Por Milton Pinheiro
Entrevista do Momento com Ricardo Antunes, professor titular de sociologia do trabalho da Unicamp.
O MOMENTO – A situação política e social em nosso país está gerando a possibilidade de uma profunda condensação de crises. Para além da análise da conjuntura, quais seriam os fundamentos dessa crise?
RICARDO ANTUNES – O primeiro elemento fundamental para se entender a tragédia brasileira, especialmente dos últimos 4 a 5 anos – de 2016 para cá, desde o golpe de 2016 até esse momento atual -, é a confluência trágica de uma crise econômica (estrutural) do sistema global do capital, que é desigual e combinado no seu desencadeamento, e que chegou aqui intensamente a partir de 2014, encontrou um solo social secularmente desigual, e que devastou o que estávamos vivenciando nos anos anteriores.
Basta dizer que, da Reforma Trabalhista para cá, e mesmo antes, já no final do Governo Dilma, todos sabemos como se ampliou muito fortemente o desemprego. Entramos no flagelo de uma sociedade onde, frequentemente, 40% da classe trabalhadora encontra-se na informalidade. Isto levou essa simultaneidade entre a crise estrutural de matriz econômica e a crise social pautada pela devastação, a uma crise política em 2018, onde, fundamentalmente, o desgaste do experimento dos Governos do PT, acrescido a uma necessidade de implementar políticas econômicas e sociais de absoluta devastação – que passaram a ser exigência das grandes, distintas e diferenciadas frações da burguesia, e não poderiam encontrar, naturalmente, no governo do PT, um governo de devastação.
Exigia-se do Governo Dilma Rousseff uma devastação, que, de algum modo, contrapunha-se à política de conciliação que pautou os Governos do PT. Nós sabemos que estes governos – e nisso tem uma força marcante a atuação do Lula – sempre foram pautados pela conciliação entre classes. Foram governos policlassistas, ainda que, sempre enfatizando, como Lula cansou de dizer: “as burguesias vão ganhar muito dinheiro, mas é preciso que uma parte pequena seja drenada para as políticas sociais, de modo a minimizar o flagelo das populações assalariadas empobrecidas”.
Isso levou ao golpe de 2016, que depôs Dilma; ao Governo Temer, um governo bastante pautado por uma política de implantação das exigências da burguesia; e, no meio disto, quando saíamos do Governo Dilma e iniciávamos o Governo Bolsonaro, 1 ano depois desse trágico Governo Bolsonaro, dessa tragédia, dessa catástrofe completa, nós tivemos o ingrediente último que faltava: uma crise sanitária brutal, e que, como sabemos, vem sendo tratada pelo Governo Bolsonaro como uma questão irrelevante, dando, desse modo, motivos para que hoje exista uma campanha claramente presente no país inteiro e em várias partes do mundo, de que o Governo praticou uma política de genocídio em relação às populações pobres das favelas, da classe trabalhadora, dos negros, das negras, das mulheres, das comunidades indígenas. E chegamos a essa tragédia em que estamos hoje.
O MOMENTO – O cenário político brasileiro, onde se posicionam os diversos agentes da luta de classes, tem sido impactado por ações contraditórias: CPI da COVID-19, candidatura de Lula, ingresso da esquerda nas redes de contágio, presença de diversas organizações da esquerda socialista em atos de ruas… Qual deveria ser a questão principal do bloco proletário e popular nesse momento?
RICARDO ANTUNES – A esquerda brasileira e, por que não dizer, a esquerda dominante no cenário mundial, tem sido uma esquerda dentro da ordem. Nós podemos pegar o caso mais emblemático, que foi a irrupção de uma esquerda mais ousada, aparentemente mais radical na Grécia, no contexto da crise grega, que presenciamos na viragem da primeira década para a segunda década; e a primeira medida deste governo de esquerda – depois de um plebiscito com resultado favorável à ruptura com a União Europeia – foi deixar de lado o plebiscito e defender a política do capital europeu dominante e sob a hegemonia da Alemanha.
