimentos pós-aborto clandestinos, como também indica que em locais com piores condições socioeconômicas há maior quantidade de tentativas de aborto. Quando o assunto é interrupção legal da gestação em casos de estupro, a situação é ainda mais grave. Os dados evidenciados pelo Anuário de Segurança Pública de 2019 mostram que ocorreram mais de 66 mil registros de estupros no ano anterior, 81,2% das vítimas sendo mulheres e 53,8% tinham até 13 anos. Comparando com o número de interrupções legais registrados, nota-se uma grande discrepância entre tais dados, apontando para uma possível barreira de acesso das mulheres ao aborto previsto em lei.
Realizar o aborto remete à possibilidade da pessoa gestante escolher se irá ou não manter uma gestação, bem como escolher se manterá ou não uma família nos moldes burgueses. Criminalizar o aborto é a outra face da negação total de serviços que poderiam ser coletivizados e tornados serviços comunitários, mas que em nossa sociedade são reproduzidos pelas mulheres no seio da família, em múltiplas jornadas de trabalho.
É fundamental olhar a questão sob o ângulo da saúde pública, ampliando os debates sobre o acesso e disponibilidade de procedimentos seguros, como também se impõe a necessária crítica à estrutura ideológica que retroalimenta a sociabilidade do capital, que retira das mulheres a sua capacidade de agência, assim como retira direitos básicos.
II
No Brasil, a partir da década de 1980 assistiu-se a um aumento considerável dos partos cirúrgicos. Dos anos 1970 para os anos 1980, a quantidade de cesáreas saltou de 14,6% para 31%. Ao longo dos anos, mesmo com as evidências científicas sólidas elucidando as maiores taxas de complicação da cesárea, notam-se números ainda mais alarmantes na proporção entre partos cesáreos e partos vaginais no país.
Numa grande pesquisa denominada “Nascer no Brasil”, sob coordenação da Fundação Oswaldo Cruz e de ampla participação de várias instituições científicas brasileiras, analisou-se dados de 266 hospitais de médio e grande porte em 191 municípios de todos os estados do país. Das 23.894 mulheres, 52% haviam parido a partir de cesárea. Já no sistema privado essa taxa atinge 88%.
Constata-se assim que existe uma “epidemia” de cesáreas no Brasil. Esta realidade insere-se em uma discussão ainda mais ampla, a saber, a maneira como se pratica a assistência obstétrica no país como um todo. A medicalização e patologização do parto inserem-se numa dinâmica unitária de reprodução da violência estrutural contra a mulher e pessoa gestante, que eivadas de sua autonomia são assujeitadas pelos mecanismos de operação do parto no Brasil, vide as denúncias frequentes de violência obstétrica.
Dessa maneira, enquanto comunistas, entendemos ser central a luta:
- Pela descriminalização e legalização do aborto, com garantia de atendimento na rede pública de saúde a todas as mulheres que precisarem, além da ampliação dos programas que garantam os métodos anticoncepcionais (tais como o DIU, pílulas e preservativos) e da ampliação e facilitação dos procedimentos cirúrgicos que garantam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres quando assim desejarem.
- Pela instalação de políticas direcionadas à reversão das altas taxas de cesáreas eletivas, com a criação de instituições que unifiquem a pesquisa na assistência ao parto humanizado com o controle e fiscalização da organização do sistema de parto na Bahia.
- Pela formação e instituição de redes de combate às violências contra a mulher, criança e adolescente, população negra e LGBTQIA+.