EDITORIAL – Pandemia e o Genocídio Velado

Reprodução: Climainfo

Por Giovani Damico

Pandemia e o Genocídio Velado – Análises sociais, econômicas, políticas ou epidemiológicas precisam ter, como um de seus pilares, a utilização de dados confiáveis, sejam eles primários – reunidos pelo próprio autor da análise, ou secundários – reunidos por institutos de pesquisa.

Em um contexto de crise social, econômica e sanitária aguda, seria de se imaginar que nossa principal instituição nacional de produção de dados de amplo espectro, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estaria na ponta de lança em busca por informações confiáveis, afinal, não se confronta um problema que não se conhece. Mas não é o que vemos. A explicação para a coadjuvância do IBGE num cenário como o atual, se encontra no fenômeno da política genocida do Estado, nomeadamente, a radicalização da política neoliberal e dos lucros capitalistas em detrimento da vida humana.

O descompasso entre a política neoliberal e um compromisso mínimo com a vida da população se exprime nas formas mais abjetas de maximização dos lucros hoje em curso, calcadas tanto na supressão da qualidade de vida, quanto do próprio emprego. O avanço do neoliberalismo torna o rentismo (capital financeiro) e o agronegócio dois de seus pilares na exploração dos lucros, duas formas que intensificam o quadro de desemprego estrutural e carestia generalizada.

No quadro pandêmico, controversamente o acesso à informação ficou ainda mais restrito, os orçamentos públicos foram esquartejados, as agências de pesquisa desmontadas, e o Governo Federal propositalmente segue desarticulando a relação entre Ministérios e Secretarias Estaduais. Morrem, atualmente, mais de 2.000 brasileiros por dia vítimas da COVID-19, além de termos cruzado a infeliz marca dos 3.000 óbitos diários, que se soma a um universo total de mais de 300 mil mortes pelo vírus no Brasil.

Mas ainda nos questionamos se, de fato, é este o dado total. Infelizmente, o acesso à informação se vê cada vez mais dificultado. E como se não bastasse, no dia 23/03/2021 foi emplacada uma tentativa de alteração na metodologia de contagem de óbitos por parte do Governo Federal, que se propunha, precisamente, a dificultar a já dificílima contabilidade da tragédia.

Uma política de Estado genocida se utiliza de diversas ferramentas: repressão institucional, violência sistemática, manipulação de informações, desabastecimento de insumos e desarticulação entre as instâncias governamentais (com ênfase às que são dirigidas por gestões que, de alguma forma, fazem oposição). A morte programada ou por negligência é fruto direto de tal política, e evidentemente, morrem mais aqueles cujas condições de vida são mais desfavoráveis: a população trabalhadora, e em especial, seus estratos mais precarizados, racializados e em maioria mulheres. Os idosos, aqui, também são tratados como inimigos, como um peso a ser relegado à miséria; afinal, a melhor reforma da previdência para este sistema é dizimar o povo trabalhador que outrora construiu o país.

Neste lamaçal onde poucas certezas existem e muitas dúvidas emergem, a produção de conhecimento e informação contra-hegemônicos se impõe urgente. Mas, vale mencionar, no Governo Bolsonaro, a produção de conhecimento de Estado, por suas próprias instituições, é destruída. Após o Governo Federal anunciar, no dia 22/03/2021, um corte de mais de 80% do orçamento do IBGE, o órgão afirmou que a realização do censo demográfico é completamente inviável.

Note-se que, mesmo sob a lógica capitalista, conhecer seu território e sua população é crucial para políticas mínimas de compensação, bem como para a continuidade dos ganhos de capital. A lógica de exploração destrutiva e radicalmente imediatista hoje vigente se abona, assim, de qualquer compromisso de médio alcance. A pandemia no Brasil está sendo gerida sob uma política, de fato, genocida. Nos vemos num cenário de profunda desinformação, sem transparência em diversas esferas públicas, com recusa a compra de vacinas por parte do Governo ante nenhuma explicação plausível, sem aplicação sistemática de testes rápidos pelo país… A partir do censo demográfico, teríamos uma ferramenta importante para avaliar a dimensão do problema em que estamos atolados, através de dados científicos e atualizados acerca do perfil socioeconômico de nossa população, englobando as condições de moradia e saneamento nos diversos lares Brasil afora. A política genocida precisa, portanto, de sua contraparte para funcionar pela égide democrática: o profundo desconhecimento da dimensão do problema.

Desde 2010, contamos apenas com a chamada PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), ferramenta que, embora importante, passa por uma grande desarticulação. Os próprios indicadores pesquisados foram desmobilizados, reformulados sem qualquer transparência ou compromisso com uma análise objetiva da realidade brasileira. E todas essas transformações carregam uma finalidade em si: abafar os alarmantes índices de desemprego, subemprego, de ausência de perspectivas e de deterioração da qualidade de vida e da saúde da população. Em 2021, a ausência do censo crava, com uma chave de ouro embebida em sangue, as consequências das políticas do Estado capitalista para o povo brasileiro, especialmente numa crise de tais proporções devastadoras, e cujo avanço é acelerado com a pandemia. Tais políticas estão pautadas, sobretudo, em acobertar a rapinagem completa que os cofres públicos passaram, bem como a radicalização das políticas de morte do Estado brasileiro, e tudo com um único objetivo: gerar lucro para a burguesia.

Nossa agenda do dia possui, assim, de forma incontornável, a luta por uma política de vacinação nacional e massiva, coordenada entre Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais, associada a uma ampla rede de testagem, monitoramento dos focos de infecção, controle e mapeamento da difusão de novas cepas, bem como investimento intransigente em saúde pública. Além disso, apenas com uma política de suporte continuado aos trabalhadores é que seremos capazes de aplacar o crescimento descontrolado das novas infecções e óbitos. Esta política exige diretrizes expressas e garantia estatal para o isolamento social, que por sua vez só pode ser eficaz se acompanhada de suporte financeiro, possibilitando à população trabalhadora permanecer em casa.

É preciso, ainda, que haja: congelamento do valor dos aluguéis, sendo em parte assumidos pelo Estado; suspensão dos despejos de qualquer ordem; suspensão de cobrança nas contas de água e energia para famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica; retorno do auxílio emergencial por todo o ano de 2021; e auxílio financeiro aos pequenos empresários.

As alternativas para a mudança dessa realidade desumana se mostram cada vez mais nítidas: a institucionalidade é importante, mas não é suficiente. Não há espaço, nessas estruturas, para uma vida plena e digna. O rearranjo de peças no mesmo tabuleiro produz não mais que pequenos momentos de tomada de fôlego, mas que na jogada seguinte, nos puxa novamente o tapete. A corrida para uma mudança substancial é longa, e o horizonte nos aguarda!

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