Entrevista do Momento: Sofia Manzano

Por Milton Pinhero
Sofia Manzano é economista, professora da UESB, autora do livro Economia política para Trabalhadores (São Paulo: ICP, 2ª Ed., 2019) e doutora em História Econômica (USP).

 

O MOMENTO – A desigualdade econômica aumentou muito nas últimas décadas em toda parte do mundo, como explicar esse fenômeno?

SOFIA MANZANO – Primeiro devemos entender que os termos igualdade/desigualdade envolvem diversos aspectos. Desde as questões de gênero, raça, etnia, que estão vinculadas mais profundamente com aspectos culturais, passando pelo fato de cada ser humano ser um ser único, portanto diverso de qualquer outro, até a questão da desigualdade econômica que afeta a possibilidade de existência da população. A desigualdade econômica é uma característica de toda sociedade de classes, uma vez que a classe dominante tem maior possibilidade de garantir sua existência justamente por explorar a classe dominada que, por qualquer evento adverso, pode morrer de fome.

No capitalismo, essa desigualdade persiste, mas ganha características diferentes. A primeira delas é que a classe trabalhadora, a classe dominada, na medida em que o capitalismo avança, só tem um meio de garantir sua existência que é por meio do acesso à renda monetária. A segunda diferença é que o capitalismo é a única formação social em que a crise não é uma crise de escassez, mas sim uma crise de abundância. Historicamente, a humanidade passou por crises de fome, doenças e morte em grandes proporções decorrentes de escassez de recursos para garantir a vida. Hoje, o que nós presenciamos é o crescimento da morte por fome e doenças em meio a uma superprodução de riquezas, também superacumulada em poucas mãos.

O MOMENTO – Qual é o debate mais relevante que aparece para enfrentar essa crescente desigualdade?

SOFIA MANZANO – Na área econômica há duas grandes correntes de pensamento que se situam no campo da manutenção da ordem. A primeira delas, a chamada ortodoxia econômica e vinculada ao pensamento neoclássico, acredita que todos os problemas econômicos e sociais serão resolvidos pelo mercado (a mão invisível do mercado) e que as desigualdades decorrentes dessa interação são benéficas, pois ajudam na competição. Em termos metodológicos, essa corrente pressupõe que a sociedade é formada por indivíduos racionalmente independentes e que tomam suas decisões no sentido de maximizar suas utilidades marginais. Assim, se o resultado da interação de indivíduos livres e iguais for uma situação de desigualdade, é puro mérito.
A segunda corrente dentro da ordem capitalista são os chamados heterodoxos. Essa corrente é bastante heterogênea e varia com o tempo, mas, em termos gerais, os heterodoxos sabem que o sistema capitalista provoca desigualdades em meio à abundância, no entanto, não acreditam que possa haver um sistema alternativo. Assim, procuram, a cada momento, apresentar soluções intermediárias para corrigir as mazelas do capitalismo. As principais propostas dessa corrente para enfrentar a crescente desigualdade incluem desde a “renda básica de cidadania”, um sistema de tributação progressiva com ampliação do gasto público social, até o empreendedorismo e o “empoderamento” como formas a capacitar a população pobre para competir melhor no livre mercado. De forma geral, essa corrente entende que o capitalismo provoca a desigualdade, mas procuram medidas paliativas para tentar minorar, e não resolver, essa questão.

O MOMENTO – Como o marxismo entra nesse debate?

SOFIA MANZANO – O marxismo compreende o sistema capitalista como uma totalidade que não pode ser pensada apenas no campo da economia pura. Mesmo no interior do que se chama economia, é apenas na aparência fenomênica que a relação se dá entre indivíduos livres e iguais, uma vez que, de um lado estão os proprietários do capital e de outro os proprietários da força de trabalho. Ou seja, é uma relação de classes e não de indivíduos. Além disso, como a produção de toda e qualquer riqueza, em qualquer sociedade, só pode ser resultado do trabalho humano, o marxismo pode demonstrar a forma como, em cada época histórica, a riqueza produzida pelos trabalhadores é apropriada pela classe dominante.

No capitalismo, essa apropriação se dá por meio da relação de trabalho que passa pelo mercado. O assalariamento é a forma clássica de exploração do trabalho quando o trabalhador, ao vender sua força de trabalho ao capitalista e cumprir sua jornada de trabalho, produz não só o valor necessário para pagar sua força de trabalho quanto um valor excedente – ou, a mais-valia – que é apropriada pelo capitalista. No entanto, outras formas não clássicas de trabalho também são integradas no processo de reprodução do capital, pois todas as relações passam pelo mercado e, mesmo que a riqueza seja produzida no processo de trabalho, ela é apropriada na circulação, no mercado. Assim, o sistema financeiro, por exemplo, que não produz um cêntimo de valor, apropria-se de volumes imensos de riqueza.