Isto, para exemplificar que o papel das esquerdas tem sido prevalentemente de uma política que se pauta no espaço da esquerda dentro da ordem. Ela vem jogando toda a sua energia para o conserto do capitalismo, para restaurar o welfare state na Europa e construir um welfare state que nunca existiu como experiência longeva e duradoura em nenhum país do sul do mundo.
O desafio, então, que deve ser a questão principal: organizar pela base, tendo a impulsão social dada pela classe trabalhadora, nela compreendida na sua nova morfologia, no seu desenho. Um conjunto de trabalhadores que aglutina desde a classe trabalhadora ainda com elementos de estabilidade (cada vez menor), àquela que não para de se expandir na informalidade: nas formas de trabalho intermitente, na uberização, assimilando que a classe trabalhadora tem gêneros, tem raça, respeitando a força das periferias, olhando para o passado e para o futuro que indicam as comunidades indígenas, a juventude – esta que não tem nenhuma perspectiva no país; saiu recentemente na Folha de S.Paulo uma pesquisa dizendo que metade da juventude brasileira não vê nenhuma perspectiva no país. E, quanto mais pobre, quanto mais da base da pirâmide social, mais trágica é esta situação.
Os partidos maiores ou menores que são claramente anticapitalistas no Brasil, em geral são ainda grupamentos de pequena expressão. Não são todos os partidos de esquerda, pois tem uma parte importante que não se coloca com uma política claramente anticapitalista; os partidos anticapitalistas e mais esse mosaico de movimentos da juventude, antirracista, feminista, têm que tomar a condução e a impulsão desses movimentos para tirar a bússola que empurra os movimentos sociais e as esquerdas para o caminho institucional, e alterá-la no sentido de uma luta não anti, mas extra-institucional; não anti-parlamentar, não é a recusa de participar do parlamento em todas as situações, mas é uma luta extra-parlamentar. Esse é o desafio crucial neste momento em que estamos vivendo.
O MOMENTO – Existe um debate em curso que é fundamental, para além da ação da realidade concreta, que é sobre o caráter do Governo Bolsonaro, e se vivemos ou não um novo ciclo de fascismo entre nós. Como caracteriza essas duas questões?
RICARDO ANTUNES – O Governo Bolsonaro confirma uma trágica tendência da realidade política que temos no Brasil – e quem mais profunda e ricamente tratou deste tema foi nosso Florestan Fernandes.
O Brasil, assim como nossa América Latina, mas em particular o Brasil, sempre oscilou entre uma forma autocrática abrandada e o descambamento para formas ditatoriais e militares, como tivemos em 1964 com a Ditadura Militar, como tivemos com o Golpe do Estado Novo em 1937, para citar estes exemplos que foram os experimentos ditatoriais mais fortes do Brasil. De uma autocracia que tínhamos com Getúlio nos anos de 1935 a 1937, migramos para uma Ditadura Civil, mas com respaldo Militar; diferentemente da Ditadura de 1964, que teve a impulsão da burguesia – e portanto teve um claro traço Civil, mas foi uma Ditadura abertamente Militar.
No caso do Bolsonaro, é preciso acrescentar ingredientes importantes: ele é, sim, uma liderança que expressa tipicamente elementos neofascistas. Claro, é uma análise que precisamos fazer com mais profundidade, mas ele oscila entre o protofascismo e o neofascismo. Não é o fascismo tal qual conhecemos nos anos 1920; certamente não é. Tem elementos diferenciados. É um fascismo com traços bonapartistas. E eu retenho aqui uma conceitualização de Marx que é primorosa: o Bonaparte é aquela expressão política, aquela personificação do poder de uma figura que não se origina das classes burguesas, mas vai agir no universo e no horizonte sob comando dessas classes burguesas.
