Considerações sobre a falsa abolição – 14 de maio: o dia seguinte

Por Wenderson Silvari

 

Não são poucas as datas e personagens históricos que geram polêmica no debate sobre o Brasil e sua verdadeira história. Talvez uma das datas polêmicas que mais geram debates, especialmente no interior do movimento negro seja o 13 de maio, dia em que ocorreu a aprovação da lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, dando fim à escravidão de pessoas negras.

Para o movimento negro, o 13 de maio é uma data cujo objetivo é o de denunciar o racismo, e não uma comemoração do processo de abolição da escravatura. Entretanto, na primeira fase do movimento negro brasileiro, que vai do início da república até 1940, parte expressiva das organizações olhavam com simpatia para a data da abolição e para Princesa Isabel. Dentre estas organizações, tivemos o Clube 13 de Maio dos Homens Pretos, organização que, já na escolha do próprio nome, fazia alusão à Lei Áurea. Outro exemplo foi o Clarim d’Alvorada, um dos principais jornais da chamada Imprensa Negra, fundado pelos militantes Jayme de Aguiar e o José Correia Leite, que noticiava e exaltava a comemoração do 13 de maio realizada por organizações negras.

Foi ainda no período da primeira fase do movimento negro que começou a surgir o debate crítico sobre a abolição. Organizações questionavam a forma como a abolição fora feita e apontavam para a necessidade de uma segunda. Porém, somente a partir da década de 70 começaram as críticas mais sistemáticas ao 13 de maio e à figura de Princesa Isabel, que ainda era tratada como a principal responsável pela libertação dos negros e negras no Brasil. Neste período, estavam surgindo organizações como o Movimento Negro Unificado (MNU) e o Grupo Palmares, primeira organização a defender o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, como data a se comemorar o fim da escravidão.

Questionamentos sobre a data de abolição da escravatura vão para além de se ela é ou não a mais representativa para a população negra, devendo apontar, também, os limites da Lei Aurea, já que em 1888 apenas 10% da população negra ainda era escravizada. Além disso, considera-se o fato de que o Estado brasileiro abandonou milhares de pessoas à própria sorte, sem criar o mínimo de condições para que estas não morressem na miséria total. Ao falar sobre a abolição, Lélia Gonzalez aponta que:

Na verdade, o 13 de maio de 1888 trouxe benefícios para todo mundo, menos para a massa trabalhadora negra. Com ele se iniciava o processo da marginalização das trabalhadoras e trabalhadores negros. Até aquela data elas e eles haviam sido considerados bons para o trabalho escravo. A partir de então passaram a ser considerados ruins, incapazes para o trabalho livre (GONZALEZ, 2020, p. 266)

Embora a luta dos escravizados tenha sido importante para o fim da escravidão, nesta citação acima Gonzalez salienta como abolição da escravatura, da maneira que foi realizada, não resolveu o problema da população negra, já que no 14 de maio os negros, agora livres, não tinham o que fazer e foram integrados de forma marginal ao mercado de trabalho. Agora livres juridicamente, os negros continuavam em condições desumanas. Não à toa, Clóvis Moura considera que a abolição da escravatura foi um acordo de setores da classe dominante para uma transição pacífica e sem mudança social.

A construção do Negro como Mau Cidadão 

A marginalização do negro não ocorreu por acaso: foi planejada ainda na primeira metade do século XIX. Clóvis Moura, ao descrever o processo de decomposição do escravismo tardio e o advento do trabalho livre no Brasil, aponta medidas modulares que foram construídas para a constituição de um Brasil capitalista, cristão e branco. Tais medidas foram criadas para marginalização e extermínio da população negra, sendo elas a Tarifa Alves Branco de 1844; a Lei da Terra de 1850; a lei Eusébio de Queirós de 1850; a guerra do Paraguai que durou de 1865 até 1870 e a política “imigrantista”.

Essas medidas foram essenciais para que houvesse uma transição para a sociedade capitalista sem que as relações da sociedade escravista fossem alteradas e que o negro, agora livre, pudesse ser responsabilizado pelo seu desemprego, analfabetismo, encarceramento, mortes e pela falta de ascensão social no contexto capitalista. Algumas destas medidas funcionaram como mecanismos de interdição social, impossibilitando que os negros pudessem ascender socialmente. As principais foram a Lei da terra, que construiu uma massa de negros livres sem acesso às terras e preservou os latifúndios dos senhores de escravos e a política imigrantista que trouxe uma massa de trabalhadores de outros países, especialmente da Itália, para se tornarem trabalhadores assalariados aqui no Brasil e, com isso, excluir do negro qualquer possibilidade de ascensão social.

Esse processo de transformação do negro em “mau cidadão” na passagem da sociedade escravista para a capitalista é muito bem descrito na música 14 de maio, de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal:

No dia 14 de maio, eu saí por aí

Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir

Levando a senzala na alma, eu subi a favela

Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia

Um dia com fome, no outro sem o que comer

Sem nome, sem identidade, sem fotografia

O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver

Este trecho é uma boa síntese do que foi o dia 14 de maio de 1888, o dia que nunca acabou para a população negra. Já que desde então a vida dessa parcela da população tem sido de luta incansável para sobreviver à superexploração, violência policial nas comunidades e a miséria que é fruto do capitalismo dependente brasileiro.

Se os negros antes da abolição eram vistos como bons escravos, doceis e obedientes, agora na sociedade capitalista, os negros são vistos como cidadãos de péssima qualidade. Preguiçosos – por isso pobres, pessoas com desvio de caráter e que por isso lotam as prisões e precisam morrer na mão da polícia.

 

A luta Radical Por uma Verdadeira Abolição

Vivemos em um período histórico em que o debate racial ganha destaque em diversos âmbitos sociais. Uma conquista do movimento negro brasileiro que colocou a questão do racismo na agenda política do país. Apesar disso, o debate na maioria das vezes é esvaziado, sem levar em conta a raiz do problema. É necessário, para aqueles querem um mundo em que não haja racismo, uma luta radical para a emancipação coletiva de todos os oprimidos e explorados pelo capitalismo.

Uma das questões centrais do 13 de maio é a ideia de que a libertação da população negra ocorreu pela boa vontade da classe dominante e não pela luta dos escravizados, ocultando a luta de diversas figuras, como a de Zumbi e Dandara dos Palmares e ajudando a construir o mito de passividade dos negros brasileiros.

Os questionamentos sobre o 13 de maio e apontamentos dos limites da lei áurea são fundamentais, assim como o resgate das rebeliões e daqueles que lutaram para a construção de um Brasil livre da exploração e opressão, pois, como demonstra a história da própria resistência negra: a liberdade não é uma dádiva, mas sim uma conquista coletiva.

Neste sentido, não há outro caminho para o movimento negro se não o da luta radical contra o capitalismo e da construção do socialismo.

 

Referências 

FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. v. 1. São Paulo: Globo, 2008.

GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos Rio Janeiro: Zahar. 2020.

MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014.

MOURA, C. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992.

MOURA, C. O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão? São Paulo: Dandara, 2021.

 

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