Cidades Inteligentes: uma reflexão sobre contradições e possibilidades do debate

Por Cristiano Ferraz

O termo Cidade Inteligente, do inglês Smart City, surgiu na década de 1990 em meio ao debate sobre a integração das Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs ao planejamento urbano em grandes cidades do núcleo orgânico do capitalismo. A denominação passou a ser utilizada também por grandes empresas de tecnologia como IBM e Siemens ao tratar da aplicação dos seus produtos na infraestrutura e serviços urbanos. O termo surge também saturado por conteúdos técnicos, conceituais e ideológicos do momento em que a reestruturação produtiva do capital se encontrava naquela década. Naquele momento, Smart City seria a cidade em que a aplicação das TICs em estruturas urbanas possibilitasse um ambiente mais favorável ao processo contemporâneo de reprodução ampliada do capital, ao desenvolvimento dos negócios em geral, especialmente na área de tecnologia.

A denominação Cidade Inteligente surgiu inicialmente integrada a visão capitalista de que uma cidade eficiente é aquela que se apresenta como um “produto” que dá sinergia à competitividade econômica. Este horizonte predominou nos iniciais sobre o tema. No entanto, à ideia inicial de Smart City como cidade competitiva, novas nuances foram acrescentadas. Educação, meio ambiente, qualidade de vida e mudanças na relação entre administração pública e os habitantes da cidade foram os temas mais destacados que se somaram à problemática inicial. Pode-se afirmar então que toda inovação que o debate sobre cidades inteligentes inicialmente possibilitou para se pensar a questão urbana nasceu capturada pela lógica do capital, mas também desenvolvia contradições com a realização dos objetivos propostos. Ao longo dos anos, principalmente nas últimas duas décadas, o conceito passou também a ser associado ao uso das TICs para construção de uma cidade “mais humana”, social e ambientalmente “sustentável”, para usar uma expressão corrente nas obras atuais que tratam do tema. Percebe-se que as contradições entre o que o conceito propõe e suas possibilidades de realização se acentuaram.

As relações entre a população e as instituições públicas, suas demandas e possibilidades de atendimento, passaram também a ocupar um lugar central no debate contemporâneo sobre Cidades Inteligentes, no Brasil e no mundo. Estado, sociedade civil e democracia passaram a ser expressões muito presentes neste debate. No entanto, são tratados como se fossem conceitos unívocos e como se houvesse um consenso teórico nos diversos estudos que se reportam a eles. Todavia, predomina nestes estudos o entendimento da população e suas demandas nas cidades como algo genérico, na perspectiva liberal de entender a população como um ajuntamento de indivíduos com direitos iguais e horizontes também iguais de atendimento destes direitos, algo que a realidade concreta contesta.

Na perspectiva liberal, que predomina no debate sobre Cidades Inteligentes, o Estado se apresenta tendencialmente como uma entidade neutra e cujos problemas se localizam sempre na falta de eficiência de suas estruturas, na gestão de recursos, nos problemas decorrentes da burocracia e corrupção. Seja na sociedade civil, seja no Estado entendido como Executivo, Legislativo e Judiciário, o caráter classista presente nos processos históricos que se entremeiam com essas estruturas não é considerado, ma, ocultado pelo próprio efeito de isolamento que caracteriza a ideologia burguesa. No entanto, mesmo que a problemática das classes sociais passe longe do campo teórico que predomina no debate sobre Estado e democracia, em detrimento de uma ideia da sociedade como um ajuntamento de indivíduos com interesses isolados, não existe sequer um desenvolvimento teórico mais preciso para desvelar a diversidade, interesses políticos e relações de poder presentes no que se denomina genericamente por “população”. Esta é uma lacuna importante que resulta da problemática teórica liberal que, pela sua natureza, oculta as contradições presentes nas cidades, o caráter classista dos Governos e do Estado e a impermeabilidade das instituições aos interesses dos setores populares presentes no território.

Não abordaremos aqui o problema das classes sociais e sua relação com o Estado, pois no campo marxista este é um tema conhecido. A questão que procuramos destacar neste debate sobre Cidades Inteligentes é que a análise sobre o desenvolvimento de uma “cidade mais humana”, bem como sobre a eficiência e ineficiência das instituições estatais no uso dos recursos na administração pública é um exercício prejudicado em sua origem, pois as relações de poder que definem as estruturas de Governo e a atuação Estado frente às necessidades da população são ignoradas. As relações de poder e sua materialização na esfera da hegemonia caracterizam, inclusive, o que se pode entender por eficiência ou ineficiência das instituições e na gestão dos recursos. Decorrem daí outros problemas como, por exemplo, saber se é possível aperfeiçoar continuamente as instituições e as formas de relação destas com as demandas da população em direção a uma “sociedade mais humana”, tendo em vista a própria natureza do Governo e do Estado capitalistas. No entanto, apesar da importância do tema e das contradições que suscita, os marxistas não têm se ocupado adequadamente da questão, para dizer o mínimo. Esta lacuna tem consequências políticas sérias, pois, a centralidade da discussão teórica e aplicada sobre o uso das TICs com vistas a mudar a relação dos trabalhadores com a cidade continuaria pautada pela matriz liberal, na ótica do capital.

Compreendemos que o termo de Cidades Inteligentes, embora tenha nascido capturado pela ótica do capital, nos abre possibilidades importantes para o debate sobre os rumos da cidade e sobre a constituição do poder popular. O termo merece nossa atenção, pois, é uma contradição em si ao se revelar incompatível com a ótica do capital, caso usemos o conceito em uma expressão radical do que ele mesmo propõe.

Assim, uma cidade só pode ser considerada “mais humana” e “inteligente” em uma perspectiva anti-capitalista. Isso se dá somente caso o uso das TICs em suas estruturas crie possibilidades para o desenvolvimento de um modo de vida mais avançado, no sentido de ampliação das possibilidades de construção de uma democracia radical, tanto na produção de diagnósticos sobre as contradições concretas presentes na cidade, como na construção de instâncias que possibilitem a efetiva participação popular na definição dos rumos da cidade. Em outros termos, como uma cidade pode ser inteligente se preserva a lógica de destruição do meio ambiente à custa do lucro? Como uma cidade pode ser inteligente se preserva o modo de vida que garante os fundamentos da desigualdade social? Como uma cidade pode ser inteligente sendo excludente?

Em suma, faz-se necessário questionar a própria caracterização de “inteligente” presente neste debate e desvelar as raízes das contradições que envolve a relação entre capitalismo e realização dos potenciais anunciados pelo conceito corrente de Cidade Inteligente. Por hora, é suficiente demarcar que uma sociedade que não discuta e formule radicalmente formas de superação dessas contradições não pode, a rigor, ser chamada de Inteligente. Conclui-se então que a ideia de Cidade Inteligente é incompatível com a lógica do capital e deve ser reapropriada pelos comunistas com vistas à retificação do próprio conceito à luz da problemática teórica que envolva a construção do poder popular e o enfrentamento das contradições presentes na sociedade burguesa. As polêmicas e contradições que este debate apresenta merecem a nossa atenção e apresentam ricas possibilidades de ocupação do debate político.

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