Faço um último comentário: o Lukács, acho que foi no posfácio do “Assalto à Razão” – um livro tão importante e certamente rico e polêmico -, que ele aludia à possibilidade da emergência do fascismo nos Estados Unidos: dizia que os Estados Unidos tinham atingido tal nível de avanço do capitalismo monopolista, que poderia ser compatível com a ação fascista. Nós sabemos que o fascismo teve vigência na Alemanha porque foi uma forma de consolidar o capitalismo monopolista alemão, que buscava avançar a sua fase imperialista. Com todas as diferenças, o mesmo se deu no caso da Itália.
Então, é desse modo que eu penso que nós podemos entender: seria possível termos fascismo em países como os Estados Unidos? Trump foi um claro exercício disso: se ele tivesse dado um golpe e sido bem sucedido no golpe, ele teria instaurado um governo de tipo fascista. Fascista, porém, com essas dimensões que diferenciam o nacionalismo e o internacionalismo burguês, a internacionalização do capital nascente no início do século XX, do capitalismo mundializado dos nossos dias.
O MOMENTO – No ciclo político que se abriu em 2013, com as diversas derrotas da esquerda e da social-democracia tardia, o campo do trabalho foi violentamente atacado no Brasil. Qual a análise que você faz desse processo?
RICARDO ANTUNES – Trarei dois ou três elementos, porque essa discussão seria, como todas as outras questões, de grande profundidade. Darei, aqui, pistas para se desenhar um cenário.
O que aconteceu a partir de 2013, 2014? Nós vivenciamos, nos anos 2009 a 2013, até 2014, uma era muito rica de rebeliões. Uma era de rebeliões que começa com a revolução na Tunísia e expande-se para o Oriente Médio; tivemos o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, um movimento de contestação à política financeira que controla o imperialismo norte-americano; tivemos a explosão dos Indignados da Espanha; os Precários Inflexíveis em Portugal; as rebeliões de várias ordem na Inglaterra; tivemos manifestações na França; tivemos um momento de avanço da esquerda política anticapitalista na Grécia, que depois teve aquele desfecho que já mencionei; e esta era de rebeliões não resultou numa era de revoluções. É diferente: uma rebelião não é uma revolução. Uma revolução pode começar através de uma ou de muitas rebeliões, mas para que ela se converta de rebelião em revolução, é preciso um movimento muito mais complexo.
O que nós tivemos a partir disto? Uma era de contrarrevolução preventiva de amplitude global – novamente aqui eu recupero a ideia do Florestan de contrarrevolução preventiva, preventiva por sequer haver o risco da revolução. E o Marcuse já falava, nos seus escritos, desta fase de exacerbação do irracionalismo burguês na sua máxima potência. O resultado disto, no plano do trabalho, significou dizer o seguinte: essa proposta nasce com o neoliberalismo, no final dos anos 1970; se desenvolve por todas as últimas duas décadas e meia do século XX, com o aprofundamento da crise estrutural do sistema capitalista que começa em 1973; e se agudiza em 2008/2009. Os capitais globais e as suas corporações decidem, então: daqui para frente, alta tecnologia, exército de reserva disponível em amplitude global, e o capitalismo em crise, dada a privatização e a transformação capitalista de modo total do setor de serviços.
No século XX, o setor de serviços era parcialmente explorado capitalisticamente: educação, saúde, previdência, água, energia elétrica, estradas, cárcere, tudo isso era, no passado, até o fim dos anos 1960, prevalentemente público. A privatização do setor de serviços, a sua mercadorização e comoditização fez com que se desenvolvesse uma ideia magistral do Marx, que está presente no Volume II d’O Capital e eu procurei desenvolver no meu livro “O Privilégio da Servidão”, particularmente o capítulo 2 dá elementos disso: o setor de serviços desenvolve capitalisticamente o que Marx chamava de Indústria de Serviços. E a regra é a seguinte: alta tecnologia, exército sobrante de força de trabalho, crise econômica capitalista, setor de serviços privatizados.
