Perspectiva feminista classista da pauta da pobreza menstrual

Foto: Monika Kozub

Foto: Monika Kozub

Por Ariana Rocha e Caroline Birrer

No dia 7 de outubro Bolsonaro e o ministro da saúde Milton Ribeiro vetaram os trechos do projeto de lei n° 4.968, que instituiria o “Programa de proteção e promoção da saúde menstrual”. Os trechos tratavam da distribuição gratuíta de absorventes e outros insumos básicos para pessoas em vulnerabilidade social, situação de rua, internas do sistema penitenciário e estudantes da rede pública de educação, além da inclusão de absorventes nas cestas básicas. O veto trouxe à tona o debate sobre a pobreza menstrual.

Pobreza menstrual é um conceito que trata de pessoas que menstruam e vivenciam a falta de acesso à itens de saúde, higiene, conhecimento sobre a menstruação ou acesso a infraestrutura de saneamento. Segundo relatório da ONU Mulheres 1,25 bilhões de meninas e mulheres não têm acesso a banheiros seguros e privados e 526 milhões não possuem banheiros onde vivem. No Brasil, o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, publicado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNIFPA) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) apontou que 22% das meninas e mulheres entre 12 e 25 anos não tem acesso a produtos confiáveis para a menstruação, cerca 1,5 milhões vivem em casas sem banheiros, 200 mil estudantes frequentam escolas sem nenhum item de higiene, e 1,24 milhões não têm acesso a papel higiênico nas escolas.

A situação de vulnerabilidade é maior em escolas estaduais: 77% dos/as estudantes não possuem acesso a banheiros. Ainda, 66% das estudantes sem acesso a papel higiênico nas escolas são negras. Em comparação com as regiões do país as chances de falta de insumos de higiene são 271% maiores na região norte do que na região sudeste. Em pesquisa do IBGE de 2013, 2,88% das meninas e mulheres relataram ter deixado de realizar atividades por causa da menstruação, enquanto dados da ONU apontam que 1 entre 4 estudantes já faltaram às atividades escolares por não ter absorventes. Das 37.828 mulheres em regime de encarceramento no Brasil, 24,9% estão em unidades que não contam com estrutura prevista no módulo de saúde, deixando de atender à Lei de Execução Penal e Portaria Interministerial.

Vivemos a maior taxa de inflação desde a criação do plano real, com metade da população brasileira enfrentando a insegurança alimentar. Nesse cenário, o custo mensal da compra de absorventes chega a 30 reais por pessoa, tornando-se insustentável. Assim, pessoas que menstruam e não podem arcar com os custos de insumos de higiene, ou que estão em instituições de privação da liberdade e não tem acesso a esses produtos, recorrem à sacolas plásticas, miolo de pão e tecidos de roupas. Essas práticas causam problemas de saúde como infecções do trato vaginal ou urinário e podendo ocasionar a morte em casos da síndrome do choque tóxico.

Políticas públicas que busquem amenizar a pobreza menstrual são necessárias. Não só a distribuição de absorventes, como também o avanço no acesso à infraestrutura, ampliação das unidades de saúde da família, avanço na estrutura das escolas públicas e inclusão de aulas de educação sexual e menstrual. Porém, a problemática é maior do que mera falta de vontade política dos governantes ou desenvolvimento econômico dos países. O próprio relatório da UNICEF/UNFPA, introduz o debate citando que países desenvolvidos possuem pessoas em pobreza menstrual entre aqueles mais pobres, mesmo países centrais do capitalismo, como EUA e Reino Unido, não conseguiram erradicar a pobreza. Isso mostra que a questão não é pontual ou apenas dos poderes políticos de forma individual, mas sim constituinte do sistema capitalista vigente.

As opressões não são mera permanência não quista de períodos históricos anteriores ao capitalismo. Pelo contrário, opressões como machismo, racismo e LGBTQIA+fobia estruturam e assumem um papel central no processo de exploração de classes dentro desse sistema. Como diz Angela Davis (1977, p 4-5): a raça é a maneira como a classe é vivida, da mesma forma como o gênero é a maneira como a raça é vivida. As opressões agem delimitando os setores mais explorados e precarizados no sistema capitalista e são essenciais na dinâmica predatória do mesmo.

Toda formação social revela um modo de produção dominante, afinal. Logo, tem-se, como resultado, a impossibilidade de manutenção de uma sociedade sem a reprodução das condições materiais da produção e sua ideologia, a qual existe para dar manutenção às hegemonias defensoras desta estrutura forjada sobre as bases produtoras de riqueza, ficando no topo homens brancos e heterocisnormativos.

Se é verdade que pessoas negras e mulheres das classes dominantes também sofrem racismo e machismo, sabemos que essa dinâmica particular é diferente para a classe trabalhadora. Enquanto para as mulheres burguesas o debate se dá ao redor da possibilidade de assumir propriedade e direção de seus bens, para as mulheres da classe trabalhadora o debate está na sua própria sobrevivência.

Dessa forma, o conjunto da classe trabalhadora é alvo das políticas neoliberais e sanha por lucros das classes dominantes. No Brasil, enquanto temos recorde de desemprego e subemprego e voltamos ao mapa da fome, temos o aumento da riqueza de milionários tornando-se bilionários, bancos batendo lucros recordes. Em contrapartida, a classe trabalhadora pena para conseguir se alimentar, filas são formadas para comprar ossos, ao passo que os setores do capital financeiro e monopolista ampliam seus lucros e mantém Bolsonaro no poder. Toda a classe trabalhadora sofre no momento, porém os setores mais atingidos são as mulheres pretas e pobres que constituem aquelas que mais perderam empregos e são chefes dos lares no mapa da fome. Informações como esta radicalizam a necessidade de unidade e organização contra a opressão do heterocispatriarcado, do racismo e do capital. O duplo atravessamento das desigualdades impostas pelo capitalismo às mulheres e pessoas com útero pertencentes à classe trabalhadora, intensifica-se quando essas pessoas são pretas.

É importante destacar que higiene menstrual faz parte da gama de direitos negados historicamente como instrumento de controle, neste caso, direito sexual e reprodutivo. Ela só será possível quando todas as pessoas que menstruam possuírem acesso material e psicossocial para gerir com conhecimento, saúde e dignidade seu ciclo menstrual. A pobreza menstrual é um sintoma berrante desse processo de precarização da condição de vida das mulheres cis, homens trans e pessoas não binárias da classe trabalhadora. Ela não se refere apenas a privação de absorvente, mas a uma falta inteira de direitos que tratam de formar e informar sobre processos fisiológicos inerentes aos corpos menstruantes, até fatores biopsicossociais que são desenvolvidos pelas restrições impostas à condição de estar sangrando, como o isolamento social deste período, por exemplo. Tais privações ferem a autonomia e dignidade humana, impactando na totalidade da vida das pessoas que compõem este setor, sem acesso a itens básicos para o exercício reprodutivo, quiçá à produção. É fundamental a luta para superar este modo de produção e reprodução da vida, e urgente a construção de uma outra forma de sociedade, sem classes e sem categorizações de raça, gênero e sexualidade.

REFERÊNCIAS
https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/10/11/Quais-s%C3%A3o-os-n%C3%BAmeros-da-pobreza-menstrual-no-Brasil
https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/07/o-que-e-pobreza-menstrual-e-por-que-ela-afasta-estudantes-das-escolas
DAVIS, A. As mulheres negras na construção de uma nova utopia. I jornada cultural Lélia Gonzalez, 13 dez. 1977. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/

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