Entrevista de O Momento – Marcelo Ridenti

Por Milton Pinheiro

Marcelo Ridenti é Professor Titular de Sociologia na Unicamp, autor de diversos livros, como os recentes Arrigo (romance histórico, Boitempo, 2023) e O segredo das senhoras americanas – intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria Cultural (ed. Unesp, 2022)

 

O Momento: Está na pauta do Brasil atual a necessidade de um debate muito sério sobre os resquícios da ditadura de 1964. Como podemos enfrentar essa demanda sócio-histórica diante do crescimento da extrema direita no país?

Marcelo Ridenti: De fato, o debate sobre os resquícios da ditadura é muito importante e atual. Ele já vem sendo travado há anos tanto no ambiente político à esquerda como nas pesquisas acadêmicas. Um desafio é fazer esse debate escapar do confinamento entre intelectuais partidários e acadêmicos para ganhar espaço na vida social mais ampla. Penso que essa dificuldade se deve em grande parte ao fato de antigos apoiadores da ditadura terem participado com peso nos distintos governos, desde Sarney, passando por Collor, Fernando Henrique, depois Lula e Dilma, para não falar em Temer e Bolsonaro, este um herdeiro orgulhoso do “regime militar”. Ou seja, foram feitas distintas alianças políticas para manter a governabilidade desde a volta das administrações civis, sempre com a participação de frações de classe e seus políticos que antes haviam integrado o consórcio dos apoiadores da ditadura.

O debate costuma ser evitado para preservar aliados, e por medo de atiçar os militares, que tacham de revanchista qualquer iniciativa de discutir o tema. A avaliação sempre reiterada é a de que a correlação de forças políticas não permitiria enfrentar o problema do acerto de contas com o passado de arbitrariedades. Claro, o problema é complexo, e a saída mais cômoda é fingir que ele inexiste. Por muitos anos prevaleceu a ilusão de que aquelas poderosas forças que sustentaram a ditadura tinham se convertido em democráticas, a ponto até de se tornarem aliadas. De tanto recuar, subestimar ou ignorar o tema, as forças democráticas – particularmente as de esquerda – abriram espaço para a volta da extrema direita, que agora chega ao cúmulo de tentar reescrever a história, retomando a velha tese de que os militares salvaram a democracia com a “revolução de 1964”.

Não há saída fácil para o desafio, apenas a certeza de que não é adotando a posição de avestruz que ela será encontrada. Um primeiro passo é apurar os fatos e julgar os envolvidos na tentativa frustrada de golpe de janeiro passado, bem como nas barbaridades cometidas durante o governo que findou.

OM: Como cientista social você pesquisou aspectos da cultura brasileira no intervalo democrático entre Vargas e a tomada do poder com golpe burgo-militar de 1964. Qual é a leitura que faz daquele momento histórico?

MR: Foi um momento de extraordinário florescimento cultural, marcado pela utopia de aproximar artistas e intelectuais da gente do povo, rompendo com desigualdades e injustiças seculares. Surgiram o Cinema Novo, o teatro épico do Arena, dos Centros Populares de Cultura e outros grupos, criou-se a sigla MPB para designar a canção comprometida com a revolução brasileira, entre outros movimentos. Ganhava atualidade o tema da identidade nacional e política do povo brasileiro, procurando recuperar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento. A vontade de transformação tinha primazia, apostava-se na ação para mudar a História e construir o homem novo. Mas o modelo estava no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior. Ele seria o sujeito da revolução brasileira, fosse nacional e democrática ou até mesmo socialista, a depender do ponto de vista. Nas raízes tradicionais do povo estaria a base para superar o subdesenvolvimento e construir naquele momento o país do futuro.