É preciso corroer, é preciso demolir todos os direitos do trabalho de modo que a classe trabalhadora aceite qualquer um, porque, cada vez mais, ela vai ser substituída por maquinário tecno-informacional digital, indústria 4.0, trabalho digital, internet, big-data, impressão 3D, geração 5G, tudo isso que tem como sentido principal aumentar, no processo de geração de valor e de riqueza capitalistas, a dimensão do trabalho morto (maquinário tecno-informacional digital), em detrimento, ou seja, reduzindo o trabalho vivo.
O problema crucial do capitalismo, entretanto, decorre de um único fato: o capitalismo não se valoriza sem força humana de trabalho. Foi por isso que Marx e Engels disseram, premonitoriamente, que o capital não tem como se desenvolver sem criar o seu próprio coveiro, que é o proletariado, que é a classe trabalhadora. Muito bem: o capital pode, então, reduzir a classe trabalhadora, precarizá-la, destituí-la de direitos; mas isso não permite que ele possa eliminar, em última instância, a luta de classes.
O MOMENTO – Na lógica do caos controlado do Governo de Jair Bolsonaro, que tem como objetivo acabar com os serviços públicos e transformá-los numa carteira de negócios para a iniciativa privada, como você examina a atual situação da Universidade brasileira?
RICARDO ANTUNES – O Governo Bolsonaro, com seu perfil autocrático, bonapartista e fascista, como eu disse anteriormente, “alternando entre uma variante de neofascismo e de protofascismo”, tem como imperativo o desmonte de todas as atividades públicas que são passíveis de serem privatizadas, mercadorizadas e comoditizadas. É assim que tem sido feito, e nós vimos na semana passada a privatização da Eletrobrás.
A Universidade tem, em relação ao Governo Bolsonaro, outras dimensões que transcendem a esta. A política do Governo Bolsonaro é de desmonte da Universidade para sua privatização. Ele não tem nenhum interesse em Ciência de ponta, nem em Ciência Exata – as chamadas Ciências duras; na cabeça do Governo Bolsonaro, a Ciência “que basta” é a Ciência “Militar”, ou seja, a ideologia da Segurança Nacional que foi gestada no pós-Segunda Guerra, dentro da concepção imperialista norte-americana da Guerra Fria. Ela se esparramou, e se mantém com as eventuais alterações.
Mas, para além disso, o Governo Bolsonaro tem interesse em eliminar a reflexão crítica e científica na Universidade, em particular nas Ciências Humanas. Ele sabe que as Ciências Humanas são um pólo de reflexão: os estudos de História, Economia, Sociologia, Literatura, Geografia, Ciência Política etc. Ele sabe que, nas chamadas Humanidades, em geral, a reflexão crítica é intrinsecamente antifascista, anti-ditatorial, antiautocrática. Não existe uma experiência de Universidade pública, na área de Humanas, que tenha sido por longo tempo fascista, ditatorial. Não; as Universidades, em particular as Ciências Humanas dentro das Universidades, são sempre pólo de reflexão crítica.
Como ele está fazendo para destruir esse projeto? Num primeiro momento, minguando e exaurindo completamente os recursos da Universidade. A partir da exaustão e eliminação dos recursos públicos da Universidade, elas acabam tendo que ir bater às portas do mundo privado, das corporações, das grandes empresas, para poder obter recursos. No plano da Medicina e das Ciências Biológicas, na cabeça desse Governo, os laboratórios podem prestar esse apoio. No plano das Ciências duras – Química, Física etc -, as empresas, com o interesse da razão instrumental, podem incentivar áreas que interessam à pesquisa empresarial.
Sempre lembrando que, mesmo nessas áreas, em países como o Brasil, a pesquisa avança predominantemente pelo incentivo público. E nas Ciências Humanas, por óbvio, a sua exaustão – porque não é possível empurrar as Ciências Humanas para depender do apoio das empresas privadas.
