Nota sobre as grandes cidades

Por Marcela Carvalho

 

Ainda em seus primeiros escritos entres os anos de 1842 e 1845, Friedrich Engels debruçava-se sobre a análise da produção da cidade e do modo de vida urbano da classe trabalhadora inglesa por meio do seu texto As Grandes Cidades, dedicado a publicação de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.  Assinalando as formas de aglomeração da população da cidade moderna, palco da “guerra social, a guerra de todos contra todos, declarada abertamente”, o texto remonta o que Lefebvre chamaria posteriormente de uma “descoberta da realidade urbana em todo o seu horror”. Mesmo que a crítica construída por Engels leve em consideração as particularidades das paisagens das cidades inglesas, como o arrebatamento causado pela beleza do Rio Tâmisa, noventa anos mais tarde, escritores como Virginia Woolf retratariam “o fim do clima de romance” em texto de abertura da publicação Cenas Londrinas, chamado As docas de Londres:  ancorados os navios, a cidade do capital em 1930 era a mesma cidade de “aparência decrépita”, que aquela retratada por Engels, do espaço da vida “atomizado” em sua miserabilidade pela ordem da acumulação capitalista.

Dos contrastes urbanos aos olhos do teórico revolucionário, evidenciava-se a situação dos bairros operários – como o bairro de St. Giles lugar onde “as portas são inúteis pois nada há para roubar”¹ – frente ao luxo dos bairros aristocráticos de Edimburgo, tornando notória a completa “dissimulação de uma burguesia” que, para além de explorar a miséria dos operários, associava-se conscientemente à falta de iniciativa da administração pública em melhorias urbanas.

Eram duas cidades em uma: de um lado, a decadência do antigo centro urbano com seus alojamentos e albergues noturnos, onde “empilhavam-se” trabalhadores desabrigados, situação facilmente associada ao panorama de nascimento dos conjuntos de moradia de concentração de outros tantos operários, onde as habitações precárias acomodavam famílias inteiras sob um único cômodo. O ambiente construído convivia com a má qualidade do ar, bem como com a irregularidade das ruas e calçadas lamacentas, essas mesmas ruas que configuraram as vielas como espaço de mercado de frutas e outros alimentos de “péssima qualidade e dificilmente comestíveis” devido à própria condição da urbanidade.  Logo ali do outro lado, avistava-se a pretendida “boa-ordem”, ou aquilo que Engels apontou como “disposição urbana hipócrita”, das principais ruas das cidades inglesas, tomada pelo comércio da média e alta burguesia, bairros por onde se consolidam as habitações dos proprietários de terra, com seus ajardinamentos laterais e frontais, e onde certamente estarão concentrados os investimentos públicos de condições razoáveis de saneamento caracterizando os lugares da aristocracia em seu “aspecto limpo e decoroso”, a ponto de invisibilizar toda a pobreza mencionada acima.

É em consequência dessa análise que a máxima proferida por Engels – ao afirmar que “o que é verdadeiro para Londres (…) é verdadeiro para todas as grandes cidades”² – demonstrará como a segregação socioespacial e a decomposição urbana é fruto da dinâmica entre a exploração da divisão do trabalho e do processo de acúmulo que se dá na explosão do tecido urbano enquanto mercadoria. E esta não é uma relação causal.

Esse modo pelo qual o Capital desenhou “o cinismo da propriedade”³ tem como álibi a razão mecanicista enquanto pano de fundo da conformação de um modo de operação do pensamento urbanístico controverso: Com seu caráter progressista seguido pelo sentido de “ordenação urbana” – sob a lógica de transformação funcionalista, geometrizante, inflexível, e fundamentalmente, mítica e repressiva – discurso completamente alicerçado sobre alegações de ordem higienista, social e de “segurança”, “as cidades” nada mais são que o resultado da redistribuição da mais-valia em escala global.

Disso se evidenciam também as bases que fundamentam a política urbana enquanto instrumento de desenvolvimento das cidades em seu caráter contraditório. Se por ora, as diretrizes de tal instrumento alimentam certo modo de operação sob determinada linguagem projetual usual identificada enquanto ordem urbana ideal, por outro, contém nela mesma a violência, o silenciamento e o abandono que a própria manutenção do estado burguês incide não apenas na desordem enquanto imagem da real deterioração da vida humana, mas fundamentalmente, as migalhas que se revelam em gestos pontuais de políticas paliativas que buscam apenas conter as reivindicações das populações de seus próprios direitos e da dignidade acerca do espaço que esta mesma população habita.

Não será qualquer concepção Proudhoniana embasada sobre a reversibilidade ou retorno dos investimentos em aluguéis em habitações precarizadas para as mãos da classe trabalhadora, que despontará em mudanças estruturais radicais no que diz respeito à recuperação do equilíbrio da sociedade urbana em todo o mundo. Das grandes cidades, torna-se urgente fincar nossas elaborações e práticas sobre processos históricos de transformações territoriais como aquelas experienciadas e refletidas a longo prazo das cidades socialistas comprometidas com mudanças de imensa qualidade com participação popular. Pleitear e refletir a produção em massa das cidades sob novas categorias conceituais diretamente relacionadas aos aspectos econômico, organizativo, ideológico, cultural, científico e técnico a partir da esfera de produção material, elaboração que insurge da dialética entre as formas de produção, que em suas diferenciações, integram-se e complementam-se, é o nosso ponto de partida. Aqui reside aos comunistas o labor da resposta e a esperança necessária sobre o que tanto se conclama enquanto direito à cidade em suas diversas faces.

 

Notas:

¹ “As Grandes Cidades”. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Friedrich Engels.

² Ibidem.

³ “A questão da moradia”. Friedrich Engels.

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