Ponte Salvador-Itaparica: A Alegoria do Caos

Reprodução: Poder 360

Por Manuella Logrado

Ponte Salvador-Itaparica: A Alegoria do Caos – O ano é 2021. O Brasil completa 1 ano do início da pandemia de COVID-19, que culminou na maior crise sanitária e socioeconômica enfrentada pelo país, e o cenário não poderia ser pior: colapso do sistema de saúde, recorde no índice de desemprego, moradia comprometida, retorno ao mapa da fome e a classe trabalhadora cada dia mais onerada em uma batalha pela sua sobrevivência. Na Bahia, não diferente do resto do país, as consequências da pandemia estão nas feições do trabalhador exausto que luta diariamente por garantias básicas como saneamento, alimentação, saúde e até manter um teto sobre sua cabeça. Mas algo chama ainda mais atenção neste cenário caótico: o prosseguimento da obra de proporções alegóricas da ponte Salvador-Itaparica.

Em 12 de novembro de 2020, o Governo do Estado da Bahia, sob a gestão burgo-petista de Rui Costa, assinou o contrato para a construção da ponte Salvador-Itaparica em uma Parceria Público-Privada (PPP) firmada entre o governo estadual e 3 empresas chinesas: China Communications Construction Company – CCCC, South America Regional Company e China Railway 20 Bureau Group Corporation. Os contratos de consórcio firmados em parceria público-privada funcionam, basicamente, com o aporte financeiro do Estado e a contrapartida das empresas da iniciativa privada para a execução da obra.

No caso da ponte Salvador-Itaparica, o contrato firmado definiu que o Estado garantiria o aporte financeiro de R$1,5 bilhões para a realização da obra, que totaliza R$7,7 bilhões, sendo o restante financiado pelas três empresas chinesas que gozarão de 35 anos de concessão, sendo 5 para construção da ponte e 30 de operação e exploração de pedágio para carros no valor inicial R$45,00, sendo este valor variável para outros meios de transporte terrestres. Vale mencionar a estimativa de que a ponte receba 28 mil veículos por dia já no início do seu funcionamento. Ainda em relação ao contrato de concessão, as empresas gozarão de benefícios fiscais como a suspensão da cobrança de PIS/COFINS, redução de 75% no valor do Imposto de Renda sobre pessoa jurídica (IRPJ) e Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) à alíquota de 5%.

O desenho de parcerias como a que foi firmada para a construção da ponte é uma expressão fiel da instrumentalização do aparelho estatal em favorecimento dos interesses da classe burguesa, através da utilização de uma verba pública que poderia e deveria ser aplicada ao melhor interesse e às necessidades imediatas da população. Para o Estado, significa subtração de orçamento sob a teórica justificativa de promoção do desenvolvimento econômico e facilidade para os cidadãos; para as empresas, significa um lucrativo e rentável investimento, com diversos benefícios fiscais e, ainda, contando com o investimento direto do Estado na forma de um generoso aporte financeiro, como é caso do montante de R$1,5 bi a ser desembolsado pelo governo da Bahia para a obra.

O governo Rui Costa justifica a obra de proporções colossais, com seus 12,4 km de extensão, pela redução de 40% do tempo de viagem terrestre entre as duas cidades, travessia mais comumente realizada, hoje, por lancha e ferry boat – que transporta veículos. Outro ponto defendido pelo Governo do Estado é a geração de empregos durante as obras, bem como o desenvolvimento da região da Ilha de Itaparica, abrindo-se assim uma nova região de expansão do município de Salvador.

Ocorre que uma obra dessa dimensão e com um aporte estatal tão astronômico, nos moldes firmados, pode apresentar três problemas centrais: o atraso das obras, tradicional em empreendimentos deste porte; o lapso temporal para a conversão de benefícios reais à população; e o sobrepreço combinado ao descompasso entre a proporção da obra realizada e o benefício gerado à população. É justamente a partir destes três pontos de tensão que o castelo de cartas do Governo do Estado da Bahia começa a se desfazer, revelando as verdadeiras arestas deste projeto de alto valor que usurpará dos cofres públicos verba que poderia ser destinada aos problemas imediatos da população, amplificados pela pandemia.