Como se faz isso? Além dessa retração de recursos, é vital para o Governo Bolsonaro a destruição da carreira universitária; a destruição da pesquisa que contempla estabilidade para o pesquisador ou pesquisadora; tempo de reflexão: o tempo da Ciência – seja essa Ciência nas Exatas ou nas Humanas – não é o tempo do mercado. Como você arrebenta com essa Ciência? Impondo-a a seguir a razão instrumental ditada pelo mercado.
O próximo passo – no qual já estamos se não formos capazes de lutar duramente – nós já sabemos: criar o trabalho uberizado intermitente, e para fazer isto, o objetivo primeiro do Governo é destruir a carreira universitária em todos os sentidos, dos docentes e dos demais funcionários, e aniquilar o ensino público e gratuito. Por sorte nossa, há de haver muita resistência do Movimento Estudantil, do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Públicas e do Movimento dos Docentes. Além de termos que procurar ter o máximo possível de apoio da sociedade, na percepção de que a Universidade Pública é vital, assim como o SUS se mostrou também absolutamente vital.
O MOMENTO – A esquerda brasileira, a partir de suas distinções e matizes políticas, tem projeto para reagir ao avanço da extrema-direita?
RICARDO ANTUNES – As esquerdas precisam se reinventar, especialmente as esquerdas anticapitalistas. Eu não tenho nenhuma ilusão em relação às esquerdas dentro da ordem, as esquerdas que querem “consertar o capitalismo”. Essas serão o que, de novo o Florestan Fernandes, chamava provocativamente de “cauda da burguesia”: a burguesia tem que ter um discreto charme, e seu discreto charme é aquele pólo mais moderado da esquerda, que se diz de esquerda, mas pratica o que a direita gosta.
Nós estamos desafiados a reinventar uma concepção original, anticapitalista, corajosa, radical, renovada ou seja, contemporânea com os desafios do século XXI, porém radical. Não renovada e contemporânea e portanto conciliadora e da consertação; não, não há possibilidade de reinventar a social-democracia, nem nos países ditos avançados, que estão vendo a sua social-democracia ser jogada pelo ralo, e muito menos no sul global, no sul do mundo, onde a social-democracia nunca pode vicejar.
Nós, socialistas, então anticapitalistas, devemos aprender com as lutas concretas da classe trabalhadora, com as lutas das comunidades indígenas, hoje um dos maiores elementos de oposição ao Governo Bolsonaro – ainda poucos dias atrás estavam centenas deles contra esse projeto letal do chamado “marco temporal”, que no fundo visa, como é uma política deste governo fascista e de extrema-direita, reduzir ao máximo até eliminar as áreas que são de direito dos nossos povos originários.
É claro que aqui tem um segundo elemento muito importante: nós não podemos ter receio de fazer críticas e autocríticas profundas das várias experiências socialistas. As esquerdas anticapitalistas não são e não devem defender o que é indefensável. A meu juízo – sabendo que isso pode ser polêmico para muitos, defender a contrarrevolução stalinista na União Soviética não é política de uma esquerda anticapitalista radical e consentânea com os imperativos do século XXI. Nós temos que ter ousadia para enfrentar o que foi a Revolução Russa, a sua origem magistral e por que ela se transformou.
Isso repõe a questão crucial da impossibilidade do socialismo num só país; a questão crucial que Mészáros tantas vezes nos indicou, de que também nos países pós-capitalistas que seguiram a experimentação de tipo soviética, com a diferença de que a União Soviética teve uma revolução portentosa, o leste europeu não viveu uma luta revolucionária contra o capitalismo, mas uma luta de resistência muito importante aliás, uma luta de resistência contra o fascismo.
Nós temos que enfrentar, por exemplo, por que uma revolução que começa em 1949, com a força camponesa na China, dirigida por um Partido Comunista de claro perfil fundamentado na ideologia do proletariado, como o Partido Comunista Chinês sob liderança do Mao Tsé-Tung, como é que a partir da morte de Mao no início da década de 1970, ele se metamorfoseia numa “variante” de país que hoje é a maquinofatura global, com níveis de exploração do trabalho brutais? Por suposto, não vou discutir aqui. É uma questão importante, de fundo geopolítico, é outra discussão; mas, evidentemente, temos que enfrentar.
