Por Rômulo Caires
João Coimbra é um advogado criminalista, mestre em direito pela Arizona State University e doutorando em Estudos Africanos na Universidade Federal da Bahia, e tem experiência na área de direitos humanos internacionais. Além de ser um comunista linha dura, é claro.
O Momento– Todo Policial é um Assassino?
João Coimbra: Sim, sem sombra de dúvida. Todo policial é um assassino da mesma forma que todo homem é machista, todo branco é racista, toda pessoa sem deficiência é capacitista e toda pessoa cis é transfóbica.
“Todo policial é um assassino” porque essa é uma afirmação de caráter amplo, que leva em consideração a nossa organização social e seus problemas estruturais. É irrelevante dizer que “nem todo homem”, “nem todo branco”, etc., porque sabemos que não se trata de uma generalização contra quaisquer grupos de pessoas, mas uma constatação de uma violência de fato, que se dá via de regra. Apontar exceções só confirmam essa regra.
É por isso que não temos nenhum problema em dizer que todo policial é um assassino, eles são e eles sabem disso. E se por algum acaso houver uma pessoa de farda que não concorda com a prática de seus colegas, ou com a corrupção de seus superiores, ou com a cultura de racismo genocida e estupro dos seus quartéis, essa pessoa vai reconhecer que estamos falando a verdade. Ela apontar para si mesma e nos dizer “nem todo policial” é tão desnecessário, inconveniente e inspirador de desconfiança como qualquer outro “nem todo x”, “nem todo y”. Se ainda se enganam de que vão conseguir mudar a instituição por dentro, antes disso devem entender que sua instituição é falida e precisa ser desmantelada com urgência.
Não se trata de uma questão individual, mas coletiva. São todos assassinos e devem pagar pelos seus crimes contra a classe trabalhadora.
O Momento– O dia seguinte ao fim da polícia, como vai ser?
João Coimbra: Vai ser ótimo! [risos] Veja, a polícia não faz parte da nossa vida. Pelo menos não positivamente. Não nos ajudam quando nosso carro dá problema, não se importam em ver gente na rua passando fome, não ligam de passar o dia inteiro que Deus deu dentro de um carro com o motor ligado, queimando gasolina. São eles que permitem o latifúndio, que gera miséria no campo; são eles que permitem o acúmulo de bens nos mercados (até estragarem) e o sem-número de casas vazias, como aqui em Salvador, e por isso permitem a promoção da miséria na cidade.
Imaginem só, uma vida em que nunca mais ninguém vai ter medo de tomar um baculejo na rua? E se isso nunca aconteceu com você, camarada, se você não sente esse medo, você já vive numa sociedade sem polícia. As outras pessoas também têm o direito de sentir essa liberdade, de terem vidas plenas sem um assassino armado na esquina.
O Momento: Há uma contraposição entre os comunistas e o movimento negro liberal, que poderia ser sintetizada na seguinte pergunta: quem vem primeiro raça ou classe?
João Coimbra: Antes da raça e da classe, o que vem primeiro é a violência, vamos começar por aí… Chamamos de “Movimento Negro Liberal” esses grupos políticos que escondem seu alinhamento em nome da “união da raça negra”, mas nunca falam sobre como essa união se daria, ou qual seria o resultado prático nas nossas vidas por conta dessa “união”. Defendem uma corrente de Capitalismo Negro que é um contrassenso, posto que o capitalismo é a continuação do projeto racista da colonização. Às vezes, eu me vejo como quem estivesse falando grego, camarada, me perdoe, mas eu não consigo entender quem acha que vamos superar o racismo sem discutir nossa posição histórica na sociedade.
Mas, acontece que alguns grupos, e por isso chamamos de “Movimento Negro Liberal”, não têm qualquer pretensão de acabar com o racismo. O que eles querem é amenizá-lo, compreendê-lo sem ameaçá-lo ou se apropriar dele economicamente. Três táticas fadadas ao fracasso.
Primeiro, porque amenizar o racismo é amenizar para alguns, e aí nós estamos falando de classe. Não se trata de superar a violência contra os negros, mas de “não ser um negro qualquer”, um pensamento que é moralmente desprezível e politicamente ineficiente, porque enquanto não conseguirmos mudar a lógica de sociedade colonial, o branco será sempre inocente e o negro culpado até que provemos o contrário. O que essa ideia do Capitalismo Negro traz é a profissionalização desse “provar a inocência”, algo que é uma violência exclusionista contra os negros pobres.
Compreender o racismo sem ameaçá-lo é outra marca dos movimentos negros liberais, e ainda mais tola. Primeiro, porque não é possível conhecer algo sem interagir com ele, e no caso dos marxistas, sem buscar superá-lo. As elucubrações produzidas pelo movimento negro liberal são inócuas porque não interagem com a realidade, elas buscam construir uma solução antes de lidar com o problema: uma fórmula certa para a derrota. E a prática da vida prova que temos razão, já que vemos suas palavras da moda não passarem disso mesmo, suas abobrinhas não servirem de outra coisa senão para vender livros e palestras… Seus mini-manuais não são nem mesmo voltados para o público negro, mas para o branco que quer livrar-se da pecha de “racista”, como se o racismo não fosse ele mesmo um problema estrutural do capitalismo!
