Entrevista do Momento – Marly Vianna

Por Milton Pinheiro


Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestre em Economia Agrária pela Universidade Federal de Campina Grande (à época Campus II da UFPB); doutora em História Social pela USP. Professora de História na Universidade Federal de Campina Grande e na Universidade Federal de São Carlos, onde se aposentou. De 2005 a 2018, junto a mais nove professores, ajudou a criar o Mestrado e depois o Doutorado, na Universidade Salgado de Oliveira, onde lecionou durante esse período e da qual se desligou em março de 2019.

Autora de alguns livros e de vários capítulos de livros e artigos, dedica-se em especial ao estudo de movimentos sociais e partidos políticos em especial o Partido Comunista Brasileiro, no qual começou a militar em 1961, fazendo parte de sua direção e janeiro de 1976 a janeiro de 1979.

 

O Momento –  O Brasil está em uma quadra histórica profundamente complexa, como você avalia a presença da extrema direita de várias matizes na cena política em curso.

Marly –  A sociedade brasileira sempre foi violenta e excludente, os donos do poder sentindo-se “donos de gado e de gente”. Todos os conflitos e rebeliões passadas, desde sempre em nossa história, reprimiram brutalmente os subalternos e anistiaram a maioria dos de cima, que quase sempre participavam das revoltas. Fomos o último país a acabar com a escravidão e assim mesmo quando o escravo já não tinha mais valor no mercado.  Essa classe dominante não dá os anéis para não perder os dedos, não dá nenhum anel, porque está segura de seu poder. Este poder a faz dominar ideologicamente a sociedade, inculcando na população sua maneira de ver o mundo: pela educação, pelos meios de comunicação, pela religião.  Nossa sociedade excludente não conseguiu criar ainda cidadãos. Os pobres, sem direito a quase nada, não se sentem no direito de exigir, mas estão sempre pedindo, ao governo ou a Deus. Tal sociedade, principalmente depois de 21 anos de ditadura e falta de democracia  (que existiu em poucos momentos de nossa história) esgarçou-se, perdeu vínculos de solidariedade de classe, com o enaltecimento do individualismo. E como só vê nos de cima, nos três poderes,  opressão – o que significa “política”, é presa fácil dos que demagogicamente colocam-se “contra a política”, candidatando-se a políticos para livrar-se dela…  De certa forma assim foi com Jânio Quadros e abertamente com Color de Mello, o “caçador de marajás”, chegado ao paroxismo como o ex-presidente Bolsonaro, o anti -político que viveu quase 40 anos da política (foi eleito vereador pelo Rio em 1988), sem contar sua família.

Violência, excludência, descriminação, elitismo, racismo são atributos da extrema direita que, a meu ver, sempre existiu em nosso pais. A classe operária, na Primeira República, sempre foi tratada com brutalidade. Recebendo várias – e importantes – benesses com a legislação trabalhista de Vargas e seu próprio reconhecimento como classe, a violência e a opressão tornaram-se mais sofisticadas, mas nunca deixaram de existir. E o fio condutor de toda repressão, violência e engano da população é o anticomunismo, que já existia antes de 1917, intensificou-se com a Revolução Soviética e chegou à histeria depois de novembro de 1935.

Por um lado, os subalternos, que muito lutaram e pouco conseguiram, são presas fáceis da demagogia anticomunista dos de cima, hoje mais do que nunca, em especial depois do desastre do fim da União Soviética, do desmanche de importantes partidos comunistas, como o italiano e com isso o crescimento da direita no mundo. Não raro vemos disputas, no campo internacional, não entre esquerda e direita, mas entre a direita e a extrema direita. Por outro lado, esta situação internacional, a abertura capenga e conciliatória, como de costume, depois de 21 anos de ditadura, a dificuldade e/ou o fracasso das políticas de esquerda, e a absoluta impunidade do último governo levaram a que a máscara hipócrita de liberalismo usada pela extrema direita caísse de vez.  As notícias falsas são vinculadas com a maior descaração e consumidas  avidamente por boa parte do povo – a campanha ignóbil contra Sofia Manzano é um exemplo disso.

 

O Momento – Como pesquisadora, você estudou movimentos desenvolvidos por militares na história brasileira. O que teria de relevante para as transformações sociais essas lutas?