Qual é o nosso ponto de partida, uma vez mais? O capitalismo levou, pelo menos, três séculos para se tornar dominante – do século XV ao XVIII -, e só se tornou dominante quando as suas revoluções burguesas atingiram o coração do capitalismo: a Inglaterra e a França. Por que o socialismo teria que ser vitorioso nos primeiros 150 anos? Da Comuna de Paris para cá? Nós estamos comemorando 150 anos da Comuna de Paris. Nós temos, ainda, 150 anos para termos o mesmo tempo que o capitalismo teve para ser dominante.
E, já que eu citei a Comuna de Paris, esse é o nosso ponto de partida mais precioso: uma revolução espetacular, comunal, operária, das classes trabalhadoras – como disse Marx, proletárias – ou como eu prefiro dizer, da classe trabalhadora ampliada, que condensava um conjunto de atividades para além daquelas que tipificam o proletariado, e que foi espetacular.
A Comuna de Paris é, em si e por si, um ponto de partida. Ocorreu numa das mais importantes capitais da Europa, no século XIX, e foi magnífica no desenho que instituiu: o poder comunal, a quebra da tripartição burguesa de poderes; o mandato, por exemplo, do representante da Comuna, era revogável a qualquer momento; uma educação verdadeiramente pública; este é o nosso ponto de partida.
O MOMENTO – Quais são os fundamentos da teoria social marxista que podem contribuir para superarmos a atual quadra histórica e mudarmos a correlação de forças na luta de classes?
RICARDO ANTUNES – Bom, essa seria uma questão que levaria o tempo que levei para indicar respostas às questões anteriores. Darei apenas uma pista: Marx é o ponto de partida imprescindível em nosso tempo. É o ponto de partida, não é o ponto de chegada. Há um conjunto muito rico de contribuições marxistas do século XX. Posso citar algumas: Lenin e Trotsky, na Rússia; Rosa Luxemburgo, na Revolução Alemã; Lukács, na Revolução Húngara, e toda a obra Lukacsiana, que se seguiu a partir da sua atuação já como marxista no contexto da Revolução Húngara de 1919; Gramsci, na Itália; e daí nós tivemos desdobramentos de vários pontos.
Eu diria que Marx é o ponto de partida, porque, para retomarmos um projeto original para o século XXI, teremos que recuperar a noção de propriedade social e comunal. Teremos que recuperar o sentido da emancipação humana e social, onde classe, gênero, raça, etnia, igualdade substantiva sejam dotados de sentido. Num processo de transformação revolucionária da classe trabalhadora, tem corpo, tem gênero, tem raça, tem etnia; na luta pela igualdade substantiva, para de novo retomar uma expressão cara ao István Mészáros, é vital incorporar essa dimensão humana, esses pólos.
Hoje é uma revolução feminista de amplitude global; uma luta antirracista do mundo inteiro, em todos os países, especialmente naqueles países que sofreram o vilipêndio brutal do racismo; temos uma luta dos LGBTs; temos uma luta da juventude; são muitos os descontentamentos, sejam eles do norte do mundo, sejam eles do sul do mundo, com as suas distintas dimensões.
E recuperar uma ideia que também é do Marx, que eu desenvolvi no meu livro “Os Sentidos do Trabalho” e tenho desenvolvido na minha obra desde o “Adeus ao Trabalho”: uma vida dotada de sentido dentro do mundo do trabalho, e uma vida dotada de sentido fora do trabalho, nos opõem ao capitalismo. Isto porque o trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade, e o trabalho autônomo produtor de bens socialmente úteis desestrutura o capitalismo. Então, esta é a chave: o trabalho que estrutura o capital, desestrutura a humanidade; o trabalho que estrutura a humanidade, tem que desestruturar o capital.
Muito boa essa entrevista do companheiro Ricardo Antune