Por Bernardo Ramos
Desde a última década do século XX, a Saúde no Brasil enfrenta um movimento pulsante de mercantilização e de degradação de suas condições de trabalho, uma dinâmica da qual a medicina não escapou. Em nossa análise, trataremos da proletarização médica, um processo de subordinação da força de trabalho ao Capital que se acelerou a partir dos anos 90, e como esse mesmo movimento contradiz a ideologia corporativista que predomina entre a categoria médica. Vale ressaltar, porém, que consideramos somente médicos que vivem do seu trabalho e são assalariados dentro de instituições com Capital privado ou misto, por entendermos que empresários com histórico na medicina atuam como capitalistas e não como trabalhadores. Com relação àqueles que trabalham no SUS, abordaremos suas especificidades em outro momento.
Iniciaremos então no período de agitações políticas, econômicas e sociais na Europa que ficaram conhecidas como Revolução Francesa (1789), quando as práticas do ofício médico eram certamente muito distintas das atuais. O movimento revolucionário iniciado nesse período estabeleceu condições para que se vislumbrasse a construção de sociedades de relações livres, ainda que o projeto se restringisse idealmente a uma fração específica do Ocidente.
No mundo do trabalho, a medicina manifestou-se como uma perfeita representação de alguns ideais filosóficos que orientaram a revolução, já que naquela época, a relação médica hegemônica era tipicamente liberal, ou melhor, orientada pelo princípio de liberdade. A partir dessa relação, um médico não trabalhava para ninguém além de si e recebia de seu paciente, o valor integral do seu tempo de trabalho.
Uma das vias pelas quais a influência do pensamento revolucionário francês se tornou expressiva no Brasil Império ainda no começo século XIX foi a intelectualidade liberal que se formava nessas terras, após voltarem de uma França “Iluminada”. Junto a esses intelectuais, se encontrava a categoria médica, que contou com figuras de destaque na história, como o humanista Lino Coutinho, que compôs a junta baiana durante a Independência, além de ter ocupado diversos cargos políticos. Eram majoritariamente homens formados em medicina que compartilhavam alguns interesses em comum, tanto por suas posições de classe quanto pela ideologia médica que se formava naquele meio, o que os levou ao processo de articulação de uma fração própria da pequena burguesia.
Naquele período, médicos começavam a estabelecer e organizar/burocratizar sua prática social, a qual exigia uma incorporação da medicina ao cotidiano da população, com propostas de “higienizar” as cidades para que se aproximassem das metrópoles europeias, na criação e expansão de associações médicas e na participação política com a ocupação de cargos como deputados e ministros. Segundo o historiador João José Reis, eles acreditavam que a medicina seria a vanguarda do processo “civilizatório” no Brasil. Essa convicção ainda ressoa atualmente, mesmo que o conhecimento médico, no decorrer da história, tenha expressado compreensões ora mais acertadas, ora absurdas acerca da realidade e dos processos de saúde e doença.
Em 1832, inaugurou-se na Bahia e no Rio de Janeiro as primeiras faculdades de medicina brasileiras. Nesse ano, o Brasil já contava com alguns espaços associativos médicos, dentre os quais se destacou principalmente a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), que se tornaram, com o tempo, instrumentos através dos quais médicos atuavam na política e na sociedade. Nesse contexto em que se pensava a medicina enquanto ciência pura, apesar da precariedade metodológica, orientada sobretudo pelo racionalismo francês, havia também um processo de estabelecimento de normas para a prática médica, tal como nos mostra a inauguração de instituições de ensino específicas para a formação técnico-científica.
A criação de faculdades e associações contribuiu para a consolidação de certa autonomia dessa fração da pequena burguesia frente a outros grupos que disputavam e tensionavam a direção política do império, dentre os quais não podemos nos esquecer dos escravizados e de suas insurreições. Essas tentativas de formalização e controle da medicina a partir de espaços específicos do ofício foi um dos fundamentos concretos para o desenvolvimento do corporativismo médico brasileiro.
