Quem tem medo da classe trabalhadora?

Por Cristiano Ferraz

No presente texto, dialogaremos indiretamente com a contribuição de Nicos Poulantzas (em particular na obra Poder Político e Classes Sociais) para pensar a constituição das trabalhadoras e trabalhadores em classe. Para isto nos valeremos do conceito de luta política como elemento constitutivo da luta de classes como motor da história e como luta pelo poder de Estado e destruição do Estado burguês.

Uma pergunta cara ao movimento comunista é, a saber, o que faz a classe trabalhadora se mobilizar. Muitas respostas foram dadas a esta questão: as contradições entre capital e trabalho, as contradições entre forças produtivas e relações de produção, o conflito potencial entre proprietários e não proprietários de meios de produção: Isto faz a classe surgir e se mobilizar. No entanto, no modo de produção capitalista estes elementos são uma constante e, mesmo assim, os processos de constituição da classe, com foco na conquista do poder político, não são episódios constantes. Recortando o problema à realidade brasileira, nos perguntamos por que, na conjuntura atual, os trabalhadores e trabalhadoras não se levantaram como classe em luta. Motivos para isso não faltam, não é verdade? Afinal de contas vivem em condição de exploração da sua força de trabalho, sofrem um processo intenso de precarização das condições de trabalho e de retirada de direitos. Mas, embora ocorram muitas greves e mobilizações com pautas econômicas por que esse setor social não se levanta em luta política contra quem promove suas mazelas?

Ao longo do Século XX, principalmente no II Pós Guerra, havia uma forte tendência entre os marxistas de atribuir o papel decisivo das contradições estruturais ao conflito entre capital e trabalho que, ao produzir a proletarização crescente de todos e todas que precisavam vender sua força de trabalho para sobreviver, nas condições mais diversas e heterogêneas, formariam uma classe operária ampliada que, fatalmente, desenvolveria a ação política necessária à conquista do poder político. Mas, isso não ocorreu como se imaginava. Até porque os trabalhadores e trabalhadoras sempre se depararam com uma poderosa adversária que sempre manteve a unidade em torno de seus interesses fundamentais contra os interesses das trabalhadoras e trabalhadores e que, sempre sabotou o processo de constituição do operariado em classe. Essa adversária é a burguesia constituída em classe social. Mas as trabalhadoras e trabalhadores também não são uma classe social? Não necessariamente. Aqui, a polêmica entra na sala pela porta da frente. Se esquivar deste problema fundamental, em nome de posições doutrinárias e sectárias, não nos ajudará a avançar no entendimento da pergunta principal que abre este texto. Para avançar, precisamos em primeiro lugar remover um obstáculo teórico incompatível como marxismo: o economicismo, cuja origem é um contrabando idealista que afeta certas correntes do marxismo. É preciso então recuperar um dos princípios fundamentais defendidos por Marx e Engels: o entendimento de que os processos históricos são fruto de múltiplas determinações. É conhecida a defesa que o velho Engels faz desta posição na célebre Carta a Joseph Bloch, de 1890. Ou seja, a organização social da produção material da existência é um processo com múltiplas determinações. Se é assim para processos históricos em geral, por que não haveria de ser para a dinâmica das classes sociais?

A organização da produção econômica e os lugares dos agentes neste processo condicionam a determinação de classe e a sua existência como possibilidade. Mas é na esfera da política como elemento central na teoria marxista, como instância que possibilita as transformações sociais, ou seja, que possibilita a luta política de classes como motor da história, é nessa instância que reside o elemento central do processo de constituição das classes sociais e, em última instância, da luta de classes entendida como luta política pelo poder de Estado e pela destruição do Estado burguês, ou seja, em outros termos, a luta de classes como motor da história. Sem a ação política decorrente de certa situação de classe, a determinação econômica como condicionante no processo de constituição da classe se torna uma abstração vazia. Portanto, no exame da situação das trabalhadoras e trabalhadores, é preciso considerar como determinação condicionante o lugar que lhes foi relegado dentro da estrutura social de produção e reprodução do capital, que lhes amarra a possibilidade concreta de vivenciar a experiência da exploração, além da relação potencialmente conflituosa entre capital/trabalho. Esse conjunto de elementos constitui a sua determinação condicionante principal de classe, mas, não garante a sua constituição em classe social, embora possa ser o prelúdio desse processo. Se a determinação principal, que se impõe em última instancia como necessidade, não é suficiente para estabelecer os contornos da classe, nem necessariamente garantem uma ação coletiva motivada por interesses fundamentais de classe, que revertam sua condição de agente explorado, é preciso lançar luz sobre os aspectos que atuam sobre a determinação principal. Esses outros aspectos podem contribuir para explicar melhor ou a existência da classe ou o processo de constituição do operariado em classe. De um modo geral, sobre a determinação principal, atuam elementos sobre-determinantes decisivos, como por exemplo, a política, a cultura, as ideologias e o modo de vida, todas relacionadas à sua especificidade histórica dentro do contexto social que determinados segmentos operários se encontram.

Voltemos agora à questão que abre nosso texto: quem tem medo da classe trabalhadora? Quem tem medo da ação política integrada à constituição das trabalhadoras e trabalhadores como classe social? Em última instância, quem tem medo desse processo é a burguesia organizada em classe, que transformou o Estado à sua imagem e semelhança justamente para garantir um processo contínuo de desorganização das trabalhadoras e trabalhadores como classe social. Por fim, com base no exercício feito até aqui, cabe uma última reflexão sobre a conjuntura brasileira. Sem espaço para estabelecer aqui as mediações necessárias com a lógica apresentada até aqui, a reflexão pode aparecer como um raio em céu azul, mas não posso evitá-la… Vejamos: Por que o Partido dos Trabalhadores (PT) não opera politicamente para organizar a classe trabalhadora no Brasil frente às dificuldades que enfrenta (relações com o congresso e com determinadas frações da burguesia)? Por que o Governo Lula III e seu bloco de apoio continuam investir na conciliação de classes como estratégia de governabilidade? Por que o Governo Lula III e seu bloco de apoio não usam o poder que lhe foi conferido pelas urnas para apontar rupturas necessárias? Só visualizamos uma resposta: porque atualmente que têm medo das trabalhadoras e trabalhadoras constituídos em classe; porque atualmente operam politicamente contra os interesses fundamentais deste grupo social; porque, em última instância, apesar dos conflitos internos existentes no bloco no poder, tendem a atuar como operadores políticos da burguesia. Urge, portanto, reconfigurar o campo classista no Brasil. É preciso um espaço e um momento para pensar e discutir coletivamente com as forças revolucionárias no país um arco de alianças com tática e estratégia minimamente unificados em direção à luta política revolucionária pelo poder de Estado. Sem isto será praticamente impossível o processo de constituição das trabalhadoras e trabalhadores em classe social em luta.

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