Medeia Negra: um grito candente

No mês de abril, a Prefeitura de Salvador lançou o Curto Circuito de Teatro, ação que promoveu a circulação de oito espetáculos teatrais em teatros e espaços culturais da periferia da cidade, de forma gratuita. Foi aí que eu pude assistir o monólogo Medeia Negra, no SESI Casa Branca, espetáculo protagonizado pela atriz Márcia Limma. Com direção de Tânia Farias e direção musical de Roberto Brito, fui lançado à potência da voz de uma medeia brasileira. 

O espetáculo não é novo, vem circulando o país há cinco anos. Em Salvador, estreou em 2018, com produção do grupo VilaVox. Em 2019, Márcia Limma foi indicada ao prêmio Braskem na categoria melhor atriz. Durante a pandemia, se adaptou ao formato online através da plataforma SESC. Entretanto, naquele momento em que pude sentir a força da medeia negra, tive absoluta certeza de que o espetáculo carregava o frescor de uma obra ainda pulsante, cheia de vida. 

Quem se emociona com os cinquenta minutos de Medeia Negra, imersos na dramaturgia perfurante de Márcia Limma e Daniel Arcads, não pode imaginar o longo trabalho de pesquisa da atriz que levou a construção da peça. Segundo Márcia, em uma entrevista para o programa Desmontagem, produzido pelo SESC, a peça começa a ser pensada ainda em 2009, na Escola de Teatro da UFBA. Com o tempo, a atriz passou a trabalhar com oficinas de contação de história para mulheres negras encarceradas, junto ao grupo da professora Denise Carrascosa – de forma que a dramaturgia e as partituras corporais e vocais de Medeia Negra perpassam, inevitavelmente, as inúmeras histórias que atravessaram esses encontros. 

O figurino, um vestido longo e negro, condensa pesquisas com as mulheres de cabaré e referências do Nego Fugido, cultura popular de Santo Amaro, na Bahia. A música, regida apenas por um piano e por um clima de blues, nos embala no verdadeiro centro das atenções: o corpo e a voz da Medeia Negra. Em um espetáculo, poucas vezes podemos vivenciar uma presença tão firme de um corpo que nunca se dispersa. O corpo de Márcia Limma nos passa uma mensagem clara: as mulheres negras, que encontram tantos percalços em uma sociedade patriarcal e racista como a brasileira, nunca perderão a força e a coragem. 

O espetáculo traz referências à ancestralidade negra, com alguns elementos cênicos ligados ao candomblé. Em dado momento, o corpo de Márcia se transmuta em um búfalo, animal que representa a força selvagem de Oiá – a iabá que solta fogo pela boca, que nunca perde a coragem. No início da peça, Márcia equilibra duas cumbucas, rodeadas de búzios e em chamas, em um lento caminhar. É o fogo interno que nunca se apaga até o fim do espetáculo. 

E, sem dúvida, mesmo quando vamos para casa – ainda com as imagens do corpo e com a voz perfurante da atriz em nossas mentes – algo revira em nosso interior, o fogo permanece aceso. Medeia Negra é um manifesto de luta, porque relembra da verdadeira história brasileira, nos causa fogo. Antes de tudo, uma arte revolucionária tem a ver com isso: estimular a memória do passado, causar fogo no público e nos deixar com o gosto de coragem na boca.

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