E terceiro é a tática mais sincera do movimento negro liberal, que é a apropriação econômica do racismo e da discussão sobre o tema. É, inclusive, o responsável por um ponto de tensão entre os negros e os indígenas em todo país, e em determinadas localidades com povos ciganos, judeus, asiáticos… Esse péssimo hábito do movimento negro liberal de ignorar outras raças no território nacional servem para duas coisas: assegurar que só negros discutam o assunto no Brasil (reserva de mercado) e desmobilizar a camaradagem entre todos nós contra a estrutura racista, o que ameaçaria seus privilégios de classe, seus pequenos confortos.
O que estamos tratando aqui é que raça e classe não são algo que possa “vir primeiro”. São determinações interrelacionais, ou seja, dependem de você nascer numa sociedade racista e de classes. As pessoas negras são racializadas, assim como qualquer outra pessoa pode ser racializada no seu contexto, como acontecem com os latinos no Norte Global, mas aqui não faria sentido. Somos negros porque vivemos numa sociedade racista, e se hoje não somos mais escravizados nós devemos isso a nossa Ancestralidade, nossa luta política. E somos classe trabalhadora porque somos explorados, reduzidos a coisa… uma violência que foi iniciada pelo barbarismo europeu na empresa colonial – e dura até hoje, por enquanto.
O Momento– João, comunista defende bandido?
João Coimbra: Essa pergunta é engraçada porque ela é construída sobre uma mentira. A mentira é que o “bandido” é um problema social: é o vilão que lhe aguarda e lhe rouba uma bolsa ou um celular, ou para alguns mais politizados seria “o político ladrão” que desvia dinheiro público. Antes de responder a essa pergunta, precisamos entender duas coisas: o que é “crime” e o que vem a ser um “bandido”. (e o spoiler da resposta é que sim, os comunistas defendem sim).
Então, em primeiro lugar, o “crime” não é algo que ocorre contra a sociedade, mas por conta dela. “Crime” é o que o legislativo decide que é crime, e que o judiciário aplica contra alguém. Não é uma coisa que existe na natureza, o que existe na natureza somos nós, nossa conduta e os resultados dela. As pessoas que defendem essa mentira chamada “criminalidade” acham que o mundo seria melhor “sem os bandidos”, mas ignoram que nossa sociedade foi construída e é mantida por várias violências diferentes… O que estamos querendo dizer que é a classe dominante, por ser a que tem o poder de definir o que é crime ou não, acaba por definir “quem é bandido” ou não, e como ele se parece.
É essa a nossa segunda questão frente a essa pergunta: a criminalização da pobreza e o racismo. As pessoas pobres são tratadas como bandidos, gente negra e indígena é tratada como bandido, até mesmo no ideário popular a compreensão de bandido envolve a pele escura, a moda periférica, a magreza e a juventude. É a justificativa do genocídio! Os nossos jovens são tratados como criminosos, além disso, por terem hábitos da vida comum criminalizados, como o uso recreativo de drogas. Uma desculpa esfarrapada para tentar justificar a presença assassina das polícias nas nossas periferias.
O Momento- Qual a proposta dos comunistas sobre as drogas?
João Coimbra: Nós defendemos o fim do tráfico de drogas, e isso significa dizer que é preciso dar um basta na farsa da “guerra às drogas”. Nosso inimigo não é um produto, nossos inimigos são os homens e mulheres que lucram com o sofrimento do povo. Lógico que eu não estou falando do pequeno nem do médio traficante.
Acabar com a “guerra às drogas” significa defender um amplo e antirracista plano de legalização das drogas, para que as comunidades que mais sofreram sob o jugo assassino do porco fardado sejam as primeiras a receberem o investimento por esse recolhimento. Teremos emprego, renda, controle de qualidade e controle de venda e consumo de drogas por parte da população brasileira, e abordaremos enfim a dependência química da forma como precisa ser tratada: como uma questão de saúde pública.
A produção de droga em escala industrial precisa ser abolida, e para isso precisamos ir até a sua indústria: o latifúndio. Só o latifúndio é capaz de produzir toneladas e toneladas de produtos agrícolas, e as drogas mais sintéticas que circulam no país dependem de laboratórios químicos de altíssima complexidade para serem produzidas, importadas e produzidas pela burguesia nacional. Acabar com o tráfico de drogas será benéfico para a população tanto para a segurança pública quanto para a saúde pública quanto para a economia nacional.
É o tipo de projeto que só não é posto em prática porque vai de encontro aos interesses da classe dominante: nossos inimigos, os inimigos do povo.