Marly –  Os militares fazem parte da sociedade brasileira e eu aceito a classificação deles não como classe, mas como camadas médias urbanas que, por não terem uma ideologia própria, mudam de posição política com facilidade, muito influenciados pelo meio político do momento. Entre os militares os há de todos as matizes, sendo que a influência do anticomunismo, anticomunismo que lhes é inculcado em praticamente todos os níveis do ensino militar, é  muito grande. E nosso desconhecimento da história é igualmente grande. Por terem se negado, no final da escravidão, a perseguir escravos fugidos, dizendo não serem capitães de mato, começaram a ser considerados democratas. Esquecemos a violenta repressão militar aos movimentos da regência, capitaneados pelo Duque de Caxias, esquecemos da Canudos, dizimado pelos militares, esquecemos da brutal repressão militar ao Contestado, a destruição da comunidade do Beato Lourenço, da repressão aos revoltosos da Marinha. Para não falar da “República do Galeão” de 1954  e do golpe de 1964.

Não vamos esquecer também os movimentos progressistas levados adiante pelo militares, como a “politica das salvações”, do marechal Hermes da Fonseca, o movimento tenentista, a criação e grande atuação da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, as lutas progressistas do Clube Militar dos anos 50, a campanha do Petróleo é Nosso ou a resistência ao pretenso golpe contra João Goulart em 1961. Nem podemos esquecer o grande número de militares expulsos ou afastados das FFAA depois do golpe de 1964. Isso mostra que, mesmo levando-se em conta o alto grau de corporativismo, hierarquização e disciplina (essas duas ultimas muito abaladas no último governo) da vida militar, o que lhes dá especificidade é terem o poder das armas. Política e ideologicamente estão inseridos na sociedade como qualquer um de nós. Para transformar sua mentalidade anticomunista será preciso transformar essa mistificação em toda a sociedade, o que permitirá modificar os currículos das escolas militares: basta que retirem deles as mentiras e os ensine a conferir a realidade. 

Um “pequeno” exemplo. Dizem que no 27 de novembro de 1935 os comunistas mataram seus colegas que dormiam. Primeiro, no 3º RI só havia dois comunistas – Agildo Ribeiro e Leivas Otero; segundo, e fundamental, havia oficiais dormindo em noite de rigorosa prontidão? Sobre isso o senador Jarbas Passarinho foi ao Congresso, a pedido das famílias do militares ditos mortos dormindo, para negar o fato e limpar-lhes a honra militar. Terceiro, só dois militares morreram no levante, os outros foram assassinados pelos bombardeios do governo ao quartel, em especial ao cassino dos oficiais, onde estavam todos os que foram presos pelos revoltosos. Qualquer pessoa interessada no assunto tem acesso a tais dados, arquivados nos processos-crime do TSN . A questão é que é fácil, ou interessa acreditar em mentiras, do mesmo modo que muita gente temeu virar jacaré ou ter aids se tomasse a vacina contra a Covid 19.   Interesse político ou ignorância, tais questões, dentro das FFAA, só serão resolvidas em conjunto com toda a sociedade.

 

O Momento –  Nos últimos anos os militares tiveram um papel ativo na política, inclusive com ameaças à democracia formal. Como examina esse processo de intervenção.

Marly –  Como encaminhei acima, os militares, no Brasil, sempre tiveram ativo papel na política e as ameaças à democracia formal não foram esporádicas. Dois momentos marcantes de nossa história foram resultado de golpes militares: A República e a “Revolução” de 1930. Na Primeira República, até o final do governo Floriano, os militares tiveram protagonismo, que os jacobinos (florianistas) pretenderam manter por muito tempo. Os tenentes, de 1922 a 1935, tentaram, pela luta armada, afastar os civis da política, os chamados “camorras”, em especial os políticos paulistas.  A partir da perda de hegemonia dos cafeicultores paulistas (os “políticos”), um grupo importante de militares tentou derrubar Getúlio Vargas,  em especial contrários à legislação trabalhista. Houve a “Revolução de 1932”, tentativa de levante do 21 BC do Recife, cujos insurretos convidaram Prestes para assumir a direção dos levantes. Depois das rebeliões militares de 1935, o levante integralista de 1938 foi, a meu ver, essencialmente uma rebelião dirigida nas sombras por militares – cujos chefes nada tinham de integralistas. O Estado Novo ocorreu com imprescindível apoio de militares, assim como a deposição de Vargas em 1945. O governo do marechal Dutra nada teve de democrático, muito pelo contrário. Depois da eleição de Vargas em 1950, as tentativas de golpe, apoiadas por militares não cessaram:  Jacareacanga, a tentativa de golpe tentando impedir a posse de Juscelino, impedida também por militares, com o contragolpe do marechal Lott,  Aragarças, a já citada “República do Galeão”, a tentativa de impedir a posse de João Goulart em 1961 e finalmente o golpe de 1964. Os militares SEMPRE tiveram ativo papel na política nacional, quase sempre contrários à democracia formal.