Devemos ressaltar, a partir da exposição acima, que a influência da medicina sobre a nossa realidade possui uma dinâmica própria, mas não menos concatenada à totalidade, com altos e baixos na história, determinada pelo conflito de interesses entre diversas frações das classes sociais, das quais os médicos eram apenas um grupo a propor um projeto de sociedade brasileira. Como exemplo desse embate, mencionaremos a Cemiterada, que foi uma revolta popular ocorrida em Salvador em 1836, após mudanças práticas e legislativas das tradições funerárias da cidade. O levante eclodiu com a construção do primeiro cemitério privado da Bahia, o Campo Santo, foi precedido por um intenso debate médico sobre a limpeza de Salvador, em que se destacava o risco à saúde que representavam as sepulturas em locais inapropriados como as igrejas.
Foi a partir dessa discussão supracitada, que médicos, confiantes na origem miasmática das doenças, ou seja, na crença de que o adoecimento era causado pelo ar impuro e “viciado”, pressionaram o governo do estado para alterar a legislação funerária. Nesse contexto, as camadas populares, apreensivas com a ameaça que as mudanças legislativas e a “privatização da morte” indicavam aos ritos fúnebres culturalmente estabelecidos, identificaram o Campo Santo como objeto sobre o qual expressariam sua revolta. A destruição do cemitério a pau e pedra entrou para a História como “Cemiterada”.
Apesar da relevância do debate acerca das tradições de sepultamento em relação ao espaço urbano no qual se realizavam, a medicina se provou extremamente equivocada quanto aos mecanismos pelos quais compreendia o processo de saúde e doença. Essa teoria dos miasmas, predominante à época, foi posteriormente refutada em favor da tese microbiana, após as contribuições de cientistas europeus como John Snow e Louis Pasteur na segunda metade século XIX.
Nesse período de grandes descobertas (e equívocos), a medicina no Brasil aparecia a seus representantes como campo no qual poderiam realizar experimentos, ainda que tivessem baixo rigor metodológico e científico, e descobertas clínicas e laboratoriais, sob influência de tradições indígenas, africanas e europeias, para formar a prática médica. Na política, também tinham possibilidades de participação expressiva por meio de assessorias ao governo, pela ocupação de cargos políticos e até mesmo em revoltas como na Sabinada.
O ofício médico, enquanto campo de conhecimento técnico, e posteriormente científico, com o qual se atuava na sociedade, é um produto histórico e social do trabalho clínico e acadêmico na área da saúde e das ciências de modo geral. Entretanto, com o desenvolvimento do capitalismo e com o acelerado avanço tecnológico potencializado nas últimas décadas, a medicina passou a subordinar o trabalho que a produz, manifestando-se como um ser místico de vontades próprias, ou seja, ela assumiu uma forma fetichizada.
Com isso, passou a exigir que seu produtor atendesse suas necessidades de forma fervorosa.
Em termos mais concretos, a título de exemplo, no mês de agosto de 2020, o Conselho Federal de Medicina se posicionou contrário a uma tentativa de simplificação do processo de revalidação de diplomas de médicos formados em universidades no exterior. Naquele período, o país estava no auge da pandemia por COVID 19, o que parece ter sido pouco relevante para a decisão do CFM, que apressadamente se opôs à proposta de aumento da capacidade de trabalho em saúde com o Revalida simplificado.
O CFM é uma associação nacional importante na defesa dos interesses de ofício e, a partir de uma orientação reacionária que costuma assumir frente à realidade, fornece expressivo suporte material à ideologia corporativista. Essa mesma entidade, em outro momento, expressou-se de forma inconsistente com relação às medidas preventivas e ao “tratamento precoce” propostos durante o período de crise sanitária, bem como se discutiu em outro texto [O tratamento off-label: considerações sobre medicina e luta de classes].
Ainda partindo de eventos recentes, em 2023, a Associação Médica Brasileira criticou o retorno do programa Mais Médicos. Os argumentos apresentados sugeriam uma desconfiança generalizada quanto à qualificação de médicos estrangeiros, ou mesmo de brasileiros com formação no exterior.
