Entrevista do Momento: A História do Tempo Presente – Luiz Bernardo Pericás

Luiz Bernardo Pericás

foto: divulgação

Por Milton Pinheiro

Luiz Bernardo Pericás é escritor, historiador e professor da USP.

O MOMENTO – Um dos papeis da ciência da história é a capacidade de desvendar os acontecimentos em curso. Como você analisa a crise em curso no Brasil?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – A crise atual é resultado de diferentes fatores inter-relacionados. O encerramento do superciclo das commodities, período em que se verificou crescimento econômico com programas de distribuição de renda, ampliação do emprego formal e consumo, cifras favoráveis na balança comercial, controle da inflação e maior presença internacional do Brasil, foi acompanhado por um momento de recessão entre 2014 e 2016 (com estagnação inercial nos anos subsequentes) e, no campo político, a partir das jornadas de junho de 2013, pelas mobilizações da direita nas ruas, juntamente com a maior atuação da Lava Jato, uma investida agressiva da grande mídia corporativa contra os setores progressistas e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. O objetivo imediato de recompor o quadro político no Executivo foi atingido com a retirada do PT do poder e com a oficialização de Michel Temer na presidência, aquele que poderia dar andamento sem entraves a uma série de medidas ainda mais liberalizantes, paralisando a reforma agrária, ampliando os incentivos ao agronegócio e impulsionando uma reforma trabalhista nefasta para os trabalhadores, mas que garantiria, por outro lado, um ambiente ainda mais favorável para a recomposição do capital e a ampliação do lucro da burguesia.

Além disso, todo esse processo mostrou o esgarçamento da Nova República. Nesse sentido, é importante identificar alguns elementos deste decurso que contribuíram para o atual estado do país. A impunidade dos militares após o fim da ditadura foi um erro grave que se cometeu por aqui. Ao longo do tempo, oficiais da reserva ou da ativa se reuniam, tramavam e lançavam notas e comunicados em tons golpistas, ameaçando as instituições e indicando que os fardados ainda tinham intenção não só de interferir na política como até mesmo de retornar ao poder.

Outro fator que deve ser lembrado é o crescimento das Igrejas pentecostais e neopentecostais, que se tornaram verdadeiros impérios empresariais, atuando em uma diversidade de negócios e chegando a criar seus próprios partidos. Esses líderes “religiosos” também tinham uma agenda de poder e o controle sobre milhares de “fiéis”, uma massa de manobra enorme, com baixo preparo político e dominada por “bispos” e “pastores”.

E, finalmente, as milícias, que ao longo dos anos penetraram cada vez mais nas polícias, Judiciário, Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas. Essas organizações controlam territórios e têm políticos próprios em suas folhas de pagamento, garantindo a perpetuação de seus negócios e sua proteção institucional. Para agravar a situação, setores evangélicos se aliaram a muitas destas quadrilhas de criminosos, ampliando a força de ambos os grupos.

No campo externo, por sua vez, também houve um crescimento do conservadorismo em diversos países. Foi sendo constituído um movimento internacional da direita, encabeçado por Steve Bannon e pela alt-right norte-americana. Uma coincidência de interesses e afinidades levou elementos de várias nacionalidades a se aproximarem. Em comum, na maioria dos casos, o racismo, a xenofobia, o fundamentalismo cristão, a rejeição à globalização, o negacionismo científico, o discurso de ódio, a apologia às armas, a truculência, o autoritarismo. O grande ídolo desses dirigentes era (e ainda é) o ex-presidente estadunidense Donald Trump. Outro fator, agregado a isso, é a utilização eficiente da internet por meio das redes sociais e da disseminação de fake news.