As FFAA sempre consideraram ser os mais capazes, intelectual e moralmente, para dirigir o país. Para eles, sua obrigação para com a Constituição do país só é válida enquanto eles a considerarem correta. Três exemplos:  Na rebelião paulista de 1924 os tenentes propunham um governo que seria comporto por dois militares e um civil (o conselheiro Paulo Prado) até que toda a população do país fosse alfabetizada.  O hino da Escola Militar tem a seguinte frase: “Somos a esperança de um Brasil inteligente, liderança de um continente”. E por último no tempo, mas absolutamente atualizada, é a fala do então presidente Floriano Peixoto, a propósito de problemas políticos de sua época:  “Fato único que prova exuberantemente  a podridão que vai por este pobre país e que muito necessita a ditadura militar para expurga-la. Como liberal que sou, não posso querer para meu pais o governo da espada; mas não há quem desconheça, e aí estão os exemplos, que é ele que sabe purificar o sangue do corpo civil que, como o nosso, está corrompido”.  E assim pensam muitos, até hoje, quando puderam manifestar-se abertamente, dado ao clima golpista criado pelo governo passado.

 

O Momento –  A democracia formal do Estado de direito encontra-se ameaçada por setores reacionários das Forças Armadas?

Marly –  Creio que numa sociedade como a nossa, já descrita acima, o Estado de Direito está sempre ameaçado, não só e nem principalmente por setores de extrema direita das FFAA, mas pelos verdadeiros donos do poder: de indústrias, de terras e dos meios de comunicação, mas, seguramente, com o imprescindível apoio dos setores reacionários das FFAA. 

Falando apenas de militares, será preciso diferenciar não só Exército, Marinha e Aeronáutica como também as Polícias Militares, e não sou especialista no assunto. Pelo que se percebe, as polícias e os praças ficaram mais sujeitos às posições da extrema direita do governo passado. È muito difícil fazer previsões sem estar a par do que se passa na caserna, mas acho que podemos afirmar que as FFAA estão divididas tanto quanto o resto da sociedade. Se está evidente que generais, praças e policiais agiram no sentido de apoiar um golpe, como apoiaram os acampamentos em frente aos quartéis, a realidade é que golpe não houve, e a maioria das FFAA não se mobilizou para acabar com o Estado de Direito.

Um aspecto que ainda não consigo entender é o da posição de oficiais superiores, inclusive generais, curvando-se diante de um capitão insubordinado. Filha de oficial do Exército, convivi muito no meio militar, de militares nacionalistas, legalistas e, em especial, com muito brio e dignidade. Quando preso, em 1961, por defender a legalidade da posse do vice-presidente João Goulat, depois da renúncia de Jânio Quadros, o marechal Lott recusou-se a ir fardado ao Ministério da Guerra, dizendo que naquelas circunstâncias de violação da Constituição não macularia a farda do Exército. Difícil entender o “Um manda (o capitão) e outro (o general da Intendência) obedece” ou o comportamento de ordenança de quem deveria comportar-se como ajudante-de-ordens. É verdade que um pequeno grupo recebeu altíssimas remunerações e/ou acumulou funções remuneradas, mas foi um pequeno grupo. A campanha de ódio histérico ao PT pode explicar mais, a meu ver, o comportamento de parte das FFAA, mas assim mesmo não tenho uma explicação que considere satisfatória. A campanha de ódio histérico contra o PT não precisa ser explicada, basta lembrarmos das grotescas declarações na sessão do Congresso que cassou o mandato de Dilma Rousseff.

Não devemos esquecer que hoje a ameaça ao Estado de Direito não é gestada dentro das FFAA como um golpe militar. Ela vai sendo configurada na perda dos direitos trabalhistas, na precarização do trabalho, na quebra da solidariedade operária com a incriminação dos sindicatos e dos movimentos sociais, como o MST, na destruição da Educação, que fica, para grande parte da população, a cargo das redes sociais e de Igrejas que pouco ou nada tem a ver com o verdadeiro espírito do cristianismo.