O primeiro ponto passível de crítica na construção da ponte é o lapso temporal. Estima-se 5 anos para sua construção, para que a partir daí, por mais 30 anos, as empresas concessionárias possam explorar o seu investimento através do pedágio vultoso de R$45,00 por veículo familiar. Ou seja, serão no mínimo 5 anos, desconsiderando eventuais atrasos, para que esta obra comece a atingir seu principal objetivo de transformar Itaparica em zona de expansão e desenvolvimento do município de Salvador. Serão 5 anos de espera para que a população possa sentir os ditos impactos positivos da obra que se resumem à redução de deslocamento e expansão econômica.

A fome, o desemprego, a saúde pública, a falta de saneamento básico e a moradia não esperam pelo tempo da obra para novos investimentos, tampouco se solucionam com a sua conclusão. Durante esse período, são R$1,5 bilhões que estão saindo dos cofres públicos diretamente para uma obra que trabalha com uma projeção de desenvolvimento econômico incerta, ignorando as demandas urgentes do povo, latentes, se agravando mais a cada dia com o acirramento das desigualdades no atual cenário nacional.

Quanto ao sobrepreço, este chegou a ser relatado pelo Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE), que noticiou haver custo “excessivo frente ao mercado”, verificando-se um excedente na quantia de R$241,4 milhões no contrato firmado. Foi colocado em xeque, inclusive, a suspensão da licitação através de medida cautelar, requerendo a definição de condições contratuais menos vantajosas aos cofres públicos.

O prejuízo pode ser ainda maior, tanto na ordem financeira, quanto no desenrolar prático da obra: uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem consolidado entendimento de que os Tribunais de Contas podem propor suspensão de licitações, bem como da execução de contratos, quando compreenderem dano ao tesouro público, caso o pleito do TCE seja acolhido a obra poderá ser interrompida mesmo que já esteja em andamento, o que implicaria em mais um fator de atraso na execução e, no pior dos cenários, culminaria no abandono do empreendimento.

O último e principal problema que permeia a obra de construção da ponte Salvador-Itaparica está na seara da sua efetividade e o abissal descompasso dentro o investimento do Governo Rui Costa e a conversão da obra em benefícios para a população. Muito se fala em desenvolvimento econômico, sendo esta a tônica do Governo do Estado da Bahia para sustentar o prosseguimento do procedimento licitatório e sua execução em uma obra de proporções tão colossais. Mas é preciso muito cuidado com esta narrativa neoliberal de progresso e desenvolvimento pautado tão somente em obras, que, além de atropelar fatores importantes como tempo e sobrepreço, também não se baseia em nada mais do que uma expectativa projetada e narrada sem qualquer lastro e evidência na realidade.

No interessante estudo “Infra-estrutura e desenvolvimento: o que se pode esperar da ponte Salvador-Itaparica?”, encampado pelos administradores Francisco Lima Cruz Teixeira e Sílvio Vanderlei Araújo Sousa, todo o projeto do Sistema Viário do Oeste (SVO), no qual se encontra a construção da ponte Salvador-Itaparica, é ricamente analisado através de dados que comprovam não existir qualquer evidência de contribuições significativas, nesta construção, para a mitigação dos quadros de desigualdade na região.