Para completar, podemos pensar em termos de “longa duração”. Ou seja, historicamente, as diferentes frações da burguesia brasileira constantemente criam mecanismos, acordos e arranjos intraclassistas “pelo alto” para acomodar seus interesses, esmagando toda oposição (ou cooptando suas lideranças) e garantindo a permanência de seus privilégios. Assim, a burguesia continua com seu perfil entreguista, pró-imperialista e antipopular, sem projeto nacional ou qualquer interesse no desenvolvimento do país (mantendo sua posição subordinada, dependente e periférica no campo internacional), uma elite voltada essencialmente para encher os bolsos e remeter seus lucros para contas bancárias no exterior. A tendência que se nota há tempos é a de desindustrialização e reprimarização da economia, aumento na concentração de terras e de renda, ampliação no número de bilionários e de miseráveis (alargando ainda mais a desigualdade social), fuga de cérebros, cortes em investimentos em pesquisas e tecnologia, além da penetração contínua dos interesses estrangeiros por aqui, reforçando o papel do Brasil como nação essencialmente exportadora de commodities agropecuárias e minerais. Ou seja, o que se percebe é um processo acelerado de “regressão colonial”. E esta tendência está sendo continuada e reforçada neste governo.

É claro que poderíamos elencar outros fatores (inclusive relacionados aos equívocos cometidos pela própria esquerda). Mas os aspectos supracitados, de qualquer forma, certamente contribuíram para que o país chegasse ao estado atual.

Com o aprofundamento da crise do capital e o recuo da classe trabalhadora no campo de batalha da luta de classes, os ideólogos da ordem não tardaram a decretar o “fim da história”. Vale dizer, segundo o pensamento dominante e, inclusive, de parte significativa dos reformistas, não há mais o que fazer, apenas se conformar com o existente e minimizar as mazelas.

O MOMENTO – Quais seriam as bases teóricas que podem contribuir para esse desvelamento político?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – Autores como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini e tantos outros buscaram incansavelmente, ao longo de décadas, entender nosso processo histórico, a relação de classes, os caminhos do desenvolvimento, as formas de luta mais eficientes. Mesmo que muitos deles tenham perfis distintos em termos teóricos (e de filiação política), é preciso voltar a esses clássicos, estudar suas obras e se esforçar para compreender os mecanismos econômicos vigentes em nosso país. As obras desses intelectuais não devem ser lidas como manuais, mas como trabalhos de homens que atuavam ao mesmo tempo como cientistas sociais e como militantes, e que se empenharam em analisar, de maneira sofisticada e profunda, a história do Brasil, desde o período colonial até a contemporaneidade, com o objetivo precípuo de propor os melhores remédios para os problemas nacionais e intervir da maneira mais certeira e eficiente possível na realidade de sua época.

O MOMENTO – As contradições da formação social brasileira encontram repercussão no debate acadêmico dentro das preocupações da universidade brasileira?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – Durante muito tempo o debate sobre a formação sócio-econômica do Brasil foi intenso tanto dentro de partidos, movimentos populares e outras organizações políticas de esquerda como do meio acadêmico. Professores, estudantes, militantes, dirigentes e intelectuais se empenhavam em conhecer com profundidade as obras de Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e Florestan Fernandes, só para citar alguns. Outros nomes importantes também podem ser mencionados, como Nelson Werneck Sodré, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e tantos outros. Hoje em dia, por certo, os textos de todos eles continuam fundamentais para o estudo de nossa formação, ainda que muitos dos debates em torno da obra destes escritores já não tenham a mesma centralidade de antes.

As atitudes nas universidades variam bastante. Há cursos e disciplinas que apenas citam os aspectos básicos do pensamento daqueles intelectuais. Outros instrumentalizam seus trabalhos, de forma mecanicista. Ainda assim, também é possível encontrar nas instituições públicas de ensino superior aqueles que valorizam a pesquisa e o diálogo acadêmico, retornando aos clássicos, fazendo uma interlocução crítica entre os diferentes autores e utilizando suas obras como ferramentas fundamentais para analisar e entender o Brasil do passado e do presente.

O MOMENTO – Como você analisa a reorganização da extrema direita nessa quadra histórica?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – Desde o início do século XXI, novos grupos de direita e de extrema direita lentamente foram ganhando espaço, aprenderam a usar de forma eficiente a internet (utilizando, inclusive, estratégias de disseminação de informações falsas), se diferenciaram dos movimentos mais antigos, conquistaram segmentos das classes médias e acreditaram que tinham força suficiente para chegar ao poder. A partir de 2004, surgiu o “Escola sem partido”. Depois das jornadas de junho, por sua vez, apareceram em 2014 grupos como o Vem Pra Rua e o MBL. Ao mesmo tempo, as Igrejas neopentecostais se expandiram, pregando a teologia da prosperidade e o ultraconservadorismo religioso. E então, irromperam publicamente elementos ainda mais radicais: apoiadores da ditadura militar, milicianos e representantes de diferentes vertentes da extrema direita.

