Por Alexandre Mask
Este artigo é composto por três partes: 1) Modernização Agrícola; 2) Reprodução da Fome; 3) Segurança Alimentar e Nutricional. Na edição anterior, tratamos da Modernização Agrícola e como o processo de produção e circulação agrícolas são indissociáveis. Estes por sua vez, agudizam a luta de classes no campo intensificando as desigualdades rurais entre os empresários do Agronegócio e os camponeses1. Neste texto, trataremos da parte II.
De acordo com a primeira parte do texto2, apreendemos que a dialética torna a produção e distribuição de alimentos indissociáveis no modo de produção capitalista. Nesse sentido, a produção no campo é engendrada pelo padrão de consumo, que por sua vez é determinado pela propaganda de forte cunho ideológico impetrada pelo Agronegócio. Quantas vezes não escutamos na mídia ou em debates de cunho liberal que o Agrobiz é o “herói” que alimenta 1 bilhão de pessoas pelo mundo? O que mais impressiona é a facilidade na aceitação desse tipo de argumento sem sequer buscar a origem dessa falácia, reflexo da força da propaganda financiada pelo AgroMORTE. É possível encontrar apenas um estudo que origina essa informação. Sim, apenas uma unidade! Uma “pesquisa” organizada pela Embrapa3 – que recebe o curioso título de “O Agro Brasileiro alimenta 800 milhões de pessoas”4 -, realizada com métodos hipotéticos toscos afirmando, inclusive, que o Agrobiz alimenta toda a população brasileira adequadamente. Segundo o “estudo”, não há fome nem insegurança alimentar no Brasil5. Não é necessário possuir mais de dois neurônios para perceber o tamanho do absurdo dessas informações6.
Entretanto, vamos para além disso. Porto Gonçalves (2004) demonstra em detalhes a forma que a produção e distribuição de alimentos transgênicos – trigo, arroz, milho e soja – no campo são determinantes para os hábitos de consumo alimentar da cidade. A drástica redução de espécies ofertadas e a constituição de padrões de produção, que aceleram o processo de modernização agrícola escorados na justificativa da elevação da produtividade, são a base do suprimento das progressivas demandas alimentares da população crescente (PORTO GONÇALVES, 2004, p. 3-4).
Não obstante, tal produtividade jamais fora comprovada, e diversas pesquisas – consideramos aqui a soja RR7 – constataram que os métodos tradicionais (agroecológicos) mostravam-se mais produtivos que os convencionais (transgênicos), com variações entre 2% e 22% a maior, e em alguns lugares chegando a ser até 40% superiores. Não bastassem as falsas promessas venenosas, a Monsanto sugeriu como solução para esse descompasso eliminar a produção de soja tradicional no mundo (ANDRIOLI, 2012).
Nesse ponto, já compreendemos a modernização agrícola como elemento central da agudização da luta de classes no campo, através das relações de troca desigual e da intensificação da divisão do trabalho, que por sua vez, aliena-se8 cada vez mais. As limitações naturais dessa relação, aliadas ao esgotamento dos recursos (degradação/destruição ambiental, mudanças climáticas, perda da biodiversidade…), elevam a tensão entre as relações sociais e o modo de produção, uma vez que esses recursos (meios de produção) tornam-se mais restritos e mais caros, limitando cada vez mais o acesso a esse processo de exploração.
Portanto, o recrudescimento da insegurança alimentar é inevitável. Como percebemos detalhadamente mais acima, sob diversos aspectos, não há meios de se obter qualquer distribuição equitativa dentro das relações de produção capitalistas. Sua própria estrutura inviabilizaria o processo produtivo. A insegurança alimentar é um sintoma mórbido e extremamente grave do sistema vigente.
Para além das questões estruturais, ainda dispomos de diversas informações advindas de instituições relevantes acerca da insegurança alimentar que corroboram com nossa reflexão. Segundo a FAO9, “uma das principais lições extraídas da análise das experiências de outros países é a de que a fome, a insegurança alimentar e a má alimentação são problemas complexos que não podem ser resolvidos por somente uma das partes ou setor interessado. Abordar as causas imediatas e subjacentes da fome exigirá uma variedade de medidas em toda uma série de setores como a produção e a produtividade agrícola, o desenvolvimento rural, a silvicultura, a pesca, a proteção social, o comércio e os mercados. Embora muitas dessas medidas sejam tomadas no âmbito nacional e local, há também aspectos de natureza regional e mundial que exigem a adoção de medidas em uma escala maior. Políticas e programas são formulados e implementados em complexos ambientes sociais, políticos, econômicos e agroecológicos” (FAO, 2014, p.5).
Com efeito, já temos elementos suficientes para desmontar a fantasia da promessa que justificou a modernização agrícola e a consolidação do Agronegócio. Contudo, avancemos um pouco mais na demonstração de que o AgroFOME não é outra coisa senão a causa raiz da agudização da insegurança alimentar e da fome global. Retomando a biotecnologia, que deu origem à reflexão proposta no início do artigo, o Prof. Dr. Miguel A. Altieri10 derrubou diversos mitos que ratificam nossa investigação: a Biotecnologia beneficiará os agricultores nos Estados Unidos e nos Países desenvolvidos; a Biotecnologia beneficiará os pequenos agricultores e favorecerá os famintos e os pobres do Terceiro Mundo; a Biotecnologia não atentará contra a soberania ecológica do Terceiro Mundo; a Biotecnologia estimulará a conservação da biodiversidade; a Biotecnologia é ecologicamente segura e constituirá o início de uma era de agricultura sustentável livre de químicos; a Biotecnologia estimulará o uso da biologia molecular em benefício de todos os setores da população. Para além da desmitificação de todas essas falácias propagadas no final do século XX, traz-nos a conclusão que “a tendência para uma visão reducionista na natureza e na agricultura, acionada pela biotecnologia contemporânea, deve ser revertida procurando uma visão mais holística da agricultura, para garantir que as alternativas agroecológicas não sejam deixadas de lado e que não somente alguns aspectos ecológicos da biotecnologia sejam pesquisados e desenvolvidos” (ALTIERI, 1999).
