Por Rômulo Caires
A partir de uma sequência iniciada com a apresentação dos principais desafios organizativos da classe trabalhadora na saúde, viemos elaborando críticas e apontamentos sobre o trabalho em saúde e a luta sindical, como também a relação entre saúde e luta comunitária. No texto de hoje daremos conclusão a essa série com o debate sobre a atualidade da luta antimanicomial.
Podemos delimitar o surgimento da assim chamada luta antimanicomial a partir dos processos políticos deflagrados após o fim da Segunda Guerra Mundial. Apesar de já existir momentos de consciência crítica em relação à realidade dos manicômios e críticas à instituição psiquiátrica antes da vitória contra o nazifascismo, é somente após esse período que observamos a consolidação de movimentos e sujeitos políticos que buscam se organizar e afirmar um programa de combate ao que o famoso psiquiatra italiano Franco Basaglia chamou de instituições da violência.
Uma série de denúncias sobre o caráter desumanizante dos espaços manicomiais, especialmente agravado com os conflitos bélicos, tomam forma em um conjunto de países. O próprio saber psiquiátrico é confrontado em sua suposta neutralidade científica e são realizados questionamentos sobre a fundamentação teórica da psiquiatria. Há um avanço nítido na percepção de que a “doença mental” é determinada socialmente e que os diagnósticos psiquiátricos funcionavam como armas de intervenção política. A psiquiatria passa assim a ser compreendia como uma ciência ideológica, cuja função econômico-social seria encobrir parte das contradições entre capital e trabalho.
O caso mais clássico de “Reforma Psiquiátrica” se deu justamente na Itália de Basaglia. Enquanto algumas experiências na França e nos EUA objetivavam “humanizar” o espaço manicomial e propor medidas menos violentas para o cuidado aos “doentes mentais”, os italianos se propunham a ir até a raiz da instituição manicomial. Não bastava postular o “bom manicômio”, mas era necessário destruir a instituição como um todo e propor novas formas de cuidado ao sofrimento psíquico. Basaglia, por exemplo, compreendia que o manicômio servia como um destino nefasto para frações da classe trabalhadora que compunham o vasto exército industrial de reserva. Ele identificava a violência do manicômio com a violência da própria sociedade capitalista.
Nessa via, tendo como porta-voz significativo a ação e organização do Partido Comunista Italiano, a crítica ao manicômio se inseria nas propostas de superação da sociedade capitalista rumo ao socialismo. Não será objeto desse escrito uma análise aprofundada da experiência de reforma italiana. Para nosso objetivo basta indicar apenas a grande influência da proposta italiana de via democrática ao socialismo como uma estratégia que trazia consigo as demandas da luta antimanicomial. Em um processo paulatino de ocupação institucional e certas modificações estruturais, os italianos almejaram uma via pacífica ao socialismo em contraste com as chamadas experiências do socialismo real.
No Brasil havia algumas críticas importantes à instituição manicomial e psiquiátrica mesmo antes da chegada das ideias reformistas italianas. Experiências como a de Nise da Silveira e de Ulisses Pernambucano questionavam a violência dos hospitais psiquiátricos, elaborando medidas para reformar algumas unidades que trabalhavam. Porém o isolamento dessas figuras facilitou a perseguição política de suas ações e ideias. É principalmente no escopo das lutas contra a ditadura burgo-militar brasileira (1964-1985) que tomará forma o ideário de Reforma Psiquiátrica brasileira, com grande influência das propostas italianas.
O processo se inicia com a mobilização de trabalhadores de saúde mental, cercados por péssimas condições de trabalho e revolta contra a gravidade da situação dos manicômios brasileiros. O conjunto de hospitais psiquiátricos no Brasil foi significativamente aumentado durante os anos de ditadura, com claro benefício do setor privado, que ficou conhecido como “indústria da loucura”. Influenciados pela via italiana, o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental se consolidou no decorrer dos anos 1980 com um programa de amplas reformas ao cuidado em saúde mental. Foi elaborado um plano de substituição dos manicômios por medidas de cuidado em base territorial, além de aglutinar uma gama de trabalhadores e usuários de saúde, que a partir das bases lutariam pela democratização da sociedade brasileira.