Se outro golpe da extrema direita irá ou não ocorrer, depende da unidade democrática dos que a ele se opõem, frente bastante ampla, que hoje ainda abarca a maioria da nação. 

 

O Momento –  O atual presidente foi eleito numa disputa duríssima contra o que tem de pior na política brasileira. Diante das alianças do governo petista e do arcabouço fiscal que está sendo discutido, corremos o risco do povo pobre descolar do apoio ao governo?

Marly –  Sempre corremos tal risco. O atual governo encontrou-se com um país destroçado internamente e desmoralizado no exterior. Lula tem feito o possível para reverter a situação, difícil com o atual Congresso. A maioria é do chamado centrão, o velho “pântano”, termo cunhado pela Revolução Francesa (le marais). E não vamos esquecer que aquele pântano derrotou a revolução.

Lula está numa situação difícil e lembro-me daquela conhecida frase: “Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”. Mas, não devemos esquecer que na política, como na vida, aliás – há muitas situações inesperadas que podem mudar o cenário político de uma hora para outra, numa direção progressista. A política no Brasil de hoje é uma linha muito tênue por onde caminhar, sendo difícil não fazer concessões, mas evitando a todo custo que elas sejam de princípio.

Foram feitas muitas promessas aos “de baixo”, algumas difíceis de cumprir, a começar pelo aumento de 18 reais no salário mínimo, que tenta ser compensado por bolsas família e outros suplementos salariais. Para evitar um retrocesso é preciso dar atenção às camadas mais pobres, mais abandonadas e mais fáceis de serem seduzidas por falácias, pelas falsas notícias e falsas promessas da extrema direita e dos falsos religiosos. Não vamos esquecer a pequena diferença de votos que levou Lula ao governo e nem as campanhas da extrema direita pelas chamadas mídias. Será – é – uma luta dura para conquistar a grande maioria da população para a democracia, mas é uma luta imprescindível e que estamos perdendo: como chegar a essas camadas enganadas? E para chegar a elas temos que entendê-las: seu mundo, seus anseios, seus preconceitos, o que as mobiliza para a luta.

 

O Momento –  Nesse mesmo sentido da avaliação do governo atual, a não revogação das contra-reformas (ensino médio, teto de gasto, trabalhista e previdenciária) seria um passo para o fracasso de Lula em segmentos populares?

Marly –  Sobre o teto de gastos não estou apta a falar. Mas a não revogação da contra-reforma do ensino médio, da previdência e, em especial a trabalhista, será, a meu ver uma concessão de princípios, muito especialmente as da Educação e a Trabalhista. Temos que focar especialmente nessas duas contra-reformas, para impedir a da Educação e ver o que poder-se-á revogar na trabalhista. 

Na Educação pretende-se minimizar ainda mais o ensino fundamental e médio, já extremamente precarizados. E é importante salientar que nada poderá ser feito sem investir na formação de professores e, fundamentalmente, em seus salários, para que possam dedicar-se a uma só escola e ter tempo para estudar. Na situação salarial de hoje isso é impossível. Não falo apenas da Educação formal, erradamente secundarizada. Ouvi muito professor “progressista” dizer que não se pode sobrecarregar a memória da pobre criança com as capitais dos estados brasileiros ou com os afluentes do Amazonas. Entretanto, meu neto de três anos sabia o nome de todos os poquemons e de suas transformações… Trata-se não de “criminalizar” a memorização (memorizar ajuda bastante o desenvolvimento intelectual), mas de fazer a criança e/ou o adolescente entender a importância do que estuda. Memorizar as capitanias hereditárias (das quais a juventude de hoje nunca ouviu falar) era o terror de meu curso primário nos anos de 1940, mas porque não era ensinado que elas foram – são – a base da propriedade latifundiária da terra, de seu poder e das questões relacionadas à reforma agrária que nos atormentam até hoje.