Inexoravelmente as limitações ecológicas são determinantes, negativa ou positivamente, na produção e provimento da alimentação para a população mundial. Investigar a dialética do Agronegócio com a Natureza é fundamental para uma compreensão materialista das relações de produção capitalistas e da dinâmica campo-cidade. Na próxima edição – parte III -, abordaremos o tema Segurança Alimentar e Nutricional e fecharemos o artigo expondo as consequências dos assuntos tratados em suas três partes.
“Por isso que os nossos velhos dizem: ‘Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai’. Isso não é importante só para a pessoa do indivíduo, é importante para o coletivo.” – Ailton Krenak
Notas:
1 Recomendamos a leitura da Parte I. Ver em https://omomento.org/agronegocio-e-a-fome-uma-relacao-indissociavel-por-tras-da-fantasia-de-uma-falsa-promessa/.
2 Idem.
3 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Ver em: https://www.embrapa.br/sobre-a-embrapa.
4 Pesquisa disponível em: https://www.embrapa.br/documents/10180/26187851/Popula%C3%A7%C3%A3o+alimentada+pelo+Brasil/5bf465fc-ebb5-7ea2-970d-f53930b0ec25
5 Para informações sobre a fome e a insegurança alimentar no Brasil, acesse: https://olheparaafome.com.br/.
6 Para informações mais detalhadas sobre a pesquisa, recomendamos ouvir o eposídio “O agro brasileiro alimenta o mundo?”, disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/08/o-agro-brasileiro-alimenta-o-mundo-drops-eleicoes-2022/, onde em 7 minutos essa pesquisa é completamente desmontada.
7 A soja RR, ou soja Roundup Ready foi desenvolvida pela Monsanto, e possui um evento transgênico que confere tolerância ao herbicida conhecido como RoundUp, à base de glifosato. Este, por sua vez, é um composto químico altamente tóxico, de ação sistêmica para controle de plantas daninhas. Mais de 75% dos monocultivos trangênicos no Brasil são de soja RR, sendo esta a principal responsável pelo crescimento descontrolado do uso de glifosato nos últimos anos. Um salto de 57,6 mil para 300 mil toneladas no período de 2003 a 2009 (LONDRES, 2011).
8 A alienação em Marx é tratada sob quatro aspectos: (i) em relação ao produto do trabalho, que consiste no estranhamento do trabalhador por não se reconhecer no produto que contém em si a sua essência, por um lado o torna mais pobre, e por outro lado enriquece o capitalista; (ii) no processo de produção, que não é nada senão a presença desta se dar no próprio processo de produção ao qual se submeteu, uma vez que o trabalhador encontra-se alienado em relação ao produto do seu próprio trabalho; (iii) em relação à existência do indivíduo enquanto membro do gênero humano que, na qualidade de ser genérico dotado de inúmeras capacidades e potencialidades, ao se separar de sua essência, se individualiza, torna-se um indivíduo solitário; (iv) e em relação aos outros indivíduos, dada sua individualização e unilateralização da vida, esta perde todo e qualquer significado (MARX, 2010).
9 FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (https://www.fao.org/brasil/pt/).
10 Prof. Dr. Miguel Altieri é um professor e pesquisador chileno de Agroecologia na Universidade da Califórnia, Berkeley, no Departamento de Ciência, Política e Gestão Ambiental, além de agrônomo e entomologista.
Referências:
ALTIERI, M. A. Os mitos da biotecnologia agrícola: algumas questões éticas. 1999. Disponível em: http://www.greenpeace.com.br/transgenicos/pdf/mitos_biotecnologia.pdf. Acesso em: 31. Jul. 2022.
ANDRIOLI, A. I. Muita promessa, pouca efetividade: a catástrofe do cultivo de soja transgênica no Brasil. In: ANDRIOLI, A. I.; FUCHS, R (Orgs.). Transgênicos: as sementes do mal. São Paulo: Expressão Popular: 2012.
FAO. O estado da insegurança alimentar no mundo. Brasília, 2014.
GOMES JR, N. N.; ALY JUNIOR, O. Soberania Alimentar e Agronegócio: Notas Além da Porteira. Retratos de Assentamentos, [S. l.], v. 18, n. 2, p. 305-319, 2016. DOI: 10.25059/2527-2594/retratosdeassentamentos/2015.v18i2.221.
LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: ANA -Articulação Nacional de Agroecologia / RBJA – Rede Brasileira de Justiça Ambiental, 2011.
______________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo : Boitempo, 2010.
O JOIO E O TRIGO. Prato Cheio. O agro brasileiro alimenta o mundo?. 2020. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/08/o-agro-brasileiro-alimenta-o-mundo-drops-eleicoes-2022/. Acesso em 15 ago. 2022.
PORTO GONÇALVES, C. W. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. Inthertesis, v.1, n. 1, 2004.
KRENAK, A. O eterno retorno do encontro. Povos Indígenas no Brasil. 2021/ISA. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/O_eterno_retorno_do_encontro. Acesso em: 31. Jul. 2022.