Por João Coimbra
No dia 29 de agosto deste ano, a Lei de Cotas completará dez anos. O aniversário, em lugar de uma comemoração de uma conquista de direitos sociais da classe trabalhadora, marca o prazo final de sua vigência pacífica: o artigo 7° desta lei prevê uma “revisão do programa especial” para estudantes negros, pardos, indígenas e egressos de escolas públicas.
É importante lembrar que o estabelecimento de leis com “prazo de validade” não é algo incomum no Ordenamento Jurídico Brasileiro (conjunto de leis, regulamentos, decisões dos tribunais, etc.), já que uma lei pode ser promulgada para resolução de um problema específico; quando resolvido o problema, já não há mais necessidade para a lei. Via de regra, em tais situações, a lei trará consigo uma cláusula, um dispositivo legal, que descreva com detalhes os “comos” e “quandos” da sua revogação.
Quanto à Lei de Cotas, o dispositivo legal que prevê o prazo de “revisão” não estabelece nada além desta palavra. Não determina, nem mesmo com projeções ou estimativas, de que forma poderíamos compreender se a Lei de Cotas conseguiu “resolver” o problema, ou o quão perto ou longe estaria do fim deste problema. (Um adendo relevante: até o 2016, a Lei de Cotas previa que o Poder Executivo seria o responsável pela tal “revisão”, mas o artigo 7° foi derrogado por Michel Temer, que excluiu as palavras “O Poder Executivo promoverá”, deixando o dispositivo ainda mais vago e incerto).
E então, qual seria o problema que a Lei de Cotas tenta “resolver”? Antes de tentarmos responder a esta pergunta, vamos considerar os seguintes pontos.
Primeiro, consideremos que o debate de raça no Brasil está, há mais de um século, limitado entre as concepções de democracia racial e sua contraparte, a dívida histórica.
Segundo, consideremos que há uma crescente aceitação social quanto ao termo Racismo Estrutural; no entanto, a expressão tem servido menos para iniciar discussões sobre raça, e mais como uma resposta lacônica que “explica sem explicar” o racismo brasileiro.
E terceiro, este é um ponto um tanto mais complexo, consideremos que o racismo não é um problema teórico, mas uma ferramenta de controle político, viva e ativa como sempre esteve.
Discutamos brevemente estes pontos, um a um.
Democracia racial já foi uma terminologia usada a sério no Brasil durante a segunda metade do século XX. A ideia corresponde a um hábito de raciocínio chamado de “progressismo”, por imaginar que a simples passagem dos anos seria capaz de levar uma sociedade a um nível mais elevado de progresso social (frases como “não acredito que em 2022 ainda exista gente que…” são exemplos comuns do que falamos). Assim, o Brasil seria uma “democracia racial” por estar “muito longe” do seu “passado escravista”, onde vidas não seriam mais determinadas por raça: pessoas brancas, negras e indígenas teriam assim igualdade de oportunidades. Sabemos que nada disso é verdade.
No entanto, há várias nuances da ideia de democracia racial que ainda perduram no imaginário popular, e principalmente no discurso político progressista: em particular, a ideia de dívida histórica. O raciocínio que se segue é que “algo” aconteceu no passado e precisa ser compensado. Quatrocentos anos de escravidão e extermínio de negros e indígenas foram esse “algo”. Por dívida histórica se compreende, portanto, que esse “algo” ficou no passado; se trata de um problema quantificável, limitado, com fronteiras bem determinadas entre todos os outros acontecimentos históricos. Tal qual um boleto bancário, a dívida histórica estabelece com precisão e liquidez o quanto se deve e para quem se deve. E, sendo uma dívida, ela pode ser paga.
A compreensão de dívida histórica é constantemente levantada na discussão de ações afirmativas raciais no Brasil. Entende-se como um “dever” da sociedade para “corrigir” os erros e violências do passado e conferir equidade na correção de vestibulares e seletivos públicos. Nesta primeira perspectiva, a Lei de Cotas teria como objetivo final (ainda que inconscientemente) o estabelecimento da tal democracia racial, por meio do “pagamento” da dívida histórica, de forma gradual e progressiva.
É nesse sentido que o deputado federal Paulo Paim, do Partido dos Trabalhadores, compreende a “revisão” prevista na Lei de Cotas: enquanto a presença universitária de negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda não for igual ou superior à sua presença demográfica nos censos federais, a Lei de Cotas deverá ser renovada por mais dez anos; e, quando as porcentagens coincidirem, a lei deverá ser mantida por mais cinco anos. Seu projeto de lei está parado no Senado Federal.
Mas seria esse o alcance total do problema? Seria o racismo algo superável pela presença equivalente de pessoas racializadas na universidade? A continuação do raciocínio progressista dirá que não, que a presença, por exemplo, de pessoas negras na universidade é uma etapa necessária para a construção de uma “classe média negra”.
Neste ponto, avancemos para nossa consideração número dois: o racismo estrutural. Terminologia recente, que não transitava no vocabulário popular durante as discussões de cotas raciais entre 2002 e 2012, a compreensão coletiva de “racismo estrutural” ainda deixa muito a desejar. De fato, a expressão se refere à capacidade histórica de dominação social que o racismo possui. Muito antes de ser um mero preconceito entre partes, o racismo estrutural aponta para a sociedade brasileira e mostra que todas as suas construções foram edificadas sobre corpos de negros e indígenas.
