Por Rafael Melo
No dia 27 de outubro de 2021, o universo musical baiano e brasileiro – por que não, mundial – se despediu de um dos maiores instrumentistas da história. Letieres dos Santos Leite, nascido em 8 de dezembro de 1959, em Salvador, foi músico, educador, compositor e arranjador, que deixou como legado um sem-fim de obras e trabalhos que marcaram definitivamente os caminhos da música baiana como conhecemos.
Letieres começa sua estrada na música desde cedo, fazendo parte da orquestra afro-brasileira do Colégio Severino Vieira, sob a direção da musicóloga Emilia Biancardi. Se graduou em artes plásticas pela Universidade Federal da Bahia, e, dando início à sua carreira musical, realizou trabalhos junto a nomes conhecidos da música soteropolitana, como Gerônimo, Saul Barbosa, Cozinha Baiana e Andréa Daltro. Em 1986, ingressa no Conservatório Frantz Schubert, na Áustria, onde aprofunda ainda mais sua concepção musical e divide palco com grandes nomes da música instrumental mundial, participando de festivais de jazz mundialmente reconhecidos, como o Festival de Montreal e o Zurich Jazz Festival.
Durante sua formação, desenvolveu e elaborou – desde sua estadia na Europa, entre o Conservatório e as experiências trocadas com diversos instrumentistas do mundo todo – os fundamentos do que seria denominado por ele como “Universo Percussivo Baiano” (UPB). Tendo registrado em sua memória a riqueza e a complexidade dos ritmos afro-brasileiros executados nos terreiros de candomblé da Bahia e nos blocos afros do carnaval de Salvador, acumulou composições até que, depois de 10 anos vivendo na Europa, retornou à Bahia, trazendo o seu projeto de educação e pesquisa. Passou a fazer arranjos para vários artistas, sempre aplicando o conceito do Sistema de Claves Rítmicas aprendido com os cubanos, que conheceu e com quem tocou na temporada europeia. Utilizando os toques e ritmos afro-brasileiros e suas variações com uma profundidade de percepção bastante apurada, constatou que o estudo do ritmo, com tal profundidade e consciência, desenvolve uma percepção mais apurada.
Em 2006, de volta ao Brasil, funda a Orkestra Rumpilezz, cuja formação traz, além dele, 19 músicos: cinco percussionistas (que tocam surdo, timbau, caixa, agogô, pandeiro, caxixi e atabaque) e 14 instrumentistas de sopro (quatro trombonistas, quatro trompetistas, um flautista, seis saxofonistas e uma tubista). O nome da banda expressa suas principais influências. A palavra “rumpilezz” junta o nome do três principais atabaques do candomblé (ru, rumpi e lé, que correspondem respectivamente aos tons grave, médio e agudo) com o “z” duplo do jazz norte-americano. O “k”, em Orkestra, retoma o original etimológico grego. A música da Orkestra Rumpilezz realiza um diálogo de batidas do candomblé com as dinâmicas do jazz. Funda também o projeto Rumpilezzinho – Laboratório Musical, onde passa a atuar junto a jovens da cidade de Salvador e de todo Brasil, aplicando e colocando em prática todo acúmulo referente ao UPB.
Letieres partiu de forma inesperada, e não estávamos preparados para perdê-lo. Porém, aquilo que ele nos deixou é de uma grandeza tão incomensurável, que não parece nem que ele se foi, mas que continua aqui a nos guiar e nos orientar entre as Claves Rítmicas da música afro-brasileira. Agora, o Maestro rege dos céus os seus tambores, atabaques, saxofones e tubas, numa grande festa junto a todos seus ancestrais. E nós, aqui embaixo, aplaudimos uma última vez a sua obra.