140 Anos de Lima Barreto: Da crítica do Passado à Poesia do Futuro

Reprodução: Blog Estante Virtual

Por Rômulo Caires

No último 13 de maio de 2021, Lima Barreto faria 140 anos. Para o escritor carioca, sua data de nascimento não seria apenas uma mera contingência, mas representaria um verdadeiro destino em sua vida. Lembraria por muitas vezes uma cena marcante: aos 7 anos, seu pai o colocava nos ombros e juntos comemorariam a abolição da escravidão no Brasil. Lima não sabia naquele dia, mas não tardaria a descobrir o engodo que ali presenciava: a libertação seria uma falsa libertação. No ano seguinte, presenciaria o golpe militar que proclamaria a República e faria deste evento, especialmente o seu prosseguimento em figuras como Floriano Peixoto, um pano de fundo constante em sua obra.

Em seu livro mais conhecido “Triste fim de Policarpo Quaresma”, Lima Barreto figura em belas páginas o momento inicial da formação da República no Brasil. O escritor mostra, dentre outros fatos, a relação direta entre a ideologia dominante da época, profundamente influenciada pelo positivismo, e as agruras que a nascente república vivia. Lembra-nos de como o slogan marcado em nossa bandeira “Ordem e Progresso”, elevado a artigo de fé, serviu para mascarar o caráter eminentemente conservador e antipopular do governo nascente. Os positivistas postulavam uma espécie de “física social”: os fenômenos sociais seriam considerados no mesmo espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos. O sujeito científico poderia se portar como um físico experimental, que se afasta do seu objeto, depura suas paixões e pode enunciar um conhecimento objetivo, neutro em suas intenções.

Ao mostrar que, por trás de pretensa neutralidade, se esconderia o ímpeto de dominação marcante nas classes dominantes brasileiras, Lima ganharia muitos desafetos. Sua literatura sempre seguiu o sentido oposto ao positivismo: tratava-se de literatura militante, literatura engajada em desmistificar a realidade social e evidenciar as potencialidades advindas das forças populares. Seus personagens não eram criações mortas retiradas dos inventários greco-romanos como seu contemporâneo Coelho Neto, mas sairiam diretamente da vida brasileira, especialmente das classes menos favorecidas. Policarpo Quaresma não deixa de ser uma espécie de Quixote brasileiro, que repetia sempre um discurso presente nessas terras ao menos desde Caminha – aqui teríamos as melhores terras, as maiores riquezas, o povo mais esbelto. A desilusão de Quaresma ao final do romance evidencia os limites de um ufanismo ingênuo, que ignoraria justamente o caráter de subordinação do Brasil no jogo das Nações.

O escritor lembraria em seus últimos anos como passava cerca de 14 horas por dia em andanças pelo Rio de Janeiro, conversando com quem quer que cruzasse o seu caminho. Não era adepto dos chiques cafés cariocas e passava horas nas bibocas mais afastadas das luzes radiantes da capital. São desses encontros que sairão muitos de seus personagens. Em sintonia com a grande literatura russa que chegava ao Brasil a partir de nomes como Tolstoi e Dostoievski, Lima punha em cena os miseráveis, os despossuídos, os seres marginalizados na vida social. Por partir deste ponto de vista, Lima foi constantemente atacado por seus contemporâneos. Apesar de ter escrito em muitos jornais e ter sido uma figura conhecida na cena carioca, ele pagou um preço alto pelas decisões que tomou. Em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, satirizou diversos medalhões da imprensa carioca, perfazendo em prosa penetrante o ambiente decadente da mídia hegemônica. Isaías era um homem negro, que nutria grandes pretensões sobre sua carreira e vida futura. Vindo de pequena cidade do interior, não havia ainda se confrontado com a dureza de uma sociedade racializada, mas logo em seus primeiros contatos na capital entenderá que o Brasil nunca se tratou de uma democracia racial.

O crítico José Veríssimo elogiará o primeiro romance de Lima Barreto e reconhecerá o potencial do literato, mas acusará o caráter autobiográfico do autor. Não será o último a fazer tal comentário. Lima Barreto não poderá se desgarrar de experiência tão marcante em sua vida: retratar o racismo da realidade brasileira não seria uma mera exposição de sua vida pessoal, mas a reposição em termos estéticos dos pressupostos históricos de uma época – a abolição da escravidão no Brasil não havia realmente se completado.

Se a literatura modernista viria questionar a situação do narrador na literatura brasileira e relativizaria a crítica de um José Veríssimo, muitos ainda acusarão o escritor carioca de ter um estilo desleixado e pouco preocupado com as normas gramaticais. Serão esses os mesmos tipos de críticos literários que impugnarão a obra de Carolina Maria de Jesus por não seguir o padrão hegemônico de escrita. Lima Barreto recusava-se a emular a afetação dos escritores brasileiros, que em prol de uma dita perfeição de estilo faziam nada menos do que investir em letra morta, helenizar e dourar uma realidade que na verdade se mostrava bárbara. Além disso, não se tratava apenas de expor conteúdos críticos, confundindo a literatura com a sociologia. Apesar de literatura militante, Lima Barreto sempre se preocupou em evidenciar a particularidade que fazia da literatura a sua grande missão: a literatura representaria o que a mera exposição factual não seria capaz de fazer, exteriorizaria uma ideia em sua essência mais rica, faria tornar possível a ligação dos seres humanos e a ampliação de seus laços de solidariedade.

Seja em suas diversas crônicas, nas quais figurariam algumas das mais belas páginas sobre a vida no subúrbio carioca, seja em seus contos e romances, Lima sempre buscará objetivar a ligação íntima entre a literatura e a vida social. Sem ser arte pela arte, a escrita de Lima Barreto é capaz de arrancar risos hilariantes, expressar imagens carregadas de sentimentos e, principalmente, levantar o que há de humano por trás das maquinações automáticas da vida cotidiana. Insistir em desmascarar as ilusões de uma suposta pátria amada e harmônica não era apenas marcar uma rebeldia sem causa, mas tentar mostrar pela Literatura o que não era possível por outros meios: as figuras doutas cheias de preciosismos artificiais, o jornalismo interessado apenas em tornar dourada a mais dura realidade ou as forças políticas opressoras não cristalizariam o nosso destino. Se Lima denunciava um passado que teimava em subsistir, se era implacável com aqueles que defendiam as transformações pelo alto, era porque sabia: os de baixo trazem a verdadeira poesia do futuro.

Lima Barreto vive.

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