Por Camila Oliver
Atacaram a Dignidade Humana: Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 – A Campanha da Fraternidade é realizada anualmente pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no período da Quaresma, com o objetivo de despertar a solidariedade em relação aos problemas da realidade concreta da sociedade brasileira, analisando a conjuntura e apontando possibilidades de solução.
Idealizada por três padres responsáveis pela Caritas Brasileira, a primeira Campanha da Fraternidade foi realizada em 1962, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, com o objetivo de arrecadar fundos para atividades assistenciais. Mesmo sem êxito financeiro em sua edição inicial, no ano seguinte a campanha foi acolhida por mais dezesseis dioceses do Nordeste e, de maneira nacional, em 1964. Em 1970, recebeu apoio do Papa Paulo VI.
Desta maneira, a coleta de solidariedade realizada no Domingo de Ramos cresceu e hoje a arrecadação compõe o Fundo Nacional de Solidariedade e os Fundos Diocesanos de Solidariedade, sendo revertida para o apoio a diversos projetos sociais.
No ano 2000, deu-se início à Campanha da Fraternidade Ecumênica. A iniciativa congrega denominações cristãs diversas, organizadas no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC e tem sido realizada a cada 5 anos, abordando temas como: “Dignidade Humana e Paz”; “Solidariedade e Paz”; “Economia e Vida”; “Saneamento Básico e Meio Ambiente”.
A Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 trouxe como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e o seu lema foi o texto bíblico “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef. 2.14). Inspirada nesse versículo, a campanha deste ano tem como objetivos: denunciar as violências contra pessoas, povos e o meio ambiente, em especial, as que usam o nome de Jesus; encorajar a justiça para a restauração da dignidade das pessoas, para a superação de conflitos e para alcançar a reconciliação social; animar o engajamento em ações concretas de amor à pessoa próxima; promover a conversão para a cultura do amor em lugar da cultura do ódio; fortalecer e celebrar a convivência ecumênica e inter-religiosa.
Para tanto, o texto base desta campanha é um texto em defesa da vida, opondo-se ao negacionismo do governo no que tange à COVID-19 e à Ciência, referendado por algumas igrejas cristãs que mantiveram as suas portas abertas, sujeitando a sua membresia aos riscos de contaminação. Além disso, o texto aponta a necessidade de medidas urgentes no enfrentamento à pandemia, ressaltando o número de mortes crescentes. Convida as ditas minorias a unirem-se “quebrando a farsa de um sistema” que nos quer divididos e, nesse sentido, denuncia o aumento da violência contra as mulheres, a população negra, indígena, quilombola, imigrantes, LGBTQIA+, ativistas dos direitos humanos. E assinala o uso do fundamentalismo religioso cristão (intolerância religiosa) contra os povos tradicionais para que os seus territórios sejam tomados pelo grande capital. Por fim, o texto apresenta práticas concretas de igrejas que se colocam no enfrentamento a essas violências.
Contudo, lançada na quarta-feira, 17/02/2021, a Campanha da Fraternidade Ecumênica bem como as pessoas que compõem a coordenação do CONIC (Pr. Inácio Lemke, presidente; Rev. Anita Wright, vice-presidenta; e Prª Romi Bencke, secretária executiva), vêm sofrendo fortes ataques e ameaças em redes sociais, principalmente pela ala mais conservadora da igreja católica, que entende o texto-base como “progressista demais”, carregado de heresias e “ideologia de gênero”.
As ofensivas destes grupos fundamentalistas, em grande parte de alguma maneira ligados ao governo Bolsonaro, tais quais o Centro Dom Bosco, o Serviço de Assistência Religiosa das Forças Armadas e Auxiliares, são ligadas, principalmente, às chamadas pautas morais: “…a quaresma católica, não é espaço para se dialogar temas polêmicos e contrários à autêntica doutrina da nossa Igreja […] o percentual da nossa coleta não será enviado e sim, real e efetivamente, empregado no socorro aos pobres…” (Instagram do Centro Dom Bosco citando carta do Arcebispo Ordinário Militar do Brasil). Além destes, vociferaram em seus canais de televisão pastores como Silas Malafaia, adjetivando a composição do CONIC de “esquerdopata”, e uma juventude coberta dos arroubos morais da burguesia que em seus canais de youtube e suas redes sociais promoveram um verdadeiro linchamento direcionado, de maneira especial, à figura da pastora Romi Bencke, como se esta fosse a única responsável pela escrita do texto.
Há muito o que se discutir neste episódio. Quando a doutrina de uma igreja é maior do que a vida, quando estas igrejas escolhem os “seus próprios pobres”, há muito o que se pensar sobre a responsabilidade social e política das igrejas. Foi esta mesma “linha hermenêutica” que respaldou a invasão do Brasil, o genocídio dos povos indígenas, a escravidão dos povos de África e vem respaldando historicamente toda a estrutura patriarcal do capitalismo e, atualmente, respalda o governo ultraliberal, genocida, misógino, racista, LGBTQIfóbico de Bolsonaro.
Um outro ponto importante sobre este texto-base é que, ao apresentar as práticas concretas das igrejas que compõem o CONIC, tira da invisibilidade as igrejas que caminham em contraponto com as organizações religiosas ávidas pelos lugares de poder, ao mesmo tempo em que justificam as opressões contra a classe trabalhadora. Assim, é importante que se diga que este texto-base não foi escrito por uma única pessoa ou instituição: foi escrito por representantes do conjunto das igrejas que participam do CONIC.
Como citou a pastora Romi Bencke, em entrevista à Folha de São Paulo, publicada no dia 17/02/2021, “O argumento da campanha atual é criação de um grupo que incluiu um cientista social, uma doutoranda em semiótica, um doutor em línguas vernáculas e uma teóloga feminista… Depois de formulado, foi discutido e aprovado por dois líderes católicos, um da Igreja Ortodoxa e seis evangélicos, sobretudo de igrejas protestantes históricas (só há uma pentecostal)”. Portanto, nada tem de herege ou de unilateral, é um texto construído em um diálogo entre uma diversidade de igrejas; sob a análise do texto bíblico em seu contexto histórico, social, econômico e político, em diálogo com a conjuntura do nosso país, como aponta o tema: “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”.
Por fim, revelo aqui que sou uma das integrantes deste grupo que escreveu o texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. Sou a “doutoranda em semiótica” (naquele momento de escrita concluía o doutorado) citada na entrevista do parágrafo anterior. E causa-me orgulho que o argumento deste texto tenha causado tamanho incomodo nas estruturas acostumadas a referendar os ataques à classe trabalhadora, a oprimir ainda mais os oprimidos e a justificar todas as mazelas sociais em nome de Deus. Fico com o trecho final da carta de apoio da Aliança de Batistas do Brasil ao CONIC e à Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021: “Por isso nos causa orgulho e não pesar, que no nosso texto-base da CFE-2021, pessoas e grupos vulnerabilizados em nosso tempo atual sejam mencionados: LGBTQIA+, a juventude negra vítima da violência e do racismo estrutural, das mulheres vítimas da misoginia, expressa de forma explícita através do feminicídio, etc. Afinal de contas, o que adiantaria termos como tema ‘Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor’ e o lema ‘Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade’ (Ef. 2.14) se não fosse para levar isso às últimas consequências? As palavras e o exemplo radical de nosso Mestre exige sempre isso de cada um de nós”.
Trabalhadores do mundo, religiosos ou não, uni-vos em defesa da fraternidade e da dignidade humana!
Belo texto! Parabéns.