O Manifesto de Bauru (1987) pode ser lido como a síntese programática desse movimento. A luta pelo fim dos manicômios andava junto com o questionamento das estruturas de poder no Brasil. A luta antimacomial ganhava uma formulação “democrático-popular”, que trouxe como resultado modificações importantes na situação brasileira. Em algumas décadas houve diminuição acentuada dos leitos em hospitais psiquiátricos e abertura de serviços substitutivos como os diversos tipos de CAPS. Também houveram tentativas de aumentar a participação popular no controle sobre políticas públicas no sentido de incremento da cidadania. Nesse sentido, são inegáveis os avanços da Reforma Psiquiátrica brasileira em relação ao período anterior a sua vigência.
Apesar dos avanços, a luta antimanicomial no Brasil sofreu de impasses semelhantes aos vivenciados na sociedade italiana. A via democrática ao socialismo condicionou um conjunto tático-estratégico que privilegiava a ocupação institucional em relação ao fortalecimento da autonomia das organizações de base. Muitos militantes históricos da Reforma Psiquiátrica brasileira foram cooptados para os governos petistas, ocupando importantes pastas na gestão da Rede de Atenção Psicossocial. Por outro lado, o próprio Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental foi cada vez mais perdendo a referência no socialismo, diminuiu significativamente sua capacidade de mobilização, chegando até mesmo a rachar e dar origem a outra organização da luta antimanicomial, enfraquecendo ainda mais o movimento.
A aposta na defesa da cidadania, sem questionar as raízes da estrutura de dominação na sociedade brasileira desarmou a luta de suas propostas mais contestatórias. Os próprios serviços substitutivos foram regredindo em direção a práticas inseridas na lógica manicomial. Tal lógica se espalhou intensamente no tecido social brasileiro, indo muito além dos manicômios propriamente ditos. Por exemplo, houve um aumento gigantesco na população carcerária durante os governos Lula e Dilma. Também houve aumento de propostas que individualizavam o sofrimento psíquico, perdendo de vista sua determinação social. Outro fato de enorme gravidade foi a aliança da esquerda no governo com setores religiosos neopentecostais, quebrando a política de redução de danos e implementando medidas de abstinência e controle social a partir das Comunidades Terapêuticas.
Nesse sentido, cabe um balanço rigoroso dos resultados da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Sem perder de vista seus avanços, faz-se necessário compreender os limites de uma proposta reformista que não aposte na autonomia da classe trabalhadora em relação ao Estado Burguês e que não confronte a estrutura de poder da sociedade capitalista. As origens da luta antimanicomial no Brasil apontavam para a necessidade de unificação dos trabalhadores em saúde mental com usuários dos serviços e com as lutas mais gerais da classe trabalhadora. Não basta promover lutas pela cidadania em abstrato, num país no qual a democracia é uma fachada para poucos e na qual a maioria da população sofre da brutal violência estatal e do descaso dos poderes públicos.
As lutas antimanicomiais devem, por isso, retomar suas propostas classistas e anticapitalistas. O manicômio e a lógica manicomial estão inseridos na totalidade da sociedade capitalista e devem por isso serem confrontados em sua raiz. A aposta apenas na ocupação institucional mostrou seus graves limites. Devemos inverter a prioridade em direção ao fortalecimento da autonomia dos movimentos de base e sua aglutinação com as lutas sindicais, lutas por moradia, lutas contra a fome, o desemprego, etc. Uma sociedade sem manicômios só é possível onde o capital e a burguesia não tenham mais vez. A luta antimanicomial é antes de tudo uma luta pelo poder da classe trabalhadora.