Por Gideão Feliciano
Coaduna-se aqui com a afirmação de Dalcastagnè (2012): “a literatura brasileira é um território contestado”. Assim como a definição cultura deixou de lado sua dualidade, passando à múltipla culturas, a literatura não é mais aquele centro comum que buscava uma identidade nacional. Não é mais aquela que representa e dá sentido ao sujeito brasileiro, uno.
Contribuem para isso, por um lado, o descentralização do “eu”, as múltiplas identidades que um mesmo sujeito assume em tempo e espaço distintos, a emergência da ideologia neoliberal tornando sujeitos essencialmente sociais em altamente individuais (em oposição ao sujeito que se identificava como pertencente a uma coletividade estável); e, por outro lado, a emergência das lutas identitárias e as novas plataformas de difusão em massa, que cooperaram para que os grupos postos à margem e atravessados por diferentes opressões passassem a ter papel ativo na disputa pelo lugar da fala e construíssem seu próprio discurso na literatura.
A partir desses elementos, levantaremos aqui algumas reflexões sobre a nova literatura brasileira, ou melhor dito, as literaturas brasileiras contemporâneas — ou ainda, as tendências nas literaturas brasileiras contemporâneas.
Antes de mais nada, é necessário pensar sobre o campo da Literatura. Eagleton (2006) traz a ideia de literatura como uma escrita altamente valorizada por um grupo e localizada no tempo e no espaço, ou seja, com um valor não em si mesma, mas atribuído por certos sujeitos em situações e objetivos específicos, cujos critérios já são pré-estabelecidos. A definição de literatura mais fortemente difundida, de literatura escrita, e sendo o romance o gênero de maior prestígio pelos agentes que validam as obras no Brasil, é ocidental e moderna.
Os principais estudos sobre a literatura nacional apontam um pluralismo de tendências no que tange a produção brasileira, e Licarião (2020) traz “multiplicidade”, “descentralização” e “heterogeneidade” como termos presentes nos estudos ligados à literatura brasileira no século XXI, dizendo que ela é “um conjunto ficcional, em síntese, urbano e regional, marginal e hiperrealista, fronteiriço e histórico, que explora o indivíduo e o simulacro, que dialoga com a tradição literária e subverte gêneros, pós-utópico e heteróclito.”
As identidades universalizantes estão em crise desde meados do século passado, e a literatura não escapa a isso. No auge da burguesia na Europa, a literatura cumpria o papel principal na formação da subjetividade pessoal; já atualmente, outras mídias desempenham essa função, como o cinema e a televisão. A identidade nacional — uma narrativa da nação — é, nas literaturas, contada e recontada, e adquire sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos que a representam, sendo relacional e, sua construção, tanto simbólica quanto social, dadas as implicações na materialidade.
Tem-se a identidade e a diferença também como relação de poder, sendo através da representação que elas ligam-se a esses sistemas: quem pode representar, o que é representado e como o é. As obras literárias como produtos culturais carregam representações e, assim, dão sentido a certas realidades concretas. Com a descentralização do sujeito, a globalização e os avanços tecnológicos, o que estava nas mãos de um grupo restrito agora escapa a essa limitação.
Os vários sujeitos disputam o lugar da fala, quem fala e em nome de quem se fala. Regina Dalcastagnè (2002) trabalhou sobre a questão da voz e da legitimidade na narrativa em desenvolvimento hoje no Brasil, afirmando que “na narrativa brasileira contemporânea, é marcante a ausência quase absoluta de representantes das classes populares”, não apenas em quem produz a literatura, como também nas personagens construídas. Como já dito, os vários sujeitos da (pós) modernidade dão sentido ao mundo de forma diferentes, e a literatura passou a ser disputada por essas vozes não autorizadas a falar, e que necessitavam falar por si. Esse movimento já era presente no século passado, como por exemplo, com os Cadernos Negros e suas práticas de aquilombamento, reunindo e publicando variados autores/as negros e periféricos.
Apesar do importante trabalho dos movimentos organizados de grupos historicamente oprimidos, os aparelhos que legitimam o que pode ser considerado literatura ou literário (a saber: os críticos e suas resenhas em jornais e revistas, as premiações, as disciplinas de graduação e pós-graduação em literatura, as grandes editoras) mantinham uma literatura de caráter homogêneo. Num levantamento dos principais prêmios da área, apresentado por Dalcastagnè (2012), no período 2006-2011 foram premiados em suas categorias principais 29 homens e apenas 1 mulher. Já em outro levantamento, referente ao período de 1990-2004, de 165 autores, 120 eram homens, 93,9% eram brancos, 60% viviam no eixo Rio-São Paulo e quase todos atuavam no meio acadêmico ou jornalístico.
