Por Manuella Logrado
Em 8 de novembro de 2021, o cidadão baiano que tem a travessia para a Ilha de Itaparica em sua rotina deparou-se com a desagradável notícia do aumento do valor da passagem do ferryboat, o principal meio de locomoção da população para a Ilha. O reajuste no percentual de 10,72% no preço da passagem impactará diretamente na vida dos trabalhadores que, neste momento de grave crise econômica, terão que arcar com o aumento tarifário para exercer suas atividades diárias.
Com o referido reajuste, aplicado a partir de 8/11/2021, os pedestres viram a tarifa saltando de R$5,50 para R$5,60 de segunda a sexta, além de um aumento em finais de semana e feriados ainda mais expressivo, passando de R$6,70 para R$7,40. Os veículos também foram afetados pelo aumento, sendo que para os de pequeno porte a tarifa de segunda a sexta passou de R$45,70 para R$50,60, e em finais de semana e feriados o preço passou de R$64,70 para R$71,70. Os veículos grandes tiveram reajuste de R$58,40 para R$64,70 de segunda a sexta, e de R$82,50 para R$91,40 em finais de semana e feriados.
A Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (AGERBA) alega que o reajuste no preço das passagens se deu em face do aumento do preço do diesel marítimo, combustível utilizado pelas embarcações que fazem a travessia para a Ilha de Itaparica. Mas, na prática, o ônus do aumento que recai sobre a classe trabalhadora não se converte em nenhuma melhoria na prestação do serviço público, que, desde a sua origem, é precário e defasado, recebendo críticas da população já a partir da sua inauguração em 1972.
A Ilha de Itaparica, por conta da proximidade com Salvador, é historicamente uma zona de interesse da capital, abarcando um grande fluxo diário de pessoas em função de trabalho e estudos. Nesse sentido, é importante observar o baixo desenvolvimento econômico devido ao pouco investimento público na Ilha, que, encarada pelo Estado apenas como local de lazer, tem desconsiderado por completo o cotidiano da população que ali reside e que, muitas vezes, tem suas atividades econômicas e acadêmicas vinculadas à capital.
O serviço de ferryboat, que faz a travessia para a Ilha, deveria ser uma alternativa segura e de fácil acesso aos trabalhadores; porém, a realidade que permeia o sistema hidroviário de locomoção da Bahia se afasta muito da prestação de um serviço adequado, sendo território de disputa política e econômica que apenas degrada o serviço com o passar dos anos, considerando que este opera através de contratos de concessão de uso – por sua vez, com um longo histórico de problemas.
No período de 2006 a 2013, o serviço de travessias do ferryboat operou através de contrato de concessão firmado com a empresa TWB. Durante os conturbados anos de contrato, havia um diálogo confuso entre a empresa concessionária e o Estado. Enquanto o número de usuários do serviço crescia ao longo dos anos, o valor arrecadado sequer era convertido para melhorias no transporte e aumento da frota, que, inclusive, por diversas vezes operou defasada, gerando filas imensas e dificultando a locomoção da população no acesso à Ilha de Itaparica.
Quando há concessão de serviços para uso, como é o caso do ferryboat, a empresa concessionária se compromete à realização de um aporte financeiro para investimento no serviço. Contudo, foi sob a motivação de que a empresa TWB devia R$6 milhões ao Governo do Estado da Bahia que se instaurou o processo administrativo, levando ao encerramento do contrato de concessão.
Nesse contexto de completo caos, a empresa Internacional Travessias assumiu o serviço através de contrato temporário no ano de 2013, e logo em seguida firmou contrato definitivo de concessão pelo período de 25 anos, sendo a única empresa interessada no processo licitatório para a qual ofertou o menor aporte de investimento do edital, na quantia de R$5 milhões. Como única concorrente, a empresa estabeleceu suas diretrizes na prestação do serviço e o valor mais baixo de investimento, e como sempre, o ônus da precariedade recaiu sobre os ombros da população que necessita do ferry em sua rotina.
Assim, a empresa explora o serviço e as embarcações do Estado no contrato de concessão, mas acaba por não fazer os investimentos necessários na sua melhoria. Estas melhorias precisam ir desde a qualidade dos assentos e instalações, estando o Terminal Marítimo de Salvador em condições lamentáveis, até a quantidade de embarcações e viagens realizadas por dia, uma vez que estas não acompanham o intenso fluxo de pessoas, que se acumulam em filas intermináveis para conseguir fazer a travessia.
Estima-se que o sistema ferryboat na Bahia atenda cerca de 15 mil pessoas por dia, sendo que em períodos de alta demanda, o serviço pode chegar a atravessar mais de 45 mil pessoas e 6 mil veículos ao dia, o que, em um dia de baixa estação, contabilizando-se a tarifa antes do aumento atual, chegaria em um faturamento diário de R$3,1 milhões por dia. Não é demais salientar que em dois dias regulares, o faturamento do ferryboat já seria suficiente para cobrir o aporte financeiro de R$5 milhões ofertado pela concessionária Internacional Travessias no contrato licitatório.