Para além dos órgãos que regulam e influenciam a medicina no Brasil, escuta-se em postos de saúde e hospitais, queixas que transmitem ideias semelhantes. Talvez não soe absurda, por exemplo, a preocupação com a vinda de médicos cubanos que “roubam” empregos ou com a criação de novas faculdades de medicina pelo país.
Pensamentos como os que citamos se manifestam como práticas corporativistas e são expressões de uma forma de consciência do mundo na qual não se reconhece que as necessidades da categoria médica são essencialmente similares àquelas de trabalhadores de outros ofícios e nacionalidades. A partir dessa ideologia, não se pode compreender as relações de subordinação que existem na medicina atualmente, isto é, os processos de alienação do trabalho médico.
Uma médica recém-formada pode ir até um hospital privado atrás de emprego em uma cidade onde o mercado de trabalho de sua área está “saturado”. Caso seja contratada, ela terá que trabalhar antes para produzir mais-valor para o dono do hospital, e não para suprir suas necessidades. A mesma, então, está alienada dos meios que necessita para trabalhar (estrutura física do hospital, aparelhos diagnósticos e terapêuticos, etc.), porque são posses do patrão, e também está alienada dos meios de subsistência e do produto de seu trabalho, ou seja, não tem controle sobre aquele serviço que realiza.
No contexto descrito, a trabalhadora poderia culpar o excesso de médicos estrangeiros em sua cidade por suas condições de trabalho e existência, após ler uma nota do conselho de medicina da sua região que contenha uma ideia contrária à incorporação de trabalhadores imigrantes no mundo do trabalho. Sob a mesma perspectiva, essa médica não questionaria os altos lucros que ela ajuda a garantir ao patrão, os preços elevados das tecnologias e de outros instrumentos de trabalho em saúde, dentre outras determinações, justamente porque ainda está tomada por uma compreensão corporativista da realidade.
Somente através de uma forma de consciência revolucionária, ela poderia desmistificar os processos alienantes que o submetem à exploração capitalista. No entanto, essa mesma pessoa é incapaz de superar sozinha tal situação da qual tomou consciência, já que a alienação não se manifesta somente como experiência subjetiva, mas também com restrições reais à vida humana na sociedade de classes, pois há de fato uma base material que sustenta essas relações sociais de dominação.
As condições materiais historicamente determinadas proporcionaram um contexto social específico que colocou a medicina junto aos outro setores de trabalho, salvas as exceções de indivíduos com histórico na área médica que enriqueceram às custas do trabalho alheio. Na busca da essência desse fenômeno da alienação do trabalho médico, encontraremos as relações mercantis capitalistas que avançaram sobre a saúde no Brasil e no mundo, sobretudo no final do último século. O que levou a categoria médica a pensar e a agir corporativamente foi a própria realidade concreta submetida à dinâmica de expansão do Capital sobre a sociedade e não as ideias corporativistas por si só.
Nesse sentido, podemos mencionar algumas determinações concretas específicas desse fenômeno como o assalariamento do trabalho médico; a “flexibilização” das formas de contratação através da pejotização, em que trabalhadores da saúde passam a ser tratados como “empresas”; a hiperespecialização, e consequente segmentação, da medicina; a perda do controle sobre seus meios de trabalho com a dependência das novas tecnologias e dos avanços científicos, o que também inseriu a saúde no processo produtivo de dados; a subordinação da saúde no país à indústria monopolista internacional de insumos e seus rendimentos absurdos, os quais permitem a participação do capital nacional investido da saúde nesse setor da economia, o que talvez garanta os “generosos” salários médicos por alguns anos; o desenvolvimento de um complexo jurídico que limita a autonomia médica; uma formação tecnicista que os impele a um pensamento mecânico, protocolar; as sucessivas mudanças da participação médica na dinâmica de divisão social entre trabalho intelectual e manual, etc.
Aqui vamos nos deter em uma reflexão sobre essa suposta generosidade dos salários médicos no Brasil, uma crença bastante aceita socialmente, talvez pela exuberância dos fatos. Evidentemente, trabalhadores médicos têm uma média salarial maior que o padrão de outras categorias de trabalho de modo geral, proporcionando maiores possibilidades de empreendimentos pessoais e de uma vida confortável para os moldes pequeno-burgueses, resta saber até quando essa situação irá se sustentar.