Críticos apontaram vários problemas teóricos e políticos na produção cultural e no pensamento social do período, pois estariam afinados com o chamado “populismo” e seu pacto conciliador de classe entre setores do empresariado nacional e trabalhadores urbanos, aliados no projeto de desenvolvimento com recursos do Estado, pacto que se rompeu com o golpe de 1964. A classe trabalhadora ficava diluída no conjunto pluriclassista de povo. Parece-me que de fato havia um aspecto ideológico, no sentido de mistificação para garantir a continuidade da ordem estabelecida, um pouco reformada para se manter estável. Porém por vezes se esquece que também estava em jogo um aspecto utópico, com potencial para ultrapassar as fronteiras da ordem. Arquitetou-se de diversos modos a utopia de dissolver as desigualdades entre campo e cidade, centro e periferia, brancos e negros, a favela no morro e as classes médias no asfalto de cidades como o Rio de Janeiro. Segundo o poeta Ferreira Gullar, referindo-se em 1967 ao romance Quarup, de Antonio Callado, “a realização pessoal deságua no coletivo. Não se trata de apagar-se na massa, mas de entender que seu destino está ligado a ela”. Esse sentido de confluência do individual com o coletivo em busca da revolução brasileira foi a marca da época, que a faz memorável.

OM: Temos como identificar através da memória e da história a presença dos comunistas na cultura brasileira?

MR: Não se entende a cultura brasileira sem a presença dos comunistas, pelo menos dos anos 1930 aos 1970. Estavam presentes e organizados com peso próprio no pensamento social, no jornalismo, na literatura, no teatro, no cinema, nas artes plásticas, enfim, em toda a vida e produção cultural. Isso por vezes fica à sombra, não só no Brasil. Quem visita os museus nas casas onde Pablo Neruda morou no Chile fica com uma pálida ideia do que o comunismo significou em sua vida, e do que o poeta representou no movimento comunista.

Militantes escreveram vários livros de memória, e autores têm realizado obras de História e Ciências Sociais na contramão desse esquecimento que tem a ver com a hegemonia capitalista avassaladora hoje estabelecida nas sociedades produtoras de mercadorias, além da perda daquele sentimento de realização no coletivo mencionada por Ferreira Gullar.

OM: Existe um fio condutor entre cultura e democracia no Brasil?

MR: Algumas das melhores obras de arte foram produzidas em diálogo implícito ou explícito com a questão democrática no Brasil, até mesmo em contextos duros durante a repressão de governos autoritários como os de Arthur Bernardes, Getúlio Vargas, a ditadura militar e a experiência recente da administração federal de extrema direita. O mundo da cultura tentou sobreviver e resistir, não raro envolvendo negociação e compromisso com o próprio Estado. É conhecida, por exemplo, a participação de artistas no Ministério da Educação conduzido por Gustavo Capanema durante o Estado Novo. Mas o momento cultural mais pleno até agora provavelmente ocorreu do fim dos anos 1950 ao começo dos 1960, envolvendo o avanço da democracia no Brasil, com desdobramentos ainda depois do golpe militar, até o fechamento total da ditadura com o Ato Institucional n. 5 de dezembro de 1968. Depois dele, sem contar a censura e a repressão, a indústria cultural viria a se estabelecer plenamente, até mesmo empregando muita gente de esquerda, que não deixaria de constituir também um mercado lucrativo de bens culturais. Mesmo a retomada democrática se faz sob o domínio da produção cultural mercantil de massa, com nichos de mercado até para a contestação.

OM: A ditadura que durou 21 anos impediu o desenvolvimento de uma cultura nacional e popular no Brasil?

MR: Um aspecto notável no desenvolvimento da indústria cultural brasileira – de que a Rede Globo tem sido a principal protagonista a partir do fim dos anos 1960 – é que ela usou a experiência crítica anterior para criar uma espécie de nacional-popular de mercado, até mesmo empregando artistas comunistas. Por exemplo, conforme comento no livro O fantasma da revolução brasileira (2ª. ed., Unesp, 2010), a letra do samba‑enredo para a propaganda da cobertura da TV Globo no Carnaval de 1989 exaltava as qualidades “populares” e “nacionais” da Rede Globo na voz de Jamelão da Mangueira. Terminava com a frase lapidar: “a Globo é sabedoria popular”. Afinal, ao produzir telenovelas e outros programas nacionais com nível de qualidade para exportação, empregando artistas brasileiros, ela era campeã de audiência popular, levando aos lares obras que tomavam o lugar dos programas importados dos Estados Unidos. E exibiria com pompa e destaque o desfile das escolas de samba cariocas no carnaval, ponto máximo de expressão do povo e da nação brasileira. Claro, é uma apropriação distorcida do nacional-popular revolucionário do começo dos anos 1960. Mas assim funciona a hegemonia, incorporando à ordem os desafios contra-hegemônicos.

