As consequências práticas da determinação social do processo saúde-doença

Por Rômulo Caires

 

Um dos ensinamentos mais importantes legados pelos comunistas desde o século XIX é a necessidade de articular a produção teórica com suas consequências organizativas e práticas. Para um comunista não basta pensar os vínculos internos de uma ideia, mas fundamentalmente é preciso pensar nas formas como uma ideia se torna força material. Numa mesma direção, é também necessário investigar o chão histórico em que determinadas ideias emergem.

Quando falamos em saúde estamos nomeando uma concepção que não é homogênea, que varia historicamente e que baliza diferentes formas de organizar socialmente o que se entende por saúde. Se a concepção hoje hegemônica orienta práticas em saúde que individualizam problemas e que mistificam as reais causas do adoecimento, a medicina social latino-americana inaugurou uma forma de pensar e organizar a saúde prenhe de potenciais revolucionários: a determinação social do processo saúde-doença.

Desde o fim do século XVIII, na esteira da nascente industrialização da Europa Ocidental, cresce a intervenção da medicina em direção ao corpo social. A chamada medicina moderna surge a partir da aplicação em grande escala de um conjunto de ciências como a fisiologia, a anatomia, histologia e patologia, classicamente lidas no paradigma das ciências naturais, como também princípios que se constituirão nas ciências humanas, tais como economia, sociologia e psicologia. À marcha da urbanização se punha a necessidade de lidar com os problemas sanitários advindos das péssimas condições de trabalho e moradia, populações cada vez mais aglomeradas em grandes cidades e conflitos sociais em dimensões explosivas. O capitalismo em desenvolvimento precisava de força de trabalho em escala ampliada.

Analisando as diferenças de organização do cuidado em saúde em múltiplas sociedades é possível demonstrar a relação intricada entre industrialização e crescimento do poder de intervenção da medicina. Mesmo que tenha sido laboriosamente construída a ideia de uma medicina científica neutra e apartada das relações sociais, a medicina se constitui enquanto prática que impõe normas e essas normas variam a depender das necessidades de cada sociedade. Se entre povos antigos a medicina era uma prática aristocrática, próxima da filosofia e da cosmologia, nos tempos atuais ela é produzida em larga escala, se identificando enquanto um saber próprio e referendado nos acúmulos tecnológicos e científicos, ou seja, anda próxima da própria reprodução do capitalismo.

A sociedade capitalista impõe como necessidade a reprodução de sua mercadoria mais valiosa: a força de trabalho. É da força de trabalho que o capital suga suas energias para continuar se movendo em escalas cada vez mais ampliadas. Ainda que a proteção social do trabalho varie de sociedade para sociedade segundo a dinâmica da luta de classes, não é possível imaginar a sociedade capitalista sem trabalhadores e assim há a necessidade imperiosa de oferecer mínimas condições para a sua sobrevivência. Há a obrigação, por exemplo, de um maior controle da saúde do trabalhador, do cuidado sanitário nas cidades, da disciplinarização dos comportamentos para que a maioria aceite a imposição de ter que vender sua força de trabalho para sobreviver.

Uma mutação importante ocorrida no decorrer do século XX foi a superação progressiva, ainda que ocorrida de forma desigual ao redor do globo, da alta mortalidade ocasionada por doenças infectocontagiosas. O isolamento de agentes etiológicos específicos, a maior compreensão do desenvolvimento natural de algumas doenças e medidas como a vacinação permitiram o maior controle de condições que antes poderiam ser letais.  Nesse sentido, as intervenções sanitárias mais globais foram perdendo a prioridade em direção a intervenções cada vez mais localizadas no corpo biológico de cada indivíduo. As doenças crônico-degenerativas se tornaram mais prevalentes e a incidência do paradigma biomédico se tornou hegemônica, o que consolidou uma forma individualista de pensar o processo saúde-doença.

Apesar da compreensão moderna de saúde priorizar cada vez mais a individualização, a Revolução Russa modificou radicalmente as tendências que se operavam no fim do século XIX e início do século XX. Desenvolvemos em texto anterior as consequências da Revolução Russa para a construção de uma concepção de saúde pública universal e feita pela e para a classe trabalhadora. Aqui focaremos apenas em um desdobramento posterior dessa nova concepção de saúde. Trata-se do que ficou mais bem concretizado pelo conceito de determinação social do processo saúde-doença. Tal conceito evidencia que as formas de adoecimento e as formas de cuidado e potencialização da vida estão diretamente imbricadas com a própria forma da organização social.

A sociedade capitalista se impõe enquanto lógica de dominação e alienação do trabalho e esta determinação interage e se inter-relaciona com a reprodução da própria vida enquanto tal. A vida da classe trabalhadora nesta sociedade é vida para a exploração, para a produtividade, para o desgaste contínuo de sua força vital como garantia da acumulação de capital. A compreensão do que é saúde e doença é, assim, regulada pelos interesses do lucro e do mercado. Mesmo quando se pensa em serviços de saúde, em sua maioria se pensa nas vias de cuidado e tratamento que tornarão o trabalhador mais apto para a produção.

A concepção da determinação social do processo saúde-doença tem como um de seus objetivos fundamentais desvendar a nocividade do processo de trabalho sob o capitalismo e suas implicações de sobrecarga, perda de sentido, fragmentação e obstáculos à criatividade e realização.  Não se trata de uma mera “saúde ocupacional”, disciplina que exerceu preponderantemente o papel de controle capitalista da força de trabalho, mas o entendimento de que a dominação do trabalho pelo capital é o ponto fulcral de onde emerge uma série de outros sistemas de dominação.

Nesta perspectiva, o pensamento e a prática fundados na determinação social do processo saúde-doença são essencialmente críticas à sociedade capitalista. Não se trata apenas de propor uma regulação do mercado e do lucro ou de estabelecer mecanismos de proteção social do trabalhador, ainda que sejam aspectos taticamente importantes. Trata-se sobretudo de entender que a saúde não é um valor dado, mas sim a ser conquistado por luta, como práxis. A saúde tem assim relação direta com soberania alimentar, moradia, liberdade substantiva, lazer, cultura etc. e tal compreensão aponta não apenas para demandas por serviços de saúde, medicamentos e intervenções diretas sobre o corpo individual, mas indicam a completa reorganização do tecido social.

Os próprios trabalhadores da saúde são assim convocados a se organizarem enquanto contrapoder ao capital em conjunto com os demais setores da classe, não se restringindo a um campo especializado e apartado das demais lutas. Tais caminhos podem permitir a superação de uma concepção de saúde mais ligada à dominação e controle em direção a promoção de uma saúde mais próxima da liberdade e da potencialização das forças vitais dos seres humanos.

Sair da versão mobile