Os comunistas brasileiros e a política cultural no período da Ditadura

Por Rômulo Caires

 

Neste ano, comemoramos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Dentre os inúmeros aspectos desta trajetória a serem recordados, gostaríamos de focar nossa atenção na emergência do que podemos chamar de política cultural, entre os comunistas. Com pressupostos que remetem ao próprio momento de fundação do PCB em 1922, passando pelo marco da declaração de março de 1958, é somente no período após o golpe burgo-militar de 1964 que a política cultural dos comunistas toma sua forma mais concreta na construção de uma aliança democrática contra a Ditadura. Este período é repleto de consequências e lança problemáticas ainda atuais. 

Como já desenvolvido em outros artigos publicados no Jornal O Momento, a formação do Brasil contemporâneo se deu a partir de um conjunto de “reformas pelo alto”, através das quais o desenvolvimento de um moderno Estado-Nação operou por via diferenciada em relação a países centrais como Inglaterra, Estados Unidos e França. Deste modo, o processo que resultou no capitalismo brasileiro e seu correspondente arcabouço jurídico-político não possibilitou a incorporação de mínimas demandas das massas populares, ocorrendo sempre à sua revelia. A frase atribuída ao então governador de Minas Gerais Antônio Carlos de Andrada (1870 – 1946) “façamos a revolução antes que o povo a faça” sintetiza bem a evolução política de nosso país.

Sendo, em sua origem, a implementação forçada de um experimento econômico, esta unidade que chamamos de “nacional”, de “Brasil”, consolidou-se a partir da figura do latifúndio escravagista primário-exportador. O sentido da colonização apresenta-se enquanto tendência dominante da ocupação territorial a partir do extermínio tanto dos povos originários quanto da população africana que aqui foi forçadamente aportada, apagando e criando obstáculos às suas manifestações culturais. O que interessava era girar a roda da acumulação originária de capital que possibilitou a dominância do capitalismo em escala mundial.

O conjunto das instituições, aparelhos ideológicos e instrumentos de poder eram voltados essencialmente à manutenção dessa malha social. Assim, o aparecimento de intelectuais e sujeitos produtores de cultura estava, de modo geral, condicionado pela dominância da ideologia do colonialismo, ou seja, se importavam ideias de fora com o intuito de naturalizar a ordem social e permitir apenas que as classes dominantes se tornassem operadoras oficiais da organização da cultura. Qualquer manifestação que contrastasse a essa lógica, a partir da consideração da produção dos que “vinham de baixo”, era sumamente ignorada ou diretamente combatida. 

Nesse sentido, consolidou-se, durante o período colonial, uma realidade na qual a organização da cultura esteve marcada pela cooptação da produção intelectual pelas classes dominantes que, ao importarem ideias de realidades distintas da nossa, marcavam a tendência de formação de uma cultura ornamental na qual mesmo ideias consideradas avançadas eram utilizadas apenas como índice de superioridade, como marca de distinção pessoal, como constatamos nas figurações literárias de Lima Barreto. Lembremos de um clássico conto do escritor carioca, que eternizou a figura do “Homem que sabia Javanês” como aquele que nutria conhecimentos totalmente alienados da realidade nacional das grandes massas populares, consistindo apenas em fraseologias ocas. As palavras seriam, assim, apenas “signos” de posses, marcas que apontavam a origem superior daqueles que as utilizavam. 

A Independência e posteriormente a formação da República apenas colocaram em outro patamar a ideologia do colonialismo e a dependência do nacional em relação ao mercado mundial capitalista. O Brasil entrou no Jogo das Nações como país subordinado ao imperialismo em expansão, atualizando as formas de dependência econômica e cultural. Tal realidade começou a se modificar lentamente após a Revolução Russa de 1917 e os processos que desembocaram na industrialização brasileira. 

O surgimento do PCB em 1922 demarcou o momento em que as classes trabalhadoras e setores populares deram um salto de qualidade em direção a uma autêntica organização da cultura sem a imponência total da ideologia do colonialismo. A formação de um partido político de tipo moderno, a presença marcante da imprensa operária, a fundação de editoras e divulgação de literatura marxista e a participação nas lutas políticas mais importantes ampliaram o alcance das ideias “vindas de baixo” e possibilitaram as primeiras tentativas de superação do prussianismo no Brasil, ou seja, dos métodos de organização social e política que traziam no bojo apenas as demandas das classes dominantes a partir de seguidas “revoluções pelo alto”.

A partir de então, a política cultural dos comunistas que atraía para si importantes figuras artísticas e intelectuais envolvidas nas lutas pela democratização da sociedade brasileira começou a tomar forma. Pode-se afirmar que o impulso de desenvolvimento capitalista no Brasil também foi seguido de uma construção estética do que seria o nacional. As tentativas de suprimir a ideologia do colonialismo e encontrar bases autenticamente brasileiras marcaram um longo processo que seguiu até meados de 1964, no qual os setores ligados à produção cultural se esforçavam pela criação de uma autoconsciência nacional. Certamente esse período resultou em valiosíssimas produções na literatura, no cinema, no teatro, na música, na arquitetura, na pintura, na dança etc. Porém, também esse período foi responsável pela cristalização de significativo engodo: a falsa ideia de um grande pacto de união nacional. 