Apesar da alta rotatividade e lucratividade na prestação do serviço de ferryboat, este nunca recebe investimentos, existindo uma inércia do Estado e da concessionária – que embolsa altos valores diariamente. A precariedade da prestação do serviço é um assunto tão antigo no Estado da Bahia, que tornou-se alvo de inquérito instaurado pelo Ministério Público no ano de 2018, para apurar as irregularidades no serviço. Na oportunidade, vários especialistas manifestaram-se no sentido de pontuar o grave problema operacional do Ferryboat: poucas e lentas embarcações, além da ausência das manutenções necessárias que fazem com que, por diversas vezes, a pequena frota opere com capacidade ainda menor do que a sua disposição.
Se de um lado o alto lucro obtido pela concessionária não se converte em benefício ao usuário do serviço, também existe do outro o Estado da Bahia, que em nada se movimenta para a melhoria operacional do sistema, no sentido de investimento para o aumento da frota e em embarcações mais modernas e ágeis, que diminuiriam o tempo de deslocamento na travessia e, por consequência, impactaria na redução das imensas filas de espera e da situação de superlotação.
Conforme o site da empresa responsável, atualmente operam 7 embarcações na travessia, sendo elas: Zumbi dos Palmares, Pinheiro, Ivete Sangalo, Rio Paraguaçu, Anna Nery, Dorival Caymmi e Maria Bethânia. Desde as primeiras embarcações, o problema operacional se perpetua, uma vez que todas são extremamente lentas e se encontram em estado de sucateamento ante a ausência das manutenções regulares necessárias.
Com a inércia do Estado em adquirir novas embarcações, especialistas enunciaram no bojo do inquérito instaurado pelo Ministério Público, que uma solução paliativa poderia ser o aluguel de embarcações por parte da concessionária. Esse imenso cabo de guerra entre o Estado da Bahia e a Concessionária implica na inércia de ambos, no embolso de altas quantias da concessão do serviço pela iniciativa privada e em um sucateamento proposital do sistema hidroviário baiano, sendo este o grande argumento utilizado pelo governo burgo-petista de Rui Costa para firmar o contrato da ponte Salvador- Itaparica.
O projeto de uma ponte que ligasse Salvador à Ilha de Itaparica é antigo, e ganhou força na ideia de que o sistema de ferryboat não consegue dar conta do fluxo de pessoas na travessia. Assim, parece proposital o sucateamento do sistema hidroviário para fomentar a construção da ponte, que teve seu contrato assinado este ano com 3 empresas chinesas que irão explorar o serviço pelo período de 35 anos, sendo 5 anos dedicados à construção da ponte.
Um ponto que chama muito a atenção é o fato de que o Governo da Bahia entrará com o aporte financeiro de R$1,5 bilhões para a construção da ponte, que tem previsão de conclusão para o período de 5 anos, mas não investe devidamente na melhoria de um serviço que já existe e é ofertado no agora para a população baiana. O grande interesse na construção da ponte – que teve sobrepreço constatado pelo Tribunal de Contas do Estado da Bahia – desvela que toda a movimentação de sucateamento do ferryboat e construção da ponte diz respeito ao proveito econômico e a manobras com o dinheiro público, não havendo qualquer preocupação com a população, que continua se abarrotando num serviço precário de transporte, e agora com tarifa ainda mais cara.
Assim, o cidadão baiano assiste à precarização do sistema hidroviário e ao aumento das tarifas sem que haja qualquer melhoria nos terminais marítimos, sem que haja aumento das frotas ou até mesmo aluguéis de embarcações, e sem que elas tenham a manutenção devida, sendo este um processo de precarização do serviço que se estende a todo sistema hidroviário, comportando também as lanchas rápidas e os catamarans que fazem a travessia para Mar Grande como uma outra opção frente ao ferryboat.
As alternativas ao sistema ferryboat padecem do mesmo mal do sistema principal: a precarização das embarcações e a ausência de manutenção devida. Não é demais registrar que, no ano de 2017, confirmando a situação de calamidade do sistema hidroviário, a embarcação Cavalo Marinho I naufragou na Travessia Salvador – Mar Grande, levando a óbito 19 pessoas. Tratada como tragédia e caso fortuito pela mídia, o naufrágio foi, em verdade, o grande retrato de um descaso que se acumula por décadas na prestação do serviço de travessia.
Entre interesses políticos e a alta lucratividade do necessário serviço de travessia realizado pelos ferryboats, há em vigor, paulatinamente sucateamento e precarização, que coloca a classe trabalhadora entre o desconforto, a dignidade tolhida e o risco de vida, imputando o ônus de uma aumento tarifário que não se converte em qualquer melhoria no plano prático, e que evidencia que o governo petista na Bahia, em muito, se afasta do interesse e da proteção da população, cuidando exclusivamente das vantagens da iniciativa privada, que segue dando primazia ao lucro em detrimento da vida.