Todos esses grupos supracitados (bastante heterogêneos, por sinal, e que podem ou não ter conexões entre si) precisavam de um elemento que unificasse o discurso de ódio. E encontraram em Bolsonaro (que promovia slogans que misturavam um cristianismo tacanho com um ataque a um “comunismo” imaginário) o personagem ideal para descarregar todo o seu rancor contra o avanço de setores menos privilegiados nos espaços que antes consideravam seus.

Em geral esses grupos, de forma mais genérica, são compostos por elementos frustrados das classes médias depauperadas e de uma lumpemburguesia “empresarial” tosca, sem qualquer preparo intelectual, defensores de valores ligados à ideia de tradição, família e pátria, que justificam o uso da violência em nome da salvação de uma suposta civilização cristã ocidental contra a globalização e a esquerda de modo geral.

Eles servem, essencialmente, como possível força auxiliar nas ruas. Mas não têm o poder real em suas mãos. A própria direita tradicional não quer manter relação com essa gente. Pelo contrário: a burguesia brasileira já percebeu o exotismo e a excentricidade desse pessoal, e busca tomar distância de tais elementos. A burguesia por aqui tem um perfil distinto, está no poder há muito tempo e, por certo, não gosta de perder dinheiro. E a atual administração, que apoia madeireiros, grileiros, garimpeiros, milicianos, que destrói a Amazônia, que teve uma atuação desastrosa durante a pandemia do novo coronavírus, que não melhora a economia e que tem problemas com a comunidade internacional, não é boa para os negócios. Por isso, a própria burguesia poderá se livrar da extrema direita e do governo Bolsonaro (quando este não lhe for mais útil), já que ambos atrapalham a estabilidade para as finanças. Depois disso, a esquerda terá de lidar com a direita tradicional, ou seja, com a mesma grande burguesia interna de sempre, que detém os meios de produção e os aparelhos ideológicos e que controla os espaços institucionais e as forças militares, a mesma classe que tem tradicionalmente dominado o país e que, por métodos transformistas, pode até se modernizar, se aliar circunstancialmente a setores “progressistas” e suavizar o discurso, mas que permanecerá no controle enquanto não for enfrentada pelos trabalhadores de maneira contundente.

O MOMENTO – Qual seria a caracterização que você faria do governo Bolsonaro?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – É um governo de extrema direita, disfuncional, incompetente e despreparado, encabeçado por um presidente com vínculos com milicianos, sem qualquer projeto estratégico de desenvolvimento, com um perfil truculento e autoritário, que visa ao desmonte institucional e à rapina do espaço público, além de promover a destruição de setores específicos, como meio ambiente, educação e cultura. Neoliberal e privatizante, defende o Estado mínimo e o uso da força e da repressão, mas tem uma margem de manobra bastante limitada.

O presidente, na prática, não manda muito. Pelo contrário, está nas mãos do “centrão” e dos militares. Além disso, não tem o apoio da maior parte do empresariado (segmentos significativos do agronegócio também já abandonaram o barco) nem da comunidade internacional; encontra enorme rejeição popular (inclusive entre muitos de seus antigos eleitores evangélicos); e só conta de maneira irrestrita com certos elementos da lumpemburguesia e com parte de seus defensores fiéis de primeira hora, os chamados “bolsonaristas raiz” (vários destes também deixaram de apoiá-lo depois que ele se retratou na sequência dos atos de Sete de Setembro, com um discurso mais moderado e com a divulgação da carta escrita com a ajuda de Michel Temer).

A atual administração tem em seus quadros um grupo heterogêneo de funcionários de primeiro e segundo escalão, personagens que vão de ruralistas e evangélicos até oportunistas do “centrão” (que garante uma sustentação precária e custosa ao governo) e milhares de militares. Também transitam neste ambiente personagens de tendências fascistóides e “supremacistas brancos”. Uma verdadeira colcha de retalhos.

