POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL: notas sobre produção cultural

Política Cultural no Brasil
Por Gabriel Galego

Parte 1:  das políticas estabelecidas no período neoliberal

A ditadura desorganizou a luta da classe trabalhadora, a nível político e cultural. A partir da “redemocratização”, com a queda da censura aberta, o mercado se mostrou a única via possível para se profissionalizar no setor da cultura, dominando a lógica de produção cultural. Diferente de momentos anteriores em nossa história, como no período da imprensa popular nos anos 40/50 e a influência cultural de 1950, os comunistas já não tinham instrumentos de impacto nas massas. Pelo contrário, recém-saídos de uma ditadura militar, afundados de cabeça no neoliberalismo e com a queda da URSS em 1991, os tempos foram de dificuldade e muita aridez para os revolucionários brasileiros. 

Hoje, trinta anos depois, a cultura brasileira está vivendo um tempo de acirramento da luta de classes, numa imensa disputa econômica e ideológica: cortes de verba estatais para o setor, retorno da censura com viés anticomunista e conservador, pejotização da força de trabalho etc. Uma das determinações para esse acirramento é o refluxo reacionário que tomou posse do Estado desde o golpe de 2016, com a ascensão do Partido Fardado e do bolsonarismo. Por outro lado, nas últimas décadas o mercado da produção cultural cresceu bastante – de forma que temos indústrias culturais e de comunicação consolidadas em nosso país, como as indústrias fonográfica, editorial, audiovisual, de marketing e propaganda, entre outras. Em seu conjunto, é o que a FIRJAN chama de “indústria criativa”.  

Como veremos, essa conjuntura nos provoca questões necessárias de serem meditadas e, sem dúvida, respondidas com radicalidade. Antes, vamos ao contexto. Desde o início do período neoliberal do Brasil em 1990, ainda em marcha no nosso país, as políticas culturais se concentram em três níveis: 

  1. leis de incentivo federal, estaduais e municipais; 
  2. subsídio direto do Estado, por meio de editais setoriais e fundos públicos;
  3. parcerias público-privado, entre Estado e Organizações Sociais; 

Cada uma contém determinadas especificidades. 

As leis de incentivo, por exemplo, têm esse nome porque o Estado incentiva empresas privadas a patrocinarem projetos culturais, propondo reverter o patrocínio em abatimento dos impostos ICMS ou ISS. Aqui, é comum grandes empresas, privadas ou públicas, como Braskem, Banco do Brasil, Petrobrás, Vale do Rio Doce, Bahia Gás etc. se beneficiarem da lei. De todo modo, é um mecanismo de transferir o imposto pago obrigatoriamente pelas empresas direto para a produção cultural. Agora é curioso, porque não é incomum que grandes institutos privados, como o Instituto Moreira Salles e o Instituto Tomie Ohtake, alcancem com regularidade esse recurso – e, em compensação, o artista independente e lançado na informalidade, que não tem nem o acesso necessário dentro das empresas, nem o CNPJ (de OS ou de empresa), fique marginalizado. A aplicação dos recursos para realização de projetos culturais de grande porte fica sob controle da burguesia, sejam os donos de grandes empresas, bancos e/ou institutos culturais. Mesmo pequenos empresários, que são as camadas médias do setor cultural, precisam passar pelo crivo e aval das empresas, que vira e mexe lançam editais de seleção como o Banco do Brasil, a Neoenergia e o Natural Musical. 

Na forma de subsídio direto do Estado, temos como predominância os editais de seleção. Diferente da lei de incentivo, essa forma de política cultural ganhou mais destaque no ministério de Gilberto Gil, mas também teve seu refluxo a partir do golpe de 2016. Em resumo, o Estado garante recurso para grupos e artistas, sejam pessoas físicas ou jurídicas, com objetivo de realização de projetos culturais. Na Bahia é o caso da utilização do Fundo de Cultura em projetos como Pontos de Cultura e Setoriais. Em outra forma possível para aplicação dos editais de seleção, o Estado garante o subsídio e o prestígio de carreira através de prêmios anuais e concursos. Na cidade de Salvador, a Fundação Gregório de Mattos tem lançado regularmente o prêmio literário do selo João Ubaldo Ribeiro, incentivando a produção literária contemporânea da cidade através da seleção e publicação de obras locais. Esses são alguns exemplos.