OM: Como identificar a contribuição histórica do PCB para a cultura nacional e popular na sua longeva existência?

MR: Um meio é conhecer obras que artistas comunistas produziram, como os escritores Jorge Amado e Graciliano Ramos, arquitetos do quilate de Oscar Niemeyer, pintores a exemplo de Portinari e Carlos Scliar, cineastas como Alex Viany e Leon Hirszman, dramaturgos da qualidade de Dias Gomes e Gianfrancesco Guarnieri, músicos de Mário Lago a Carlos Lyra, e uma infinidade de outros.

Também se pode aferir a contribuição comunista para formar campos intelectuais e artísticos: Caio Prado Jr esteve envolvido no projeto de criação da Fapesp, cineastas comunistas atuaram em congressos fundamentais para organizar a indústria cinematográfica nos anos 1950. O Teatro Paulista do Estudante, uma iniciativa de jovens comunistas, foi a base para formar o Teatro de Arena que revolucionou a dramaturgia brasileira, sem contar a presença no CPC da UNE, na Associação Brasileira dos Escritores, nos clubes da Gravura, no meio dos arquitetos, e ainda em células nas rádios Nacional, Tupi e outras, e posteriormente na Rede Globo, embora cada vez mais absorvidos pela lógica da indústria cultural.

Ou seja, o Partido teve papel fundamental para organizar artistas e intelectuais. Isso ajuda a entender a atração exercida sobre eles mesmo no momento mais autoritário internamente e estreito do ponto de vista de formulação estética, na era do chamado zdanovismo no começo dos anos 1950, como tentei demonstrar em capítulos dos meus livros Brasilidade revolucionária (2010) e O segredo das senhoras americanas (2022), ambos editados pela editora Unesp. Segundo o poeta Rossini Camargo Guarnieri, o Partido daquele tempo envolvia “a inteligência a serviço da burrice organizada”. Sem entrar no mérito da questão da “burrice”, a frase sarcástica traz a palavra-chave “organizada”, que ajuda a entender a militância de artistas e intelectuais. A organização no partido foi vital para a afirmação e o reconhecimento de muitos artistas e intelectuais.

OM: Você publicou uma obra de ficção (romance) tendo como cenário momentos importantes da vida política. Como entender essa nova produção no arcabouço do seu projeto intelectual?

O romance tem por título o nome do protagonista: Arrigo (Boitempo, 2023). Trata-se um militante com mais de cem anos que foi do Partido Comunista na maior parte do tempo e atuou politicamente desde menino a partir da greve de 1917 em São Paulo, depois lutando contra os governos autoritários de Bernardes, Vargas e da ditadura militar. Teve passagens no exílio, onde pegou em armas na Guerra Civil espanhola e na resistência ao nazifascismo na França. Ao escrever sobre Arrigo e seus companheiros, que lutaram, amaram, foram presos e torturados – alguns mataram e foram mortos –, tentei fazer uma síntese existencial da história da esquerda, em especial a brasileira.

A passagem do tempo e dos acontecimentos pode ser tratada de modo objetivo pela História e pelas Ciências Sociais, como venho tentando fazer em minha obra acadêmica. Pode ser analisada também de modo subjetivo pela construção da memória. E ainda de um prisma sensível, em busca de beleza, pelas artes. A ficção – no caso, a literária – permite a liberdade de trabalhar com o tempo e os fatos enlaçando esses três planos, história, memória e arte, que podem ser articulados das mais diversas formas, o que dá ao autor uma sensação de liberdade criativa que eu nunca imaginara. É sabido que Marx e Engels afirmavam que ler Balzac seria mais valioso que muitos tratados para compreender a sociedade francesa. Pode-se dizer o mesmo, por exemplo, de Machado de Assis para entender a sociedade brasileira de seu tempo. Claro que não tenho a pretensão de me equiparar a nenhum desses mestres, mas fui seduzido pelo desafio de articular pela ficção, a meu modo, esses três elementos, e assim expressar criativamente as experiências que vivi, testemunhei ou estudei.

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