O Policial é Inimigo da Segurança Pública

Foto: Gaudio Fotografia

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Por João Coimbra

Antigamente, os circos tinham entre suas atrações a figura do “domador de leões”: com uma roupa cintilante, um chicote em uma mão e uma cadeira em outra, dominava a fera que, protestando com urros ameaçadores, não o devoraria. O domador, por ter sobrevivido, recebe as palmas do público.

É possível que o leão fosse treinado, dócil, incapaz de ferir um ser humano. Mas, a atração do circo dependia da ilusão do perigo, da demonstração de coragem, e – é claro – de ver um leão de perto.

É importante pensarmos sobre como a ilusão se dá numa apresentação como essa: o domador é real, o leão é real, os rugidos graves e o assobio do chicote também são reais. Sendo assim, onde está a ilusão?

Em 2020, vimos o que só poderia ser descrito como um “domador de policiais”: um empresário morador do Alphaville, em São Paulo, enfrenta um policial armado contando apenas com ofensas, bravios e menções a sua conta bancária.

Assim como acontece com sua contraparte circense, não há perigo real – somente a ilusão dele. O “domador de policiais” também é real, o policial e suas armas também são, e ainda assim o espetáculo não corre nenhum risco de terminar em sangue. Onde está a ilusão?

“Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville”, disse o branco paulista. E este é o segredo na sua forma mais crua: o leão é treinado desde o seu nascimento a nunca morder seu domador. O domador, por sua vez, não seria capaz de enfrentar qualquer leão que visse a sua frente, somente aquele que nasceu para ser derrotado.

O policial tem uma função única: ser derrotado pelo rico. Ele não tem escolha, posto que sua existência foi desenhada como uma fronteira entre a cidade do rico e a cidade do pobre. É o que escreve Frantz Fanon: “O mundo colonial é um mundo compartimentalizado. […] A linha que o divide, a fronteira, é representada pelos quartéis e departamentos de polícia. Nas colônias, o agente oficial, legítimo, o porta-voz do colonizador e do regime de opressão é o agente de polícia ou o soldado”.

 

O “mundo colonial” que Fanon se refere é aquele que sofreu uma invasão europeia em determinado momento da história, e até hoje não resolveu as mazelas trazidas por esses invasores. No Brasil, a colonização significou o genocídio de povos indígenas, a escravização de povos africanos, o roubo de terras e recursos naturais – e o estabelecimento de um regime jurídico que justificasse todos os crimes coloniais, chamando-os de “ordem pública”.

Hoje, a polícia serve exatamente para garantir essa mesma “ordem pública”. Protegem os latifúndios, atacam os indígenas, atacam os negros. Sua presença é uma presença violenta, suas armas são armas de guerra, seu treinamento se baseia em matar quem “deve” morrer.

Nas palavras de Fanon, “o agente do governo usa a linguagem da pura violência. O agente não alivia a opressão ou mascara a dominação. Ele as ostenta e demonstra com a consciência tranquila do operador da lei, e traz a violência para os lares e mentes do sujeito colonizado”.

O policial, portanto, está preso na própria violência. Um policial que não é um brutamontes não está cumprindo seu dever de garantir a “ordem pública”; um policial que não mata, não deixa clara a dominação de classe.

Não estamos falando de teoria. Salvador é a capital com a maior taxa de negros mortos pela polícia, como indicam os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ao mesmo tempo, os bairros mais negros de Salvador são os que tem menos acesso a políticas públicas, como prova a pesquisa efetuada pelo Iniciativa Negra.

A pobreza da população é um projeto político. A falta de infraestrutura, as péssimas condições de transporte e o desemprego são agravadas pela presença assassina da viatura da polícia. Nossa cidade faz parte do mundo colonial, são duas cidades onde a farda bege serve de fronteira.

Por isso, é falsa toda proposta de reforma da polícia militar. Não há como resolver a questão da violência policial quando esta é a razão pela qual a instituição foi criada. O policial militar não diminui a atuação do crime organizado, porque são eles mesmos quem fornecem as armas e munições para estes grupos. O policial militar não trava uma “guerra às drogas”, porque há mais drogas na Pituba que no Nordeste de Amaralina, mas é na periferia que o policial atira. Somos nós quem morremos.

O “domador de policiais” entende que, no seu processo de adestramento, o agente é condicionado a não olhar nos olhos do branco, para não o ameaçar. O “domador de policiais” compreende que a polícia não serve para garantir a segurança pública, mas a segurança dele.

Nós, classe trabalhadora, precisamos entender que nossa segurança pública está ameaçada pelo policial militar. A segurança das nossas crianças, dos nossos idosos e a nossa própria dependem da nossa mobilização política. Precisamos conversar entre nós mesmos, descobrirmos nossa força coletiva e nossa capacidade organizacional.

Se nossa pobreza é um projeto político, precisamos construir outro projeto político, de força ainda maior, que tenha como objetivo central a erradicação desta pobreza. Isso significa dizer acabar com o mundo colonial, o que despertará a ira dos ricos, dos “domadores de policiais”.

Mas, diferente do domador de leões, o “domador de policiais” também se deixou enganar pela ilusão. Ele acredita ser o mais valente, acredita que suas ordens soberbas e sua conta bancária são capazes de dobrar a todos nós.

O branco, o colonizador, o rico, perdido na sua ilusão, descobrirá em breve que nós não temos medo de chicote.

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