Os impulsos de construção estética do Brasil, advindos majoritariamente de pessoas ligadas ao PCB, ou que passaram por suas fileiras, deflagraram marcante processo de tentativa de superação do prussianismo em direção ao nacional-popular. O nacional-popular sintetizaria a oposição democrática, no plano da cultura às várias configurações concretas assumidas pelo prussianismo ao longo da evolução brasileira. A via dessa superação passaria pela centralidade da democracia como momento preponderante de participação das massas populares nas decisões políticas do país e consequentemente de sua organização no plano cultural.

Tais aspectos estão sintetizados na declaração de março de 1958 do PCB. Neste documento, fica esclarecida uma prévia etapa de democratização da sociedade brasileira como condição de possibilidade para a futura Revolução Socialista. Para isso, se proclamaria o pacto entre a classe trabalhadora e setores progressistas da burguesia nacional como forma de superar o latifúndio e o imperialismo, construindo um autêntico capitalismo nacional autônomo. O documento também absorve as críticas ao período Stalin e suas influências na dinâmica do PCB. Apesar de inúmeros artistas, cientistas e intelectuais terem passado pelas fileiras do partido, não deixa de ser notável que nestas ainda se reproduzia a determinação da “cultura ornamental”. 

Muitos artistas e intelectuais que chegaram ao PCB tiveram passagem muito rápida pelo partido, não promovendo impacto real no destino de sua orientação política. O chamado realismo socialista afastava muitas dessas figuras, sendo o caso de Raquel de Queiroz emblemático nesse sentido. A direção do partido quis intervir no desfecho de um de seus romances, violando qualquer ideia de liberdade criativa da artista. A declaração de 58 visava também interferir sobre esses aspectos que, de alguma forma, reproduziam a ideologia do prussianismo no próprio interior do partido. Nesse sentido, ainda havia um divórcio entre os setores organizadores da cultura e a tentativa de generalização de uma proposta de intervenção política em âmbito nacional. 

Todavia, o golpe burgo-militar pôs em cheque parte da estratégia fundamental do PCB no período. Diversas foram as críticas, seja pela direita ou pela esquerda. O ponto fundamental que nos interessa aqui é que, apesar dos equívocos, o PCB contribuiu para a construção de um solo histórico que possibilitou a emergência de grandes realizações no âmbito artístico e cultural. Após a declaração de março de 58 houve tentativa de maior integração entre os setores mais intelectualizados e a direção partidária, o que possibilitou iniciativas de vulto, mesmo após o golpe de 64. A esquerda era derrotada politicamente, mas, no âmbito cultural, foi hegemônica até o endurecimento do regime em 68. 

Assim, chegamos ao cerne da particularidade da política cultural dos comunistas. O momento de enfrentamento à ditadura deu nova vida à perspectiva de uma frente democrática de construção nacional. O período foi marcado por novo salto de qualidade no capitalismo brasileiro, que agora passava para uma etapa de industrialização violenta, arrochos salariais e consolidação do capital monopolista de Estado em nosso país. O nacional, que foi por tantas décadas polo de resistência e aglutinação de forças populares contra o imperialismo, perdia o ímpeto revolucionário com a, cada vez mais evidente, integração da burguesia interna brasileira ao imperialismo. No âmbito cultural, é o período de consolidação da Indústria Cultural em solo nacional.

Se a Indústria Cultural permitiu a desvinculação de amplos setores dos vínculos de favor e dependência direta que marcaram a história da vida intelectual brasileira, também criou, ao mesmo tempo, um verdadeiro exército cultural de reserva. Tivemos ainda algum ímpeto da produção nacional-popular, mas, cada vez mais o PCB perdia a capacidade de ser o centro aglutinador do que havia de melhor na intelligentsia brasileira e, ao mesmo tempo, essas produções passaram da contestação radical da ideologia do colonialismo para a construção de uma mitologia da “integração nacional” que de alguma forma justificou os pactos construídos no fim da ditadura burgo-militar. A “democracia como valor universal” que emergia dos documentos de 58 impulsionaram posteriormente uma credulidade ingênua na capacidade da sociedade brasileira de continuar a suposta marcha de democratização. 

Deve ser óbvio para um materialista que as transformações mais radicais da sociedade passam pela necessária revolução nos modos de produzir e reproduzir a vida. A cultura em si não é capaz de, sozinha, emancipar a classe trabalhadora. Todavia, a organização da cultura no Brasil do ponto de vista comunista teve como objetivo impulsionar a criação de um sujeito nacional-popular que trouxesse em seu âmago as demandas das classes populares a partir de um contínuo processo de democratização. Passado o período da ditadura burgo-militar, tendo em vista o declínio desse amplo processo histórico de construção estética do Brasil, devemos avaliar quais são os limites de democratização em um país de capitalismo subordinado, além de inquirir se o nacional-popular teria perdido sua validade histórica diante das transformações contemporâneas. A construção da Revolução Socialista certamente necessitará de pujante organização da cultura das massas trabalhadoras, mas ainda será um grande desafio encontrar as mediações necessárias da relação entre poder político e cultura popular no Brasil.

Sair da versão mobile