Entrevista dO Momento: Marisa Midori

Por Milton Pinheiro

Marisa Midori é Professora Livre-Docente em História do Livro da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Doutora Honoris Causa pela Universidade Eszterházy Károly, Eger (Hungria). Autora de Império dos Livros – Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (Edusp/Fapesp, 2011; 2019) vencedor do prêmio Jabuti da CBL (1o lugar em Comunicação) e o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, pela Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro na categoria melhor ensaio social. Publicou, recentemente, História de um Livro. A Democracia na França, de François Guizot (Ateliê Editorial, 2021) e organizou a edição bilíngue de Bibliodiversidade e Preço do Livro. Da Lei Lang à Lei Cortez. Experiências e Expectativas em Torno da Regulação do Mercado Editorial (1981-2021) (Ateliê Editorial, 2021).

O Momento: Você, que é uma estudiosa das publicações marxistas e de esquerda no Brasil, como examina a contribuição dessa produção intelectual durante o século XX?

Marisa Midori: É preciso pensar que desde o início, o PCB teve um papel importante na construção de um infraestrutura que pudesse responder ao que Lênin havia denominado de agitprop, ou seja, o dever dos comunistas de manter um programa de agitação e de propaganda. Por agitação se compreendia a formação dos comunistas, o que é importante salientar. Como demonstra Edgard Carone em uma pesquisa inédita, até hoje muito pouco citada, que ele intitulou “Literatura e Público”, que aparece no livro Da Direita à Esquerda, foi Astrojildo Pereira, desde 1922, o principal agitador do PCB. Agitador no sentido de criar uma infraestrutura livreira que permitisse a distribuição de livros para a formação dos comunistas em todo o país. Isso não era tarefa fácil, pois não havia editoras comunistas e a imprensa operária mais consolidada vinha do anarquismo. Então era preciso criar tudo a partir de condições muito precárias, que dependiam muito da vontade dos militantes de honrar as encomendas e da organização do próprio Astrojildo que, como demostra Carone, organizava o fluxo de livros encaminhados para as células do PCB com um auxílio de uma caderneta. E o que havia em termos de repertório? Traduções de Lenin, Bukharin, enfim, a bibliografia básica de formação. Esse espírito se mantém, como temos visto em pesquisas novas, que se voltam para as editoras militantes, Calvino, Unitas, ou Vitória, é a manutenção de um programa de formação política, embora com o passar do tempo já observemos edições mais elaboradas, textos comentados e, inclusive, a edição de autores brasileiros e de romance proletário. Mas é impossível pensar um comunista sem um livro, no mínimo o Manifesto em uma brochura de bolso, o que mostra a importância da montagem de uma infraestrutura editorial no programa do Partido.

OM: O Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve um conjunto importante de editoras. Como esse aparato ideológico contribuía  para fazer avançar o projeto dos comunistas no Brasil?

MM: Em primeiro lugar, como assinalado anteriormente, a edição de livros visava claramente à formação política e ideológica dos militantes. Esse papel pedagógico se torna evidente na primeira edição do Manifesto, publicada em 1924, em Porto Alegre. No final da brochura, uma “nota do tradutor português” recomenda a leitura do texto quantas vezes forem necessárias para o seu entendimento; além disso, sugere que o mesmo seja lido e discutido em grupo; e, além de outras sugestões, que a brochura seja aproveitada da melhor forma possível, ou seja, que exista, de fato, um esforço para a sua ampla divulgação junto ao proletariado. Essa formação ideológica é a base de tudo, mas as editoras, na medida em que se profissionalizam, vão mais longe. Vinicius Juberte demonstrou, em seus dois estudos, um sobre a Editorial Calvino, desenvolvido como dissertação de mestrado, e outro sobre a editora Vitória, desenvolvida no doutorado, que a possibilidade de profissionalização dos editores comunistas lhes permitiu a ampliação do catálogo para além da bibliografia de formação. Ambos os editores passaram a editar literatura e, como vemos em seus estudos, mas também no levantamento bibliográfico publicado por Edgard Carone sob o título O Marxismo no Brasil, a circulação do que se compreendia como romance proletário, para o qual se investiu em muita tradução, particularmente da literatura soviética, demonstra que eles compreenderam o papel do editor como um mediador entre a produção intelectual, ou literária, em um sentido mais amplo do termo, e o leitor. O que Carone chama de “literatura e público”, ao avaliar o papel de Astrojildo Pereira, como apontado acima. E não se pode perder de vista essa perspectiva. Quer dizer, é preciso considerar que a formação cultural, em um sentido mais abrangente, também faz parte desse processo de formação a partir de uma determinada visão de mundo. O aparato ideológico, como se diz, sobretudo aquele que passa pelo crivo editorial, não pode se restringir ao estudo dos textos clássicos da teoria marxista, ao seus comentadores, às análises de conjuntura e às apostilas, que também fizeram parte desse repertório, de formação pedagógico e ideológica. O repertório deve ser tão extenso quanto o são as necessidades humanas. E, olhando de longe, parece-me que os catálogos formados pelos editores comunistas souberam atingir essa abrangência, fugindo, até, da ortodoxia marxista ou soviética, talvez, por questões financeiras, afinal uma editora é uma empresa. Mas ainda assim a marca editorial estava registrada em todos os livros impressos.