No terceiro modelo, o Estado lança editais específicos, buscando contemplar apenas Organizações Sociais, que juridicamente são entidades de direito privado sem fins lucrativos. Esses geralmente são editais para projetos maiores, advindos de outras fontes de recursos do Estado, nem sempre especificamente voltadas para cultura, buscando premiar projetos com recursos acima de 300 mil reais – por vezes, garantem um ano de trabalho ou mais. No estado da Bahia, por exemplo, temos a aplicação regular da Agenda do Trabalho Decente e da distribuição de recursos do Fundo do Trabalho Decente, por parte da SETRE, garantindo recurso para o setor cultural em diversos territórios baianos. Em Salvador, a Fundação Gregório de Mattos lançou no ano passado pelo menos um edital específico para OS – no intuito de garantir a gestão dos espaços Boca de Brasa para essas organizações privadas. Em outras palavras, através de cessão de recursos para realização de projetos culturais e sociais por determinado período, esse modelo terceiriza o que deveria ser responsabilidade da gestão do órgão público, prejudicando a construção de uma estratégia e planejamento a longo prazo.  

Dentre essas três formas de política cultural estabelecidas em nossa sociedade, hoje há uma luta voraz do setor cultural para garantir subsídio direto do Estado em relação aos grupos profissionais, semiprofissionais e independentes, propondo que o poder público estimule diretamente o mercado cultural e o artista independente. Essa luta é justa, mas veio perdendo força e se arrastando desde 2016, com o fôlego logo apagado das ocupações dos Ministérios da Cultura (MinC), seguido da destruição do MinC, o desmonte dos fundos públicos de cultura como a ANCINE e a paralisação de diversos processos na Lei Rouanet. Foi uma sequência de derrotas lamentáveis, consolidadas com a ascensão da direita e depois da extrema-direita bolsonarista. 

Em 2020, tivemos um pouco mais de ânimo: o caos da pandemia acelerou o desenvolvimento de políticas descentralizadas de subsídio direto. Através de repasses de recursos em escalas estaduais e municipais – e desconsiderando a corrupção entranhada na maior parte das prefeituras – foram aplicados os conhecidos editais de seleção para distribuição do recurso público. 

Dentro do cenário estabelecido, a pandemia impactou os trabalhadores da cultura, do ponto de vista político e econômico, dando novo ânimo para a luta através da auto-organização da categoria e com lutas institucionais pela garantia das leis emergenciais e da Lei Aldir Blanc 2. Além disso, reforçou-se a ideia de que o subsídio contínuo do Estado é muito mais favorável ao processo de livre criação de artistas e produtores do que o acesso através de Leis de Incentivo. Entretanto, os trabalhadores da cultura, sobretudo os ligados ao social-liberalismo petista, que encaram o governo de Lula como o auge da imaginação humana, não colocam duas questões em cheque: 

  1. Por que a maior parte de nosso trabalho está condenado à realização de “projetos culturais de curto prazo”? São poucos os contratados por instituições que garantem uma continuidade na estratégia cultural e direitos trabalhistas.  
  2. Por que a distribuição dos recursos públicos e privados se dá através dos “editais de seleção”? Em outras palavras, por que precisamos depender da competição de mercado para realizarmos o nosso trabalho artístico profissionalmente? 

São questões que se abrem. As categorias de “projetos culturais de curto prazo” e “editais de seleção” são fundamentais para entendermos o contexto trabalhista do setor cultural brasileiro hoje – com mercado e indústria cada vez mais organizados e a lógica do empreendedorismo dominando o trabalho dos artistas independentes. Investigar essas categorias nos permitirá compreender como a produção cultural brasileira é moldada pelo modo de produção capitalista. Apenas assim os comunistas poderão responder às demandas concretas dos técnicos, artistas e produtores do setor cultural.  

 

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