Por Sócrates Menezes
Anunciado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, após reunião ministerial realizada em junho deste ano (2020), o programa Renda Brasil admite uma tridimensionalidade que deve aqui ser exposto: o político, o socioeconômico e o ideológico. Essas três dimensões, obviamente, se entrelaçam dentro de uma estratégia que se tenta demonstrar eleitoralmente eficiente, ideologicamente justificável, mas concretamente inviável, dada as condições críticas com que o sistema econômico de mercado deve se expressar no mundo pós-pandemia.
Sem muita explicação, detalhamento ou indicação de receitas, o Programa Renda Brasil apresentado pelo Governo Bolsonaro tem-se colocado como um substituto imediato do Programa Bolsa Família. Mas os indicativos demonstram se tratar de uma mudança de natureza entre o que se pretendia com uma política de assistência social para o que se quer com um política neoliberal redistributiva.
A proposta de Bolsonaro e Guedes herda do Bolsa Família o bônus político, tão evidente quanto providencial, ainda mais diante do aumento da popularidade do Governo depois da instituição do Auxílio Emergencial, proposto e aprovado pelo Congresso. Mas a dimensão política não se esgota aí. O Renda Brasil, até onde se sabe, objetiva unificar o conjunto de políticas sociais específicas, afim de garantir recursos e “potencializar” o direcionamento e a amplitude deles: mais dinheiro para mais pessoas. Para tanto, dado o consenso diante de sua necessidade, o Governo espera que o Programa seja uma justificativa a mais no conjunto das reformas que visam o desmonte do caráter público do Estado brasileiro: a reforma tributária e a reforma administrativa.
Na dimensão socioeconômica, o Programa Renda Brasil significa uma verdadeira mudança da natureza social da política de assistência, ainda que minimamente assegurada, para uma política propriamente econômica. Na verdade, não há incoerência absoluta em um governo que se diz liberal, falar em política de redistribuição de renda mínima para a população pobre. Na tradição liberal, o próprio Milton Friedman, tido por muitos como o pai do neoliberalismo e guru da famosa Escola de Chicago – de onde Paulo Guedes é tributário – defendia tal mecanismo econômico por entender as possibilidades de vulnerabilidade que eventualmente o processo de empobrecimento poderia se alastrar no corpo social ordenado pelo capital.
Tal mecanismo não poderia, por sua vez, intervir no jogo “livre” dos preços estabelecidos pelo mercado, tanto dos bens de consumo, como da força de trabalho. Para Friedman, isso pode ser feito pelo que foi denominado como Imposto de Renda Negativo, que consiste na complementação do salário do trabalhador por parte do Estado até o valor de uma renda mínima a ser definida pelos governos.
Por sorte, nessa dimensão estritamente econômica, como na vigência do Bolsa Família, o programa de Renda Mínima defendido pelo Governo Bolsonaro deve garantir ainda um padrão mínimo de consumo para a manutenção do funcionamento, também mínimo, dos mercados. Na versão copiada por Paulo Guedes e apresentada como “novidade”, a filantropia estatal, desconectada de uma política minimamente assistencial, teria direito a suplementação salarial o trabalhador que não atingisse o valor de R$ 500,00 em seus rendimentos, como provisoriamente estipulado pelo próprio Governo.
A circularidade entre os objetivos econômicas de classe e justificativas ideológicas de fundo liberal feita por um governo protofascista, por sua vez enraizado na opressão e na precarização da vida social, tem seus limites. Primeiro, porque a opção por uma “saída liberal” de problemas causadas pelo próprio mercado é, no mínimo, contraditória. A transformação de uma política de assistência social em um política econômica de consumo mínimo apenas reforça a estrutural separação entre produção (da mais-valia) e consumo; e a distribuição se desloca do processo de valorização do capital para uma esfera meramente monetária. Segundo, porque as possibilidades de vulnerabilidade social da qual grande parcela da classe trabalhadora se encontra desde sempre nunca foram “eventuais”, das quais pensavam Friedman e outros ideólogos burgueses, mas concretamente estruturais. E os rebatimentos políticos, senão previsíveis, deverão ser pelo menos inesperados.
O capital e o quadro de agravamento de sua crise que defrontará o mundo pós-pandemia não oferecerá grandes margens de manobras para a burguesia, dado que sua espiral tende a se estreitar reforçando a ativação de seus limites absolutos, como nos diria István Mészáros.
Discussão bastante interessante,
Mas caberia alguns pontos para um debate futuro..
Evidentemente a Renda Brasil se constituí enquanto um programa de renda mínima neoliberal, com um “imposto de renda negativo”, algo que foi muito bem frizado no texto. Existe evidentemente um caráter de transferência do fundo público para o empresariado, sendo o trabalhador -contemplado- um intermediario, via consumo, esta é uma critica fundamental.
Agora existe um elemento que deve ser “desmistificado”, não está clara qualquer diferença qualitativa entre programas como “Bolsa Família” e o “Renda Brasil”. Embora o bolsa família viesse associado a determinadas “contrapartidas” das famílias beneficiadas, como manutenção das crianças matriculadas na escola, este segue o mesmo princípio da transferencia de renda do fundo público, para a burguesia, tendo o trabalhador enquanto intermediário, eminentemente pelo consumo. A diferença apresentada no texto, fica no plano quantitativo, vejamos: “Na dimensão socioeconômica, o Programa Renda Brasil significa uma verdadeira mudança da natureza social da política de assistência, ainda que minimamente assegurada, para uma política propriamente econômica”, mas qual a mudança ? “Objetiva unificar o conjunto de políticas sociais específicas, afim de garantir recursos e “potencializar” o direcionamento e a amplitude deles: mais dinheiro para mais pessoas.” A mudança é quantitativa portanto, afinal “unificar” é em ultima instância uma soma, e “potencializar e dar mais amplitude” é também uma elevação quantitativa.
Estabeleço assim esta discordância, no fundo se tratam de duas políticas de imposto de renda negativo, ambas frutos de um mesmo projeto neoliberal, a diferença é objetivamente “ideológica”, no sentido que buscam se ancorar num arcabouço de justificativas um pouco distinto, o da assistência e o do “direito à renda”.
A saída, e acredito que aqui temos concordância, objetivamente é fugir da armadilha da “renda mínima” e mirar nossos esforços na garantia do trabalho. O direito ao trabalho, direito à produção, participação no fundo público a partir da produção. E se tratando de “renda emergencial” ainda assim vale o raciocínio, o direito que devemos por em questão é o da subsistência, acesso à moradia, à luz, água, alimentação. Todos estes podem e devem ser garantidos sem uma política de transferência de renda ao empresariado, utilizando os trabalhadores/as como intermediários.