Outra questão para mim fundamental é o ensino da língua portuguesa. A língua é um dos importantes símbolos da nacionalidade, de nossa cultura, de nossas raízes, e cada vez mais é deixada de lado como coisa supérflua. A mim horroriza ouvir locutores da rádio e TV desrespeitando nossa língua: o subjuntivo desapareceu, os tempos compostos mais ainda. Um ex-ministro da Educação (se não me engano de Temer), desconheceu o emprego do verbo haver e, como muitos parlamentares e até membros do Judiciário, o empregam no plural quando tem o sentido se existir. Também não é raro ouvir uma locutora informar: “São uma hora”… Esquecendo, o que reprovava no meu curso primário, que uma é singular. A língua é um patrimônio nacional e a nossa é belíssima quando bem falada. Costumo colocar na parede de minha sala na universidade a bela estrofe de Manoel Bandeira, que inicia a Gramática da Língua Portuguesa do saudoso professor Rocha Lima: “Não morrerá sem poetas nem soldados, a língua em que cantaste rudemente, as armas e os barões assinalados”. Quantos jovens atualmente identificariam Camões nos últimos versos?

Tão grave quanto o abastardar da língua portuguesa é o querer acabar (ou dar-lhes um mínimo de horas) com o ensino de matérias e estudam o social, em primeiro lugar a História, mas também a Geografia, a Sociologia, a Filosofia, a Política, a Literatura. Para as classes dominantes as matérias que fazem pensar, que geram questionamentos, que ensinam a realidade de nosso povo são extremamente perigosas. Na época da ditadura um documento alertava: “Os cursos de História e de Ciências Sociais são o berço da subversão”. Este documento, que não tenho mais, foi reproduzido , depois de 1988, por um jornal alternativo do Rio Grande do Sul, se não estou enganada, Em Tempo. Lembro-me também da frase do grande Don Helder Câmara: “Quando dei comida aos pobres me chamaram de santo. Quando perguntei por que existe a pobreza chamaram-me de comunista”.

A questão principal é a da reforma trabalhista. Para a extrema direita – e também para a direita e muitos setores ditos liberais, a grande luta foi – e é – desde 1930, contra a legislação trabalhista. Todos os movimentos de direita tiveram como foco a luta contra os direitos da classe operária e o primeiro decreto do golpe de 1964 foi o “arrocho salarial” e a luta pelo desmantelamento dos sindicatos. Mas até para a ditadura foi difícil acabar com os direitos trabalhistas, a não ser indiretamente, reprimindo brutalmente as lutas operárias, penalizando os líderes operários e criminalizando os sindicatos. Não lutar para revogar a contra-reforma trabalhista é entregar a classe operária totalmente à precarização. Este é o sonho da direita, que esfacela a unidade da classe, já bastante esgarçada com os violentos ataques aos sindicatos e a seus direitos trabalhistas.

 

O Momento –  Na sua compreensão, como historiadora e militante comunista, quais são os impasses que o Brasil passa nesse momento?

Marly –  Como vencer a extrema miséria, uma desigualdade jamais vista, mães de todos os males. São elas que geram a violência, a falta de perspectiva que leva às drogas e ao banditismo, que consideram os pobres “coisas” que não merecem consideração, que não dispõem de um bom ensino primário, de saúde, de educação, de justiça.

É esta situação, que deixa os subalternos sem esperança, sem perspectiva, que os leva a acreditar em salvadores (messias, mitos) ou em entidades celestiais. Isso é recorrente em nossa história e, a meu ver, responde pelo misticismo, pelas crença sebastianistas, pela crença em santos e monges que virão para salvar o povo. É muito fácil taxar o povo de ignorante, mas já fizemos um exercício de pensar a desesperança? Uma situação em que todos os poderes estão voltados contra nós? Na violência de um salário mínimo? R$1320,00. Façam-se as contas. O salário mínimo foi pensado para manter com dignidade uma família de quatro pessoas: aluguel, água, luz, gás, alimentação, material escolar, vestuário, algum lazer. Para quatro pessoas: R$ 1320,00. 

As dificuldades para mudar tal situação são imensas. Resta-nos fazer um trabalho de formiguinha, de pequenas organizações, de educação elementar e política. Não tenho resposta, a não ser: continuar lutando e com isso, num processo, que seguramente será lento, ir mudando as desigualdades, os privilégios, o racismo, a miséria. Em todo caso, não cabe o desânimo. Muitas vezes pequenas situações podem gerar grandes mudanças, devemos estar preparados para elas.

Mudar tal situação pode ser considerado o 13º trabalho de Hercules, só que os semideuses não existem, muito menos os deuses, os únicos a quem os desvalidos de toda a esperança se apegam para continuar a sobreviver. Devemos mostrar que temos uma perspectiva para eles.

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