Covid-19: O Salto Silencioso

Por Rômilo Caires

Covid-19: O Salto Silencioso – Não faz muito tempo quando era relativamente comum ouvir sobre a suposta origem do Sars-CoV-2 em um laboratório chinês. Lembremos que Donald Trump afirmou para os quatro cantos do mundo que tinha provas da conspiração chinesa e suas declarações eram constantemente reproduzidas pelas redes sociais. Trump acusava o Instituto de Virologia de Wuhan de ter iniciado propositalmente a pandemia de covid-19. A própria OMS fez questão de desmentir tal acusação na expedição que enviou a China para investigar as origens da infecção. Mitos como esse continuam a povoar o senso comum e muitos se perguntam como isso é possível após tantas evidências que ao menos descartam as hipóteses mais risíveis.

Quando se trata do tema da origem não é nada incomum circular na sociedade diversas explicações sobre a questão. Algumas dessas explicações parecem inofensivas, às vezes são reproduzidas de forma jocosa, como no tão repetido mantra do “vírus chinês”. Seria cômico se não fosse trágico, o fato de atualmente o mundo inteiro estar preocupado com o “vírus brasileiro”. Afinal, o Brasil virou uma espécie de laboratório a céu aberto e vários subtipos de coronavírus, que estão circulando no país e já preocupam as autoridades do mundo inteiro. Grande parte dos aeroportos internacionais estão fechados para os brasileiros e a situação do país tem sido continuamente registrada na mídia internacional como motivo de grande preocupação. Mas, afinal, de onde vem esse vírus? Porque ele se multiplica tão rapidamente, desmantela sistemas de saúde e expõe de forma crua as chagas de nosso modo de produzir a vida? O que a situação brasileira desvela sobre uma crise que é mundial e a quem interessa esconder inclusive a existência da produção consciente e massiva de mortes?

A delegação de pesquisadores da OMS enviadas a Wuhan trabalhou com algumas hipóteses sobre a origem do vírus, sendo a mais provável a de que o Sars-CoV-2 ter se originado em algum animal e saltado para a espécie humana, como ocorre com diversas outras infecções – ainda que as formas deste salto não sejam ponto consensual entre os especialistas. Mesmo a tão alegada origem a partir de um mercado em Wuhan não pode ser afirmada, pois não foi possível reconstruir as cadeias de transmissibilidade. O fato concreto é que não temos muitas afirmações categóricas até o momento. Só um exemplo basta para desinflar a mentalidade daqueles que parecem ter tanta certeza sobre o assunto. O arco temporal que pode separar a provável origem animal do vírus para a atual versão que já matou mais de 300 mil pessoas no Brasil chega a 40 anos. Ou seja, os cientistas não descartam que o vírus causador da covid-19 pode ter surgido há um tempo longo e circulava até então de forma silenciosa.

Nesse sentido, partindo do pressuposto mais aceito de que a covid-19 seja uma zoonose, passemos a uma detalhamento do que se sabe sobre sua origem. Todas as doenças humanas podem transitar entre outras espécies. Trata-se de um fenômeno natural e por isso nem sempre ocorre consequências catastróficas como a que vivenciamos. Chamam-se zoonoses justamente tais doenças que transitam de animais para seres humanos. Apesar das zoonoses constituírem fato regular do metabolismo entre seres humanos e natureza, tem ficado bastante evidente o quanto estes processos têm se intensificado nos últimos anos, gerando a possibilidade cada vez maior de distúrbios nessa interação. Pensemos no seguinte fato: no século XXI já tivemos alguns “outbreaks” (termo utilizado no léxico dos epidemiologistas para indicar surtos de infecção por algum patógeno específico), representando em um espaço de 20 anos o que ocorreu no último século inteiro. Esta constatação indica uma aceleração destes surtos e nos dão uma amostra significativa do desequilíbrio ambiental causado pela exploração capitalista do meio ambiente.

Os “saltos”, que permitem a um vírus original de morcegos, por exemplo, passar para seres humanos, estão relacionados a mutações no código genético viral. Antes da pandemia já se conheciam 2 linhagens maiores de coronavírus: uma advinda de aves (que não infectaram ainda seres humanos) e as de morcego, relacionadas a infecções comuns em seres humanos. Quanto mais próxima for a espécie do hospedeiro original em relação ao ser humano, maior a chance de ocorrer esses saltos. Os morcegos são mamíferos que guardam uma semelhança genética maior com a espécie humana do que as aves. Seguindo esta pista, e também refletindo sobre os surtos virais do século XXI, muitos dos quais causados por outras espécies de coronavirus como o MERS-CoV (responsável por surto em Ásia no início dos anos 2000), os cientistas começaram a estudar espécies de morcegos sabidamente hospedeiros de coronavirus. Até o momento a espécie de coronavirus mais próxima do Sars-CoV-2 que foi encontrada chama-se RATG13, cujo código genético apresenta 96% de semelhança com o vírus causador da covid-19. A partir da análise das taxas de velocidade nas mutações do RATG13 os cientistas chegaram ao arco temporal de 40 anos que pode separar o vírus dos morcegos do vírus humano.

