COVID-19 no Brasil: retrato de um sistema em crise

Reprodução: Correio24horas

Por Rômulo Caires

A pandemia de COVID-19 segue avançando no Brasil e no mundo, apesar de muitos ainda negarem seus efeitos catastróficos e tantos outros estarem esgotados psiquicamente pelas medidas restritivas de isolamento social. Nas últimas semanas assistimos em vários países o registro de recordes diários de casos de covid-19, após mais de 8 meses do início da pandemia. Muitos países também registraram recordes de óbitos, explicitando os efeitos de uma provável “segunda onda” da infecção viral, que já vem causando enormes estragos na Europa. Dessa forma, já são mais de 1,2 milhões de mortes documentadas, caracterizando a pior pandemia dos últimos 100 anos.

Apesar de diversos epidemiologistas estarem alertando, há algum tempo, sobre a possibilidade de um novo aumento mundial nos casos de covid-19, a grande maioria dos países passaram a flexibilizar as medidas de controle da infecção. Se tais resolutivas pareceram acertadas no caso de países que controlaram efetivamente as cadeias de transmissão do patógeno, a situação do Brasil nem de longe já esteve sob controle. Em importante relatório divulgado pela Fiocruz¹ recentemente, que avaliou o desenvolvimento da pandemia nos diversos estados do Brasil, além de acompanhar as soluções políticas encaminhadas, podemos observar uma série de informações cruciais. Nota-se grande variação no número de casos e de óbitos ao longo dos últimos 8 meses em cada estado brasileiro. Os locais mais atingidos foram São Paulo e Rio de Janeiro, além de outros estados como a Bahia, que registou grande número de mortes pela doença (mais de 8 mil). A depender da região e do estado, os picos no número de casos e de óbitos ocorreram em meses diferentes, mas a grande maioria desses locais vivenciaram períodos de enorme gravidade, com superlotação de UTIs, serviços de saúde congestionados e pessoas morrendo em casa sem atendimento médico.

A enorme discrepância regional (houve períodos de verdadeira calamidade no norte do país), as diferenças na mortalidade entre pessoas mais pobres e aquelas com acesso a caros planos de saúde, além das diferenças gritantes na mortalidade entre pessoas brancas e não-brancas, denunciam um fato de enorme importância: a determinação social do processo saúde-doença. Isto significa que os danos causados por uma doença como a infecção pelo covid-19 não são apenas ligados aos aspectos biológicos do vírus, tal como sua alta capacidade de se espalhar pela população ou sua alta capacidade de mutação, mas principalmente pela relação do vírus com os diversos aspectos de nossa sociabilidade. Inclusive, muitos pesquisadores defendem que não se trata de uma doença única, mas de um conjunto de doenças que se inter-relacionam. Nesse sentido, a depender da classe social a qual o indivíduo pertença, de sua etnia ou local de moradia, o desastre pode ser mais ou menos intenso.

Na Bahia, por exemplo, quase 70% dos óbitos que ocorreram até o momento foram de pessoas não-brancas, como consta nos boletins epidemiológicos da SESAB. Também podemos observar uma grande discrepância nos danos causados entre aqueles moradores dos bairros mais ricos de Salvador e aqueles localizados nas regiões periféricas da capital. Mesmo que no início da pandemia os casos tenham se concentrado em bairros mais nobres, no decorrer do tempo a infecção foi se espalhando rapidamente nas favelas soteropolitanas. Além de moradias com baixa ventilação, iluminação, espaço e a carência de serviços de saúde, a situação das favelas é agravada pela violência estrutural. Diversos relatos de fontes não-oficiais, tais como redes sociais ou levantamentos realizados por associações locais de moradores, acusaram o aumento do número de operações policias no período da pandemia, com o alto índice de letalidade, característica das operações policiais na capital baiana. Outros agravantes, como a falta de abastecimento de água, remoção de moradores de suas casas, fome, insegurança alimentar e agravamento nas condições de saúde mental foram bastante comuns.

Outros grupos populacionais bastante afetados pela pandemia foram os idosos e as gestantes. Estima-se que mais de 75% das mortes ocorridas por covid-19 ocorreram em pessoas acima de 60 anos, principalmente do sexo masculino. Se não bastasse a precariedade da seguridade social reservada à grande maioria dos idosos no Brasil, tal grupo populacional ainda vem sendo dizimado pela pandemia. Muitas dessas mortes ocorreram em abrigos, às vezes sem qualquer tipo de assistência médica. O Brasil também se destaca negativamente no número de gestantes que faleceram por complicações de covid-19, com uma taxa de letalidade superior a 8%. Cabe também mencionar a alta mortalidade entre povos indígenas, que chega a ser 150% maior do que a de não-indígenas. Dados alarmantes, que podem ainda estar subnotificados, dada o grande problema na qualidade dos bancos de informações oferecidos à população.

Constatamos assim a enorme gravidade da crise que estamos vivenciando. Crise esta que é mais um capítulo de um longo processo que já vinha se anunciando muito antes do coronavírus se espalhar pelo globo. O capitalismo já deu todos os sinais de seu esgotamento e a tentativa de conter esse apodrecimento tem gerado posições políticas cada vez mais conservadoras e genocidas. A extrema-direita abraça os ideais do social-darwinismo e não titubeia em apoiar, por ação ou omissão, o extermínio dos setores mais oprimidos da sociedade. A posição do governo Bolsonaro no período foi sempre a de priorizar os lucros em favor da vida.  Pressionado por setores parlamentares e temeroso das massas se rebelarem diante da catástrofe social, o governo neofascista aprovou auxílio emergencial que permitiu alguma conciliação com os setores populares. Todavia, o mesmo governo bloqueou ininterruptamente os caminhos que poderiam apontar uma saída menos catastrófica para a situação.

Os 8 meses que nos separam do início da pandemia foram marcados pela passagem de 3 ministros da saúde, sendo o atual ministro um militar, desprovido de experiência no setor da saúde. Ou seja, pode-se dizer que não houve uma coordenação nacional efetiva que pudesse minimamente mitigar os estragos. Esse fato acabou levando estados e municípios a implementarem suas próprias soluções, às vezes até competindo entre si. Com frequência foi priorizado o investimento em estruturas temporárias em prol de estruturas permanentes para o SUS. A necessária implementação de medidas de isolamento social foi quase sempre postergada para favorecer os interesses patronais. A ausência de testagem em massa, insumos, EPIs e demais recursos também é constante. Os trabalhadores da saúde, mesmo na dianteira dessa batalha, sofreram com excesso de trabalho, condições insalubres e ausência de direitos.

Nesse sentido cabe a pergunta: estamos preparados para uma segunda onda de covid-19 no Brasil? Podemos inclusive questionar se de fato superamos a primeira onda. Os números de casos, mesmo com momentos de queda, se sustentaram em patamar elevado por todo o período analisado. Além disso, o próprio comportamento da circulação do vírus, associado à fragilidade do sistema de saúde e às pressões econômicas, aponta para possíveis períodos de remissão e aumento dos casos, mantendo como uma constante a vitimização das populações mais vulneráveis. O aumento global do volume de infectados deve nos fazer ligar o sinal de alerta para novos surtos. Mesmo o possível horizonte de uma campanha massiva de vacinação é obscurecido pelo negacionismo do governo, que cria múltiplos obstáculos para que o Brasil não adquira as diferentes vacinas que estão concluindo os períodos de teste. Aos trabalhadores se põe assim o desafio: defender o SUS, lutar por sua ampliação e derrubar Bolsonaro e seus aliados.

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