OM: A Editora Vitória cumpriu um papel destacado na luta ideológica, como se deu essa intervenção na batalha das ideias?

MM: Em primeiro lugar, é preciso dizer que a Vitória funcionou de 1944 a 1964, ou seja, vinte anos. Ora, estamos diante de uma empresa sólida, cujo projeto apenas se tornou inviável por causa do Golpe Militar. Novamente aqui devo citar a tese de doutorado de Vinícius Juberte, A Editorial Vitória e as edições comunistas no Brasil: da legalidade ao golpe (1944-1964), defendida no Programa de História Econômica da USP, sob minha orientação, e que se valeu de documentação inédita, além de fazer uma balanço bem interessante da bibliografia existente. O que podemos apreender da trajetória da Vitória, à luz do próprio desenvolvimento do marxismo no Brasil? Em primeiro lugar, os comunistas mantêm o programa editorial do que podemos chamar de uma biblioteca de formação, seguindo as diretrizes da União Soviética. Mas, nos anos de 1940, é flagrante a presença de intelectuais comunistas brasileiros que se destacam no cenário nacional, a exemplo de Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Luís Carlos Prestes, que publicam, inclusive, em outras editoras, o que demonstra uma conjuntura realmente favorável para a edição brasileira. Cito, en passant, a importância do editor Enio Silveira e sua Civilização Brasileira. E essa concorrência é importante, porque fortalece a Vitória. É por ela que Monteiro Lobato, também ligado à Brasiliense, de Caio Prado Jr. e Arthur Neves, publica a brochura Zé do Povo. Enfim, esse movimento é importante, diria, vital para a formação de uma infraestrutura editorial do comunismo. E o último ponto, como assinalei anteriormente, é preciso lembrar que Jorge Amado dirigiu a Coleção Romances do Povo. De alguma maneira, Jorge Amado reproduzia uma prática bem-sucedida, pelo menos antes da publicação dos processos de Moscou, do PCF, ou seja, um escritor de peso, na França o Louis Aragon, tornava o diretor da seção literária da editora do Partido. Esse foi um momento muito importante para a difusão da literatura operária no Brasil. Eu acho que, quando vemos hoje editoras de peso como a Boitempo, ou ainda a Expressão Popular, juntamente com outras editoras menores, igualmente comprometidas com a edição de esquerda, ou literatura de formação marxista – embora a presença de um partido na direção editorial seja algo mais difícil de se pensar – tudo isso é muito importante, pois preenche lacunas que os grandes grupos editoriais não têm interesse de preencher. E vemos jovens comprometidos com esses projetos, o que é fundamental para a renovação da militância. A Perseu Abramo, ligada à Fundação Perseu Abramo, também tem esse duplo papel: de uma lado, a formação política, com a publicação ou o apoio à publicação de textos fundamentais da literatura marxista (eles acabam de publicar A Sagrada Família, de Engels). Por outro lado, eles não perdem de vista a edição de pesquisas importantes que situam o Brasil e seus militantes na história do marxismo, ou de uma cultura comunista. Cito o exemplo do belo livro editado sobre Mario Pedrosa e toda a mobilização que houve, não faz muito tempo, no Sesc para resgatar seu papel como crítico de arte. Mas também há um outro lado que me parece igualmente fundamental, a saber, a capacidade da editora olhar as questões de seu tempo e responder a tudo isso como texto informativos, às vezes de pesquisa mais densa, mas, enfim, de atualizar sempre seu catálogo. Em certo sentido, quando olhamos o catálogo que a Vitória logrou construir nos vinte anos de funcionamento, podemos perceber que ela soube se renovar, sem, contudo, desviar-se de uma certa ortodoxia do Partido. E isso é importante, porque era uma editora do Partido, e não apenas uma editora montada por um simpatizante, ou militante independente, como no caso da Civilização Brasileira, ou da Brasiliense, citadas anteriormente.

OM: A Imprensa Popular, pós 1945, desenvolveu uma longa jornada no sentido de informar e defender os interesses do povo e da classe trabalhadora, o que você considera mais importante no papel dessa imprensa comunista?