Já de início, os pesquisadores chamam a atenção para o fato de que a obra da ponte privilegia apenas o modal rodoviário, pois é voltada para veículos sobre rodas. Sendo assim, estão previstas para o futuro duas pistas de transporte coletivo que poderão ser construídas nas modalidades Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) ou Bus Rapid Transit (BRT); porém, estas pistas só poderiam ser implantadas com a conclusão da obra, o que exigiria novo processo licitatório e investimentos que não estão abarcados na quantia desembolsada pelo Estado para a construção do SVO. Ou seja, mais dinheiro além dos já mencionados R$1,5 bilhões. Ademais, além de representarem novos investimentos, estas duas pistas não são nem de perto uma prioridade do Governo do Estado, em detrimento, assim do transporte de massas que poderia ser amplamente utilizado pela classe trabalhadora.

Os pesquisadores seguem apontando que a construção da ponte irá centralizar uma demanda que não é só de Salvador, mas de toda a sua Região Metropolitana, podendo gerar um novo gargalo de tráfego, afetando negativamente a qualidade de vida da população de Salvador. Observando esta problemática, torna-se irremediável a consideração de que alternativas similares e mais baratas à nível de transporte poderiam ter sido adotadas pelo Governo do Estado, como a construção de uma nova saída para Salvador através de uma via de contorno da Baía de Todos os Santos, contemplando inclusive uma via férrea para passageiros e cargas, conectando-se também com a Ferrovia Centro Atlântica e escoando a produção das indústrias da região. Mais uma vez, os caminhos lógicos são completamente desafiados na escolha do projeto mais oneroso, de demorada execução e no pior momento possível para ser colocado em prática.

O estudo desvela, até, como a concepção de desenvolvimento socioeconômico para o Baixo-Sul e o Recôncavo a partir da ideia de que Itaparica se tornaria um vetor direto de expansão de Salvador, trata-se de uma projeção vazia se considerados os dados territoriais da região. A simples ideia de translado da população sem o devido investimento em infra-estrutura e políticas públicas básicas, pode, em verdade, ampliar os problemas urbanos e sociais que já existem na região.

A ideia de vetor exponencial de crescimento da região implica em uma possível demanda de habitação, o que, em verdade, não ocorre, dada a falta de investimento em infraestrutura como educação, saúde e segurança. Sendo assim, ao invés de contribuir para o desenvolvimento da regiões do Baixo-Sul e Recôncavo, a obra pode agravar a questão da concentração, amplificando as desigualdades no estado.

Por fim, a obra de construção do Sistema Viário do Oeste implicará na desapropriação de diversos terrenos vazios da região, que devem entrar na composição financeira do projeto, o que revela uma amarga ironia em um momento de profundo acirramento das desigualdades sociais na Bahia por conta da pandemia, momento este onde a população luta por moradia digna. Numa crise sanitária deste porte, isso pode representar a diferença entre a vida e a morte para o trabalhador.

Observando o empreendimento em todos os seus aspectos, suas incongruências e as falsas promessas à população, fica evidente o caráter burguês, elitista e direitista que assumiu Rui Costa em sua gestão do Estado da Bahia. Um governo que se preocupa exclusivamente com os interesses dos ricos e empresários sem um olhar atento para a população, que às duras penas vem enfrentando a pandemia, numa corrida contra o tempo para garantir a sua sobrevivência sem qualquer subsídio do Governo do Estado e do Governo Federal.

Em tempos de normalidade sanitária, a obra do Sistema Viário do Oeste, por sua proporção colossal, sobrepreço e acima de tudo pela baixa efetividade na conversão do desenvolvimento que se propõe, já mereceria todos os questionamentos apontados. Mas a sua realização no cenário atual de pandemia se revela como um projeto especialmente cruel: o imenso monstro de concreto e metal que irá alterar a biodiversidade da Baía de Todos os Santos, representa os 12,4 km do capricho de um governo que deixa a classe trabalhadora à própria sorte, dando primazia aos interesses da iniciativa privada. Que não se envergonha do desembolso da astronômica cifra de R$1,5 bilhões, enquanto deixa faltar em políticas básicas de sobrevivência para a população; mas, muito pelo contrário, se orgulha em implantar uma alegoria em meio ao caos.

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