Há ainda um detalhe importante. O “salto” entre espécies pode necessitar de espécies intermediárias. O caso do vírus MERS, que assolou países de Ásia nos anos 2000, teve como provável intermediário uma espécie de camelo. Em relação ao Sars-CoV-2, a hipótese mais aventada é que o intermediário sejam os pangolins, mamíferos encontrados geralmente em Ásia. Os pangolins são caçados e servem de alimento para alguns indivíduos, além de terem as escamas traficadas como material afrodisíaco. Isto favoreceu os cientistas considerarem os pangolins como espécie intermediária, porém o sequenciamento genético de coronavírus encontrados neste mamífero indicaram uma similitude significativamente menor com os vírus humanos em relação aos vírus encontrados em morcegos, o que diminuiu a probabilidade dos pangolins serem reais intermediários.

Diante dos dados apresentados resta uma pergunta a ser respondida. Se temos tão poucas certezas sobre a origem da covid-19, porque tantas pessoas acreditam, por exemplo, na história do “vírus chinês”? Como dito anteriormente, a questão da origem traz em si muitas vezes aspectos de ordem teológica e metafísica. Mesmo os cientistas não estão imunes à reprodução das ideias dominantes de uma época. Não bastasse a grande crise econômica que enfrentamos, que traz miséria e destruição em tantas localidades, epidemias ou pandemias são muitas vezes lidas como se fossem “maldições” que revelariam algum tipo de “pecado”. Tal tipo de análise deriva com frequência para a rápida acusação de serem “culpados” determinado grupo social ou conjunto de indivíduos em típicas narrativas conspiratórias. A narrativa espalhada por Donald Trump é um exemplo típico de narrativa conspiratória e nesse caso em específico revela aspectos essenciais do cenário geopolítico mundial. Além de delegar a um “outro” a responsabilidade do caos que vivia a saúde estadunidense, Trump aproveitava para criar um clima hostil com a China, país que vem cada vez mais assumido o protagonismo econômico mundial e pondo em cheque o domínio dos EUA. Não podemos deixar de notar inclusive o teor racista de tais acusações e mesmo no caso de cientistas que tentam averiguar a origem real do vírus, fica patente que muitas vezes se associa o dito “exotismo” da alimentação asiática com a causa dos males que nos aflige.

Passemos à situação brasileira. Jair Bolsonaro e tantas outras figuras que o segue também espalharam o mito do “vírus chinês”, além de tantas outras teorias absurdas sobre a pandemia. Quando não nega completamente a realidade da pandemia, Bolsonaro utiliza de recursos conspiratórios para mistificar e ocultar a responsabilidade do seu governo diante da catástrofe brasileira. O Sars-CoV-2 tem se espalhado com poucos obstáculos e vão se acumulando mutações. Algumas cepas advindas de mutações, como a que foi sequenciada primeiramente em Manaus, podem ter transmissibilidade maior e até serem mais letais, colocando ainda mais pressão em nosso sistema de saúde. Como é difícil avaliar se um determinado genótipo viral tem uma expressão fenotípica mais letal ou não, dado que a letalidade do vírus está relacionada a múltiplas determinações, ainda não podemos ter certeza sobre o impacto dessas mutações no Brasil. O que sabemos é que, independente do arcabouço genético do vírus, há uma determinação social do processo saúde-doença. A situação brasileira revela como a luta de classes em um país de capitalismo dependente pode inclusive derivar na produção massiva de mortes, seja pela omissão das autoridades responsáveis pela saúde no país, seja pela prática consciente da obstrução das medidas corretas para combater a covid-19.

Neste sentido, para além de sinalizarmos para a urgência de investimentos em ciência e tecnologia como via para conhecermos a fundo a gênese do Sars-CoV-2 e as formas de combatê-lo, faz-se necessária a politização massiva da nossa sociedade, com a organização da classe trabalhadora em instrumentos de luta capazes de fazer frente a burguesia brasileira e a sua tendência cada vez mais genocida. A produção de mecanismos ideológicos que ocultam e mistificam a realidade sempre foi uma arma utilizada pelas classes dominantes para reproduzirem suas estruturas de dominação. As diversas mitologias criadas para explicar a atual pandemia trazem em seu núcleo perspectivas conspiratórias, quando não racistas, que funcionam como formas de naturalização do status quo. Talvez não tenhamos tempo de encontrar as chaves do enigma da covid-19, mas certamente isso não nos impedirá de combater os seus efeitos mais nocivos. A covid-19 tem direta relação com a crise ambiental e somente a saída socialista será capaz de nos dar respostas aos dilemas de nossa época.

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