MM: Eu confesso que a história dos jornais comunistas me escapa, pois sempre estive preocupada com a questão editorial. Então, o que nós temos a partir de 1945? O Partido se mune de uma imprensa própria, jornais diários, publicados no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Rio de Janeiro era a Tribuna Popular, em São Paulo era o Hoje. O Hoje foi estudado por Pedro Pomar em sua tese de doutoramento. Mas ele publica na Revista Perseu, um excelente artigo sobre o tema. Na verdade, ele é muito mais balizado do que eu para responder a esta questão. A presença de um jornal diário, voltado para as massas é o aspecto mais importante dessa história. É tão importante, é tão vital, que eu diria que é o que nos falta até hoje. Veja que agora o PT tentou emplacar um canal de televisão em história incrível, [mas] não obteve a licença por parte do Ministério das Comunicações. Observe que hoje a maior fragilidade da esquerda reside na comunicação dirigida às massas. Os quadros da esquerda são geralmente muito bem preparados politicamente. E isso acontece porque há uma tradição que associa a militância à formação ideológica e política. Eu acompanhei a ascensão do Jones Manoel nas redes sociais e parece claro que ele soube fazer uso dos canais de comunicação de massa que a velha esquerda não consegue atingir. Talvez não consiga atingir porque, na verdade, esses jornais que eu citei não tenham sobrevivido ou mesmo deitado raízes. Vou citar novamente o caso francês porque eu o conheço melhor: estava conversando com alguns colegas aqui na França e um deles disse que era leitor do Le Monde. A partir daí, instalou-se uma discussão. “Mas o Le Monde é de direita”, disse uma leitura do Libération. Outro disse, “mas o Humanité tem mais qualidade”. E um outro disse simplesmente, “eu gosto da crítica literária do Figaro” (nota bene, um jornal conservador). Eu pensei, “em São Paulo temos a Folha e o Estadão para chamar de nosso”. No Rio os cariocas têm O Globo. Para sair da França e citar um caso que eu li. O editor, falecido, já, estadunidense, André Schifrin, disse que um dia ele visitou a Finlândia e ficou estupefato com a quantidade de jornais diários que ele encontrou em uma banca de Helsinki. Seu padrão era os Estados Unidos? Nem de longe? Ele comparava esse quadro ao da França! E se ele desse um passeio pela Paulista em um domingo de manhã, não digo agora, quando os jornais tendem a se desmaterializar, mas há dez anos. O que ele viria? Então, quando o PCB investe em jornais diários, isso é muita coisa! É algo enorme! Isso significa a mobilização de jornalistas que vão alimentar esses diários; mas de gráficas; e de todo um aparato logístico, porque jornal que não atinge as massas é folheto de fábrica, não é jornal – pelo menos no sentido e na função a que nos referimos, sendo a mais importante, no meu entender, que é a de pautar as notícias frente ao que a mídia burguesa faz. Então, é importante entender a dinâmica dessa imprensa comunista do passado, inclusive, as dificuldades de tal projeto para se perceber que a crítica que se faz hoje à esquerda é muito séria. É uma crítica que vem de longa data e que escancara a sua dificuldade de fazer frente aos grandes grupos midiáticos brasileiros. Outro dia eu assistia a um jornal do interior de São Paulo, um jornal de Sorocaba filiado à Globo e fiquei escandalizada com o que vi: uma matéria narrava a troca do cachorro da polícia militar por um outro mais novo! Foram pelo menos 15 minutos de uma matéria aflitiva. Ora, cadê a esquerda para ocupar esse espaço enorme da televisão? Como é possível que um jornal local, em um ambiente aparentemente democrático, pode desperdiçar tanto tempo com um vazio de pauta como este? Como é que o telespectador não tem o aparato crítico e a opção de simplesmente mudar o canal e ver algo que esteja próximo de sua realidade, que o permita distrair-se, mas ao mesmo tempo compreender o seu mundo? Precisamos acreditar que isso ainda é possível. Mas, para isso, é preciso enfrentar a realidade, aprender, se for o caso, com essa nova geração que domina os meios, usar a experiência e sabedoria da velha militância e criar algo novo. Algo como os comunistas criaram lá em 1945, tanto do ponto de vista da imprensa diária – eu folheei muitas vezes o Hoje, porque o professor Edgard Carone tinha uma coleção! – quanto de uma inserção mais efetiva nas redes sociais.

OM: Seria possível, hoje, um partido revolucionário ter um jornal ou uma editora que conseguisse ter importante presença política e intelectual na sociedade?

MM: Sim, é possível e necessário. A imprensa diária não perdeu sua relevância, muito pelo contrário. Não sei como fazer, porque não sou da área. Mas eu vejo, por exemplo, o salto que o Jornal da USP deu nos últimos anos. Era um jornal que eu lia, impresso em papel, mas muito acanhado do ponto de vista do seu alcance enquanto uma mídia vocacionada a colocar a ciência a serviço da sociedade. Hoje é um jornal acompanhado por muita gente de fora da USP, justamente porque tem a chancela da USP, claro, mas também porque apresenta uma pauta que não interessa nem ao UOL, nem ao Estado, nem à Folha… enfim, é um jornalismo independente, diário e de qualidade. E feito de forma heroica por uma equipe muito enxuta. Enfim, não é um exemplo de jornalismo militante, mas é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade que tem crescido muito. Ora, isso mostra que a esquerda pode se debruçar em um projeto semelhante. Lá no passado eu participei, como colunista, da revista Brasileiros. Era um misto de política, economia e cultura que veio arejar as bancas de jornais, muito viciadas no sistema Veja. Então é possível entreter com material de qualidade. Massa crítica a esquerda tem e de sobra! Tem que encontrar o canal, a linguagem, investir, não temer a concorrência. Se os comunistas de 1945 fizeram com muito menos recursos, por que não agora?

Sair da versão mobile