O objetivo mais limitado desta gente é a perpetuação no poder e a garantia de ganhos econômicos pessoais ou políticos de partidos específicos ou do círculo mais próximo ao mandatário. O objetivo mais amplo, por outro lado, é a garantia de superlucros para bancos e segmentos do agronegócio e do empresariado que apoiam o governo. Segundo notícias recentes da imprensa, os bancos, por exemplo, lucraram R$ 62 bilhões no primeiro semestre de 2021 (ou seja, a sua rentabilidade voltou ao nível anterior à pandemia do novo coronavírus; o aumento das margens de lucro, por sua vez, chegou a 53% em relação ao mesmo período de 2020; só no ano passado, as instituições financeiras embolsaram R$ 88,6 bilhões). Enquanto isso, tem aumentado o número de pessoas em situação de miséria e cenas de pobres procurando comida em caminhões de lixo e nas sobras descartadas nas feiras de alimentos começam a se tornar cada vez mais recorrentes. Na atualidade, em torno de 20 milhões de pessoas estão passando fome no país. Uma verdadeira tragédia social…

O MOMENTO – Existe um debate em aberto na esquerda brasileira: o fascismo está presente na luta política brasileira?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – Os debates sobre a “extrema direita” no Brasil são rotineiros e acalorados. Além disso, a análise do painel político nacional a partir de conceitos como o fascismo (assim como o “bonapartismo”, o “populismo” e o “autoritarismo”) tem sido uma estratégia recorrente na atualidade. Ainda assim, é preciso tomar cuidado com generalizações. Ou seja, é fundamental compreender o que ocorre aqui a partir de nossas particularidades históricas (em relação especificamente a esse tema, vale a pena conhecer a avaliação de Atilio Borón sobre o governo Bolsonaro, neste caso, seu artigo “Caracterizar o governo de Jair Bolsonaro como ‘fascista’ é um erro grave”, publicado originalmente em Pagina 12 e reproduzido no jornal Brasil de Fato).

É possível falar de fascismo nos dias de hoje, mas tomando muito cuidado com o uso deste conceito, que tem sido excessivamente utilizado e abusado na luta política atual. O fascismo é uma categoria histórica e precisa ser estudado com maior atenção.

O MOMENTO – Qual é a centralidade da luta que deve ser desenvolvida pela esquerda brasileira, nesse momento?

LUIZ BERNARDO PERICÁS – A esquerda brasileira precisa se organizar para além do calendário eleitoral e de alianças políticas circunstanciais. De imediato, seria importante constituir uma frente exclusivamente de esquerda para tentar retirar Bolsonaro do poder, uma ação combinada dos setores progressistas unificados, respaldada por um movimento de massas, com um programa e um projeto claros, coesos e definidos (e que tenham ressonância, de fato, entre os trabalhadores).

Além disso, é preciso estar preparado para a possibilidade do ascenso das lutas sociais. A dinâmica social, que pode parecer letárgica, estacionária ou lenta em determinado momento, pode mudar de uma hora para a outra, especialmente quando há uma situação de crise política e econômica aguda que se caracterize pelo aumento da inflação, fome generalizada, altas taxas de desemprego, repressão policial contra militantes e contra a população marginalizada nas cidades e no campo, e caos social. Por isso a esquerda precisa estar sempre atenta e em condições para atuar quando o momento chegar. E para isso é necessário ter “organização”; “lideranças” qualificadas e com respaldo popular; uma “teoria”; uma “interpretação” correta da realidade; a capacidade constante de avaliar a correlação de forças; “ousadia”; um “projeto político” que atenda às demandas sociais; e, finalmente, a presença de “militantes disciplinados”. É importante também manter uma postura crítica constante em relação às tendências pós-modernas e identitárias dentro das esquerdas e colocar a ênfase sempre na centralidade do “trabalho”, dos “trabalhadores” e da “luta de classes”. No momento, contudo, o que se percebe nos maiores partidos da esquerda (aqueles com representação parlamentar), infelizmente, é a predominância interna de seus setores mais moderados e eleitoreiros, a falta de uma teoria revolucionária, uma capilaridade social limitada e, por vezes, alianças “táticas” com partidos que não fazem parte do campo progressista. Os desafios, portanto, são enormes. Mas, sem dúvida, podem ser superados.

Sair da versão mobile