Segundo um estudo da Faculdade de Medicina da USP, a “renda” média daqueles que trabalham na medicina no Brasil caiu 12% entre 2012 e 2020. Assim, no século em que vivemos, é possível que a categoria médica siga a mesma tendência salarial dos ofícios em vias de precarização. Por outro lado, médicos se igualam ao trabalhador da fábrica no ponto de vista do Capital, já que garantem lucros aos patrões, mediante uma certa quantidade de mais-trabalho, ou seja, trabalho não pago, não incluído nos salários que recebem.
A amplitude dos salários se relaciona aos custos para se produzir um trabalhador de um tipo ou de outro, à taxa de desemprego, à dinâmica de oferta e demanda no “mercado” de trabalho, dentre outras causas, algumas das quais podemos retomar em publicações subsequentes. Como exemplo, temos os gastos exuberantes com a formação médica, sobretudo nas universidades privadas regidas por grupos monopolistas, mas também em instituições públicas, nas quais o maior número de vagas é reservado àqueles que oportunamente tiveram acesso ao ensino médio privado e aos cursinhos preparatórios nacionalmente famosos.
Ao final, podemos dizer que o santo, vazio de conteúdo concreto, carente de solidez, despedaçou-se com a queda do altar. Na estátua, remontada às pressas, vê-se as fendas entre seus fragmentos, pois jamais tornará a ser a mesma de antes. Vivemos uma era na qual o culto às santidades perdeu seu valor. Há nesse agora, o avesso do sagrado, uma profana divindade (o Capital), única e onipotente, que domina tudo aquilo que toca, até o dia em que fizer cair as estrelas do céu sobre a terra, levando ricos e poderosos a se esconderem em suas cavernas, enquanto abandonam o povo às chamas do fim dos tempos.
Essa analogia se refere ao caráter quase santificado que se atribui à medicina (um santo do pau oco), ao saber e ao ofício médicos, que ainda desfrutam de enorme prestígio na contemporaneidade, mas que perderam seu poder progressivamente para o domínio do Capital sobre a saúde. O parágrafo se encerra com a subordinação da realidade, da qual o trabalho médico faz parte, às relações capitalistas de produção, o que poderá conduzir a sociedade humana a uma total degradação.
Foi a partir dessa submissão ao Capital que a medicina (canonizada há décadas) perdeu sua santidade, quando o processo de proletarização obrigou médicos a venderem sua força de trabalho ao patrão em troca de salários. Essa relação social de assalariamento se fez predominante com o tempo, derrubando a maioria médicos à posição de proletários.
A partir dessa última constatação, ressaltamos que o trabalho em saúde, com todas as suas categorias de serviços, é extremamente importante para a humanidade. Contudo, em uma sociedade capitalista, assume a função econômica de garantir um estado minimamente “saudável” ao trabalhador, um grau de funcionalidade para que esse continue trabalhando.
Impõe-se, portanto, uma necessidade ainda mais expressiva de subversão da lógica corporativista da medicina, a partir do auto reconhecimento médico enquanto proletário, ao enxergar o outro, colega de outras frações da classe trabalhadora, como companheiro de luta, colocando fim à ilusória distância econômica entre as diversas categorias do setor de saúde. É preciso abandonar a consciência burguesa, pois essa já não serve mais à parcialidade dos interesses médicos.
Assumir a consciência revolucionária solidária à nossa classe proletária é o primeiro passo no plano individual, para coletivamente se organizar enquanto trabalhadores da saúde. A medicina por si não irá salvar o mundo e, como vimos, pode até mesmo dificultar uma possível salvação pessoal, com todos os erros históricos do saber médico e com a negação da ciência de outros momentos. Devemos abandonar nossos santos e heróis para nos lançarmos à mobilização popular, em uma luta contra o Capital para que uma humanidade desalienada e livre renasça dos escombros da era do Capital..
Versão alterada do texto “Um santo do pau oco na saúde ou reflexões sobre uma medicina assalariada” publicado em “O Momento: Diário do Povo”, ed. 33, 16 de maio de 2023.