Com esses números, podemos ver que há, sim, uma hegemonia. Os livros premiados são adicionados aos clubes de leitura, vão parar nas prateleiras das livrarias e bibliotecas, são estudados nas pós-graduações e, ao mesmo tempo, as grandes editoras investem na divulgação das obras lançadas com suas parcerias nas mídias sociais, em clubes de leitura, em resenhas de jornais etc. Tal estrutura garante um circuito fechado que se retroalimenta.
Mas as novas plataformas virtuais, os projetos de leitura que acontecem por elas, o apoio e o acompanhamento da literatura por grupos marginais, as pequenas ou novas casas editoriais, os projetos de financiamento coletivo e iniciativas semelhantes garantem a possibilidade de existência dessas outras literaturas desautorizadas; os e as pesquisadoras que se propõe a estudar essas literaturas também contribuem para repensar o que é a literatura brasileira. Um exemplo disso é a Malê Editora, que se propõe a publicar e fomentar obras de autoras e autores negros, brasileiros, africanos e da diáspora, nos gêneros de prosa e poesia, crítica literária e textos teóricos voltados para o incentivo à leitura, como o livro da escritora Lívia Natália, “Dia bonito pra chover”, e os livros “Insubmissas lágrimas de mulheres”, “Histórias de leves enganos e parecenças” e “Poemas da recordação e outros movimentos”, de Conceição Evaristo.
Em contraponto à hegemonia dos prêmios literários, nos últimos anos, as principais premiações tiveram demonstrações desse contexto de contestação em torno da literatura feita no Brasil. Foram premiadas pessoas com perfis diferentes daqueles do levantamento apresentado, como a escritora negra e mineira Conceição Evaristo, que ganhou do prêmio Jabuti de Literatura de 2015 na categoria Contos e Crônicas, por “Olhos D’Água” — na mesma época, houve uma mobilização nos círculos acadêmicos e literários engajados, que pôde ser refletida na hashtag “#ConceicaoEvaristonaABL”, endossando a campanha para que ela se tornasse a primeira mulher negra na Academia Brasileira de Letras. Porém, isso ainda não aconteceu.
Além de Conceição, foram premiados a escritora negra e baiana Lívia Natália, que venceu o prêmio APCA 2017 na categoria Poesia, com o livro “Dia bonito pra chover”; o escritor baiano Itamar Vieira Júnior, que, com o romance “Torto Arado”, venceu o Prêmio Jabuti 2020 e o Prêmio Oceanos 2020; além de Jeferson Tenório, escritor negro nascido no Rio de Janeiro, que venceu o prêmio Jabuti 2021 na categoria Romance, com “O avesso da pele”. Temos diferentes vozes disputando o espaço da literatura e falando por si, com obras enquadradas no que se concebe por literatura afro-brasileira ou negra.
A literatura brasileira não possui mais aquela missão de conceber a identidade nacional; agora ela é múltipla, diversa e heterogênea. Graças a variados fatores, muitos deles expostos aqui, a literatura brasileira, como coloca Dalcastagnè (2012), é atualmente um espaço verdadeiramente em disputa: um “território contestado”.
Referências:
Bernardo Kucinski e Alan Pauls: a memória da ditadura na ficção contemporânea brasileira e argentina. Berttoni Cláudio Licarião. 2020. In: MATA, Anderson da; DUTRA, Paula; FREDERICO, Graziele (org.). Literatura brasileira contemporânea: resistências, escritas, leituras. Araraquara: Letraria, 2020. https://www.letraria.net/wp-content/uploads/2020/04/Literatura-brasileira-contempor%C3%A2nea-resist%C3%AAncias-escritas-leituras.pdf
Teoria da literatura: uma introdução. Terry Eagleton. 6. ed. 2006. Editora Martin Fontes.
A ideia de cultura. Terry Eagleton.2. ed. 2011. Editora Unesp.
Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Regina Dalcastagnè. 2012. https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf
Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Regina Dalcastagnè. 2002. https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9705/1/ARTIGO_UmaVozSol.pdf
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeus Silva(org). 15. ed. Vozes, 2014.