Por isso, é apenas o marxismo que desvenda as reais causas da desigualdade a partir da distinção das classes sociais e, sobre isso, é importante diferenciar o que o marxismo compreende por classes sociais e as demais correntes do pensamento dominante. Em termos econômicos, as correntes da ordem do capital dividem os indivíduos em classes de acordo com a quantidade de renda que cada um recebe. Por isso uma pessoa pode estar, em um determinado ano, na classe A ou B e dois anos depois na classe D ou E, se ela perder o emprego, por exemplo. Para o marxismo, a classe social que o indivíduo pertence independe da renda que ele ganha, depende da posição que ele ocupa no processo de produção, ou seja, se ele é proprietário do capital – ele é capitalista; ou se ele possui apenas a força de trabalho para vender, ele é trabalhador, independentemente do quanto ele ganha de salário.

O MOMENTO – Em que medida as políticas públicas influenciam na desigualdade?

SOFIA MANZANO – Sem dúvida as políticas públicas que promovem redistribuição de renda melhoram as condições de vida da população mais pobre e ajudam a diminuir a desigualdade, mas de forma alguma elas sozinhas resolverão o problema. Primeiro porque o problema é do próprio sistema, ou seja, enquanto houver o sistema do capital, as desigualdades serão permanentemente repostas. Em segundo lugar, as políticas públicas dependem da luta de classes, quer dizer, elas são resultado da atuação das forças políticas em luta, podem mudar, de acordo com qual classe está avançando nessa luta, que é permanente. Hoje presenciamos um avassalador avanço da classe dominante sobre os direitos dos trabalhadores. Não só no Brasil, mas em todo o mundo, os trabalhadores estão perdendo seus direitos e isso é resultado da luta de classes.

Durante o último século os trabalhadores conseguiram ampliar seus direitos e, mesmo que isso não tenha sido homogeneizado em toda parte do mundo, criou a percepção de que se podia conviver com o capital numa “parceria conflitiva”. Os reformistas dominaram as organizações dos trabalhadores e abandonaram a luta revolucionária. Com o aprofundamento da crise do capital e o recuo da classe trabalhadora no campo de batalha da luta de classes, os ideólogos da ordem não tardaram a decretar o “fim da história”. Vale dizer, segundo o pensamento dominante e, inclusive, de parte significativa dos reformistas, não há mais o que fazer, apenas se conformar com o existente e minimizar as mazelas.

O MOMENTO – Com o crescimento da desigualdade, da pobreza e da fome essas políticas públicas voltarão ao centro do debate?

SOFIA MANZANO – No interior do pensamento dominante há várias tendências. A estritamente neoliberal continua na toada da mais ampla e irrestrita liberdade do mercado e os indivíduos que saem perdendo são vítimas colaterais dessa batalha. Para os reformistas tradicionais, continua valendo a “teoria do bolo”, ou seja, acreditam que o crescimento econômico vai, por si só, possibilitar a “inclusão” dos pobres e miseráveis e minimizar as desigualdades. Há também aqueles que incorporaram a ideologia pós-moderna e, a partir da exaltação da diversidade, propõem políticas que, encobertas pelo véu das especificidades individuais ou de grupos identitários, acabam por reproduzir e legitimar a desigualdade em outro patamar.

O MOMENTO – Qual a inserção do debate da desigualdade na universidade?

SOFIA MANZANO – Na universidade esse debate está centrado particularmente nas teorias que embasam o reformismo. São aqueles que propõem um novo desenvolvimentismo como saída para enfrentar a desigualdade, imaginando poder retornar ao tempo do modelo fordista, em que uma parcela da classe trabalhadora estava resguardada por direitos e alcançou um padrão de vida razoável. Ao mesmo tempo, para aquela parcela da população que sequer alcançará a condição de trabalhador, esses reformistas propõem uma renda básica de cidadania, ou seja, eles não serão nada além de consumidores restritos ao mínimo necessário para existir. No que diz respeito às políticas públicas, uma parcela do pensamento dominante na universidade não trabalha mais com políticas sociais universais e defendem a focalização, como forma de melhor alocar os recursos escassos.

O MOMENTO – Como a luta política pode influir sobre o problema da desigualdade?

SOFIA MANZANO – Entender as raízes reais da desigualdade é um pressuposto para uma correta luta política. Por isso, saber que independentemente de qualquer arranjo político o sistema do capital vai recolocar a desigualdade e ampliá-la sempre. No entanto, é apenas por meio da luta política que se pode enfrentar essa situação e a luta política envolve as questões imediatas. Quero dizer com isso que será apenas a partir das questões imediatas, do enfrentamento da fome, da ampliação da miséria, da retirada dos direitos trabalhistas, que a classe trabalhadora poderá tomar partido nessa luta. No entanto, nesse processo de luta a classe trabalhadora precisa ampliar a consciência da sua posição de classe nesse sistema e, ao mesmo tempo, não abandonar as armas no campo de batalhas. Quer dizer, não cair, mais uma vez, no canto reformista da parceria conflitiva com o capital, pois o capital não aceita parceria.

Caio Prado Jr. escreveu uma vez que as políticas não são reformistas em si, pois toda política se faz a partir da realidade mais imediata e dinâmica. As políticas podem ser reformistas ou revolucionárias: são reformistas se frearem a luta de classes, são revolucionárias se fizerem avançar a luta de classes no sentido da superação da ordem do capital.

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