Por João Coimbra
Dedicado à memória do meu caro colega Guilherme Santos de Andrade
Há um personagem folclórico, amorfo e constante nas faculdades de Direito: o “Homem Médio”. Este “homem” não existe, mas ao mesmo tempo é paradoxalmente o indivíduo mais comum na nossa sociedade. O “Homem Médio” serve para “explicar” como “a maioria das pessoas” reagiria a determinada coisa ou situação, numa perspectiva individual; mas ele não existe para além da imaginação, e tanto quem ensina como quem aprende reconhece a inexistência de fato dessa “pessoa” irreal.
“Como você acha que o Homem Médio reagiria a isso?” é uma pergunta que só faz sentido dentro de uma sala de aula do curso de Direito. A incompreensão da realidade social se traduz na construção de um artifício consolidador dessa ignorância. Ou seja, já que não conhecemos o cidadão brasileiro e suas nuances, vamos inventá-lo.
Mas o problema é ainda maior.
A questão é que o artifício do “homem médio” aponta para um problema ainda mais enraizado do ensino jurídico: a confusão entre a fantasia liberal e a realidade concreta. Mesmo para os jusfilósofos que tenham abandonado aquele artifício especificamente, ainda há uma plêiade de categorias tão imbecilizantes quanto, tão vazias de significado quanto, e tão perpetuadores de violências quanto o tal “homem médio”.
Não se trata aqui de levantar um rol taxonômico de quais artifícios seriam esses, mas ilustrar a denúncia sobre o ensino jurídico brasileiro como um lugar insalubre, supersticioso, dogmático e, por falta de melhor palavra, estúpido.
Insalubre porque reúne em sala de aula um microcosmo dos problemas do direito brasileiro, expondo estudantes a professores assediadores sexuais e morais, juízes semi-analfabetos que mal conseguem ler uma lista de chamada, promotores e delegados que usam do ambiente público para defender sua visão de mundo fascista, e, infelizmente, raríssimos professores competentes que acabam por, acidentalmente, “validar” todo o esgoto com sua presença e compromisso com seu trabalho.
Supersticioso porque defende que a sociedade permanecerá sempre como aquilo que é hoje, e o faz sem lançar mão de qualquer ciência ou filosofia que lhe valha o nome. O ensino jurídico brasileiro ignora que as formas sociais estão em constante mudança, que a classe trabalhadora é um agente político transformador e que os problemas estruturais do sistema judiciário não serão resolvidos com “ficções”.
Aqui cabe uma explicação especial. O ensino jurídico, por decorrência do nosso próprio Ordenamento Jurídico e seus “princípios”, procura responder lacunas lógicas com compreensões míticas e ilógicas. Por exemplo, é lógico e observável que juízes diferentes pensam e decidem de forma diferente. Mas, para “solucionar” esse problema gravíssimo de insegurança jurídica, é utilizada uma ficção chamada juiz natural, um princípio constitucional que, por defender que todo juiz deveria decidir de forma justa e imparcial, vaticina que todo juiz decide de forma justa e imparcial, e sabemos que isso não é verdade. A palavra “ficção” é usada pelos doutrinadores brasileiros como se a confissão da própria mentira os limpasse da pecha de mentirosos.
E neste ponto fica explicado o porquê do ensino ser dogmático, por ser um ramo do conhecimento onde a intelectualidade não é bem vinda. O ensino jurídico brasileiro desconhece a importância de pesquisadores das ciências sociais, da filosofia, da geografia humana… Só há lugar para o Doutrinador: uma figura caricata que merece, também, uma explicação especial.
O Doutrinador é uma contrafação de um autor de livros. Normalmente um juiz ou um promotor (portanto, alguém que não vale o que pesa), o doutrinador usa da sua posição pública para defender seu negócio privado. Sua validade é medida por concursos públicos, estes sequestrados por empresários no ramo da mercantilização da educação. O doutrinador não é capaz de desenvolver um raciocínio qualquer, mas se especializa em compilar informações produzidas pelos mesmos espaços públicos que transita (súmulas dos tribunais, votos, entendimentos, legislações). Um doutrinador não ensina: doutrina. Sua presença é o principal sintoma da expulsão da intelectualidade de dentro das salas de aula; a repetição acéfala da “doutrina” resulta em um simulacro de conhecimento técnico. Entretanto, esse “conhecimento” se orgulha em não entender o mundo, mas os autos.
E por isso estúpido, porque premeia o pensamento raso e mecânico, como uma seleção artificial daquilo que mais se parece consigo mesmo. Este sim, um pacto narcisístico, porquanto se especializa em compreender unicamente a mesma linguagem que produz. Uma “Língua do P” com status de ciência. O advogado que pê-fa pê-lê pê-a pê-sim é respeitado como “jurista”, entre os juristas e para os juristas. Para fora, os advogados são admirados por “lerem muito” e os patrícios concursados por “serem inteligentes”, mas nós sabemos a verdade.
Sabemos que o ensino jurídico no Brasil é tão inútil em resolver problemas e absurdo quanto o sistema jurídico brasileiro. O professor de direito não precisa conhecer a realidade concreta, mas alimentar a fantasia liberal. Isto garante o controle ideológico em sala de aula, a limitação criminosa da criatividade da nossa juventude, em seu propósito nefasto e preguiçoso de roubar-lhes uma perspectiva de futuro que procure construir uma realidade mais justa.
O ensino jurídico brasileiro é uma grande torre de papel-machê, onde no topo se lê “pê-dô pê-ís pê-ma pê-ìs pê-do pê-ís pê-são pê-sim pê-cô”.
P.S.: Descanse em paz, meu caro.