Infelizmente, a forma como a terminologia tem sido corriqueiramente usada não é esta. Fala-se de racismo estrutural, mas somente quando “a estrutura” é deixada de lado na crítica. O que se observa é o uso da expressão para amenizar – ou desculpar completamente – falas, opiniões, ações ou decisões racistas como uma justificativa de que “não houve racismo intencional, afinal de contas o racismo é estrutural”. A terminologia, dessa forma, não tem servido para discutir o racismo, denunciar o racista, ou apontar um caminho para superação do racismo: pelo contrário, culpa-se uma estrutura sem nome, promete-se aprendizado e que “errar é humano, afinal somos todos humanos”.
O irônico é a compreensão de racismo estrutural nos levar a entender que nem todos nós, seres humanos, temos o direito de sermos reconhecidos como tal. O Racismo é uma tecnologia de dominação historicamente utilizada para justificar genocídios e escravização para fora da Europa, por conta da compreensão errônea de que negros e indígenas não eram (completamente) humanos. Falar de racismo estrutural, hoje, é compreender que essa tecnologia social ainda está entre nós e serve aos interesses do capitalismo, que é o nome da estrutura.
É neste ponto que um dos argumentos mais marcantes sobre a importância da Lei de Cotas, especificamente sobre o povo negro, se esbarra na compreensão de racismo estrutural: a construção de uma classe média negra brasileira. O argumento, muito difundido no período descrito acima, vinha em encontro da lógica de construção de uma “democracia racial” por meio do pagamento da “dívida histórica”: lenta e gradualmente, os cotistas beneficiados pelas ações afirmativas conquistariam melhores posições no mercado de trabalho, graças aos seus diplomas; constituiriam famílias negras com melhores condições econômicas; e, uma geração depois, seus filhos estariam melhor preparados para competir com as crianças brancas.
Este argumento existiu, e muitos de nós não vimos o racismo explícito desse raciocínio. A ideia da construção de uma “classe média negra” como condição sine qua non da superação do racismo é um vaticínio da desumanização da pessoa negra. Esta perspectiva reducionista e economicista aceita e busca se adequar ao racismo estrutural, sacrificando a grande maioria de negros que vivem no hoje, em nome dos poucos negros desfavelados do amanhã.
Mais ainda, o argumento “filhos da classe média” conta com o preparo intelectual dessa nova juventude negra, qual à geração anterior foi negado, para que o contínuo progresso da sociedade brasileira pudesse contar com teóricos e organizadores políticos mais habilidosos para a luta antirracista. O autor desse texto, negro nascido na dita classe média, poderia ser aludido como um exemplo que corrobora com esta linha de raciocínio…
Entretanto, para responder a este apontamento, é preciso chegarmos à nossa terceira e última consideração: o racismo não é somente um problema teórico, mas uma ferramenta de controle político. Significa dizer que compreender a educação superior como mera preparação profissional, mera forma de acesso privilegiado ao mercado de trabalho, já é uma compreensão da educação sob um viés político conservador, disfarçada de realismo.
Em verdade, as discussões sobre racismo estrutural, muitas vezes por sofrerem de reducionismo econômico, esquecem ou ignoram o caráter ideológico da desumanização de pessoas negras e indígenas. Pessoas racializadas têm constantemente seus discursos policiados, empregos negados ou retirados, produções científicas e artísticas desmerecidas e até mesmo criminalizadas, quando estes não se adequam à lógica capitalista do racismo estrutural.
No contexto em que nós estamos de encarceramento em massa, violência policial, ultra-exploração dos trabalhadores negros, etnocídio indígena, todos esses fatores existem concomitantemente ao problema de acesso à educação superior. O argumento de que as ações afirmativas são uma forma de compensar uma dívida histórica é terrivelmente contraditório, porque o modelo de vestibular acaba por excluir pessoas racializadas quais não atendam as expectativas quanto a um universitário: jovem, inteligente, motivado, agradecido. Ou seja, talentoso e submisso.
Desta forma, o racismo exerce seu controle ideológico a partir de uma política de representatividade no que tange à “classe média negra” criada pela política de cotas, que se refere a um grupo especial de negros qual se provou capaz de obedecer burocracias, agradar professores, conviver sem maiores problemas num país onde falar de raça já conta como um problema.
As considerações apresentadas neste artigo não pretendem desmerecer a disputa política de décadas que se traça nesse país, lutadores quais foram vitoriosos no estabelecimento de uma política de ações afirmativas que modificou a vida de tantos trabalhadores racializados do nosso país. Pelo contrário, o artigo apresenta questionamentos que têm como objetivo aprimorar e consolidar o planejamento de políticas públicas – bem como apontar as limitações do antirracismo na democracia burguesa.
A disputa no poder legislativo, além do projeto do deputado Paulo Paim, conta com os projetos de lei da deputada petista Maria do Rosário e do deputado apologista do nazismo, Kim Kataguiri. Rosário procura tornar a reserva de vagas lei permanente, com o acréscimo de um serviço de assistência estudantil a nível federal. Kataguiri, em plena oposição ao caráter antirracista da Lei de Cotas, entende que a lei é “inconstitucional”, uma “discriminação positiva” que “não faz o menor sentido”, porque “a pobreza atinge negros e brancos”, propondo uma derrogação de toda referência a negros e indígenas. Conhecemos o deputado Kataguiri e sua verdadeira motivação, refutá-lo não vale a tinta no papel ou a bateria do seu celular.
Por fim, pontuemos que o dispositivo dos dez anos da Lei de Cotas e a palavra “revisar”, certamente, se trata de um acordo, uma condição que possibilitou sua promulgação precisamente por ser aberto, confuso, relegado à interpretação de má-fé de um político direitista de ocasião. Fica a lição de que, como ensinou o teórico negro marxista C.L.R. James, “Na política, todos os termos abstratos escondem em si uma traição”.